Sr. Leitão e Sra. Leitoa se divorciaram, e o juiz determinou que ele lhe pagasse pensão em conta conjunta. Tudo corria bem: ele depositava o dinheiro, mas ela não sentia necessidade de sacá-lo, deixando-o em conta.
Ocorre que o Sr. Leitão tinha hábitos caros e permitiu que gastos crescessem além de sua renda, de modo que ficou difícil bancar simultaneamente seu estilo de vida e a pensão, mas não ousou desrespeitar a ordem judicial e continuou com os pagamentos à Sra. Leitoa.
Argumentando, contudo, que ela não sacava os recursos, passou a usá-los para pagar suas despesas, prometendo que, no momento em que ela precisasse do dinheiro, trataria de repô-lo.
Ao mesmo tempo, quando questionado sobre suas fontes de renda pelo banco no qual buscava um empréstimo, somou ao seu salário aquilo que retirava da conta da Sra. Leitoa e ficou indignado quando o gerente se recusou a atendê-lo, apontando que sua renda de verdade, sem os saques da conta da ex-mulher, não era suficiente sequer para pagar seus gastos cotidianos; quanto mais honrar o serviço de um financiamento bancário. Sem crédito, o Sr. Leitão quebrou...
Qual a relevância dessa fábula? Muita, à luz do que veio dentro do pacote de "ajuste" federal anunciado na sexta-feira (19).
Frequentemente o governo é condenado a pagar indenizações. Essas obrigações são conhecidas como "precatórios", e tipicamente o governo faz os pagamentos no ano seguinte ao da condenação. Quando ocorrem, são classificados (corretamente) como gastos e, portanto, aumentam o deficit fiscal. Ficam depositados em bancos federais à disposição dos beneficiários, que podem (ou não) sacá-los.
Segundo, porém, o divulgado na semana passada, para "otimizar" (não riam!) os pagamentos de precatórios e evitar que "fiquem ociosos nos bancos", o governo propõe contabilizá-los como gasto apenas quando o beneficiário sacar esses recursos.
Em 2016 esses desembolsos somam R$ 19 bilhões, dos quais o governo estima (sabe-se lá como) que R$ 6,3 bilhões não serão sacados. Há ainda um saldo de depósitos de R$ 18,6 bilhões, dos quais R$ 5,7 bilhões estão parados há mais de quatro anos. Isso dá um total de R$ 12 bilhões que não serão contabilizados como gastos, ou, de forma equivalente, serão tratados como receitas, cujo efeito será o de reduzir o deficit fiscal do ponto de vista contábil.
Essa sistemática não difere do golpe do Sr. Leitão. Muito embora os recursos pertençam a seus beneficiários, o governo pretende usá-los para se financiar, mas sem reconhecer que se trata de um empréstimo, e sim como se fossem uma fonte de receitas.
Trata-se, portanto, de mais uma "pedalada" fiscal: tratar empréstimos (sem, aliás, consentimento dos proprietários do dinheiro) como receita, reduzindo o deficit fiscal em R$ 12 bilhões (0,2% do PIB).
Quem viveu o Plano Cruzado, há 30 anos, deve se lembrar de outros empréstimos compulsórios, jamais devolvidos, enquanto autores da traquinagem ainda se sentem no direito de dar palpites sobre economia em linguagem empolada para disfarçar sua completa falta de conteúdo.
Isso prova que as juras quanto à transparência fiscal não passavam de hipocrisia. A menos, é claro, que se acredite que o governo resolveu usar um expediente tão tosco apenas para que analistas pudessem desnudá-lo mais facilmente.
26 de fevereiro de 2016
Alexandre Schwartsman, Folha de S.Paulo
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