Acompanhar o que políticos e autoridades fazem em pé dá um trabalho danado. Deveria bastar. A desavença da jornalista Mirian Dutra com Fernando Henrique Cardoso reabriu a questão das relações perigosas na corte, que é velha como a nação. Um filho da marquesa de Santos com Dom Pedro I nasceu em 1823. Há poucos dias o ex-presidente perguntou: “Por que discutir como se fosse pública uma questão privada?”
Porque contém elementos que justificam sua discussão. Alguns aspectos do episódio são privados, compondo uma trama de folhetim. Segundo Mirian Dutra, ela teve um filho com FHC em 1990. Dois exames de DNA indicaram que a criança não era dele. O ex-presidente aceitou a paternidade e amparou o jovem, educando-o no exterior e presenteando-o com um apartamento em Barcelona.
Mirian Dutra informou que o pai da criança era um biólogo, e a palavra da mãe merece respeito. Hoje, ela reconhece que isso era mentira e, retomando a linha do folhetim, contesta os exames de DNA. Seu argumento — “uma mulher sabe quem é o pai” — é insuficiente. Aí termina a parte que poderia ser vista como privada.
A questão pública surge quando Mirian Dutra revela que, em dezembro de 2002, no último mês de FHC na Presidência, assinou um contrato com a empresa Brasif, que suplementou seus rendimentos com cerca de US$ 100 mil ao longo de três anos. A Brasif era a concessionária de lojas de duty free em aeroportos brasileiros. Ela nunca prestou qualquer serviço à empresa. Nessa época, vivia na Europa a serviço da TV Globo, onde trabalhava desde 1985.
A concessão de lojas de duty free no desembarque de passageiros de voos internacionais é assunto de natureza pública, além de ser uma jabuticaba. O dono da Brasif, Jonas Barcelos, tinha boas conexões políticas. Em 1997, o tucanato baixou de US$ 500 para US$ 300 o teto de compras permitidas aos viajantes. Pouco depois, recuou. Na República dos Comissários, a Brasif reciclou-se e teve como consultor o ex-ministro da Fazenda Antonio Palocci. Em 2006, a operação de lojas de aeroportos da Brasif foi vendida à empresa suíça Dufry.
Barcellos reconheceu que Mirian Dutra foi contratada “para realizar pesquisas sobre preços em lojas e free shops na Europa”. Se foi assim, como o contrato previa depósitos mensais de US$ 3 mil, a empresa poderia ter suspendido os pagamentos ao ver que ela nada pesquisava.
Esse episódio é um indicador de quanto o Brasil melhorou. Em 1974, Roberto Campos, o corifeu do liberalismo brasileiro, ex-ministro do Planejamento e embaixador na Inglaterra, tinha uma namorada. Chamava-se Marisa Tupinambá. Para tê-la por perto, aninhou-a na embaixada do Brasil em Paris. Um ano depois, demitida, ela foi para Londres, onde recebia uma mesada da Odebrecht. Campos voltou ao Brasil em 1978, e os dois continuaram a encontrar-se até que brigaram na noite de 28 de abril de 1981.
Na dia seguinte, informou-se que Campos fora assaltado e esfaqueado no centro de São Paulo. Dezenas de pedestres suspeitos foram presos. Era tudo mentira. Tupinambá o esfaqueara num apart-hotel a quilômetros de distância do “assalto”. Ela publicou sua história no livro “Eu fui testemunha”. Conta a lenda que outra empreiteira comprou toda a edição.
25 de fevereiro de 2016
Elio Gaspari é jornalista. Originalmente publicado em O Globo em 24 de fevereiro de 2016.
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