"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

sábado, 25 de junho de 2016

PRONTO, OS INGLESES FALARAM. E FALARAM GROSSO

Num lugar onde a economia vai bem e o livre-comércio dá acesso a mais de 450 milhões de pessoas, britânicos insatisfeitos com a perda de soberania dizem um não monumental à União Europeia


Nigel Farage, do partido Ukip, comemora a vitória do Brexit: de outsider a profeta do euroceticismo(Toby Melville/Reuters)


Pronto, falaram. E falaram grosso: não querem continuar num clube em que não suportam a diretoria, mandam menos do que acham que deveriam e, de tanto ouvir que precisavam continuar lá, detectaram no ar alguma perversa conspiração das elites. 
Pois foi o povão, as camadas de renda mais baixa e mais distantes do multiverso de Londres, que disse não. 
Deu 51,9% pela saída do Reino Unido da União Europeia. 
Por sua decisão, foram chamados de praticamente todos os termos do dicionário de insultos políticos. 
Ignorantes, atrasados, preconceituosos, isolacionistas, reacionários, turrões, temerários, hidrófobos, xenófobos, racistas. E, naturalmente, fascistas, xingamento evocado hoje até em reuniões de grupos voluntários de jardinagem. E quem há de dizer que não eram nada disso?

Para os 48,1% que votaram pela permanência do Reino Unido, uma federação complicada e desigual, formada por Inglaterra, País de Gales, Escócia e Irlanda do Norte, na confederação mais complexa ainda e infinitamente mais disfuncional da União Europeia, foi um dia triste na história. Para Boris Johnson, o grande vencedor de uma batalha que parecia impossível ganhar, travada na base da incomparável oratória das classes superiores salpicada de gestos populistas de fácil compreensão pelas classes inferiores, a quinta-­feira abafada e chuvosa foi o dia da independência nacional que "agora abre uma oportunidade gloriosa".

À exceção do bárbaro assassinato da deputada Jo Cox, uma semana antes do plebiscito, a campanha dos dois lados aconteceu num clima vibrante, entusiasmado, com os excessos naturais de um momento de importância histórica. Na manhã do dia seguinte, o sentimento era de susto algo chocado entre os que queriam ficar e de susto entusiasmado entre os que queriam sair. 
Ninguém sabia cravar exatamente o que vai acontecer, mas nenhum dos lados poderia reclamar de falta de informação. Houve um número quase massacrante de debates, artigos, entrevistas e dados. 
Todas as categorias deram sua opinião, na enorme maioria a favor da permanência. Artistas, economistas (quase nove em cada dez), grandes empresários, cientistas e doze ganhadores do Prêmio Nobel usaram de sedução, apelos emocionais, ameaças, raciocínio lógico e mais qualquer coisa que achassem na caixa de ferramentas para argumentar pelo "sim". 
Barack Obama disse que o reino iria para "o fim da fila" em matéria de acordos comerciais com os Estados Unidos. 
Em sentido oposto, o ministro Michael Gove tentou enfiar a rainha no meio e disse que, num jantar com políticos em 2011, ela havia manifestado ceticismo sobre o futuro da União Europeia. 
É claro que precisou pedir desculpas abjetas. Revelar qualquer comentário feito pela rainha em reuniões fechadas é gafe imperdoável. Mas até Robert Lacey, autor de livros sobre a monarquia, não resistiu e disse que Elizabeth II, com seus 90 anos de idade e 63 de comportamento impecavelmente neutro como monarca constitucional, andou perguntando a convidados se poderiam dar três bons motivos para a permanência na União Europeia.

Diante da quase unanimidade das previsões negativas, embora em faixas muito variáveis, para o crescimento econômico, a campanha do "não" reforçou a ideia da retomada da soberania nacional e do caráter passageiro dos problemas prognosticados. "Existem algumas coisas mais importantes que o dinheiro", arriscou o historiador Andrew Roberts, possesso com as ameaças feitas por instituições internacionais como o FMI e líderes como Obama. "Em vez de intimidarem o povo britânico, parecem ter acirrado sua teimosia", prognosticou. 
Na prática, muita coisa ficou em suspenso. "Vou precisar mudar minha empresa para a Bélgica", previa Karen Clements, dona de uma pequena consultoria de comunicações que tem todos os seus contratos com a União Europeia.

O pessimismo sobre o futuro da economia também teve componentes aparentemente superdimensionados, em especial diante da história de um reino que chegou a fazer duas guerras no século XIX para obrigar um país, a China, a abrir as portas ao livre trânsito de mercadorias. 
No caso, o ópio, a droga proibida, que tira as dores do corpo e da alma ao mesmo tempo em que os consome, plantado na Índia sob o domínio britânico. Hoje, seria como um país ir à guerra para obrigar outro a comprar crack.

Um dos aspectos mais impressionantes da preferência pela saída é que ela aconteceu num lugar onde a economia vai bem, o desemprego é baixo, as autoridades monetárias preservam o poder de autonomia pelo fato fundamental de que não fazem parte da zona do euro e a austeridade do governo Cameron parece a reprimenda gentil de uma governanta inglesa comparada ao sadismo instaurado em países como a Grécia, onde o povo votou num governo de esquerda para não fazer tudo o que acabou fazendo. 
O voto pelo "não" foi um voto contra o status quo, a estabilidade, a tendência natural a não mudar as coisas que estão indo bem. Nesse sentido, foi também um voto de protesto e de desconfiança contra instituições que se tornam grandes e importantes demais, dominadas pela ideia de fazer o bem para um povo incapaz de saber o que é melhor para si mesmo.

Na Inglaterra de hoje, não é considerado de bom-tom mencionar uma das frases mais famosas atribuídas a Harold Macmillan, primeiro-ministro na transição dos anos 50 para os 60. Por ser tão boa, ela é usada em excesso quando fatos imprevistos pegam todo mundo de surpresa, e talvez nem tenha sido realmente dita. 
Mas, se não foi, deveria ter sido. Questionado por um jornalista sobre o que poderia mudar seus planos para a política externa, respondeu com aquele tom de inabalável estoicismo tão cultivado nas ilhas: "Acontecimentos, meu caro, acontecimentos". 
Pois é, acontecimentos, como é de sua natureza, aconteceram e a roda da história deu outro giro. Já que não dá para eleger outro povo, agora é tocar em frente porque atrás vem gente: há um monte de partidos europeus querendo plebiscito também.

25 de junho de 2016
Vilma Gryzinski, de Londres
VEJA

Nenhum comentário:

Postar um comentário