Leio nos jornais que os marqueteiros decidiram humanizar Dilma. Se somos todos humanos, o que significa humanizar Dilma? A chamada humanização foi uma trajetória ascendente, na qual vencemos intempéries naturais, construímos ferramentas, resolvemos complexos problemas da vida social.
Como Dilma é considerada uma das mulheres mais poderosas do mundo, a humanização pretendida pelos marqueteiros é uma espécie de saída do Olimpo. Ela vai parecer agora uma pessoa comum, uma filha de Deus na nossa imensa canoa furada que é o Brasil de hoje. Ao vê-la no seu passeio de bicicleta, convenci-me de que era humana. Deuses não usam capacete. Não se importam em se esborrachar no asfalto com seus etéreos cérebros. Dilma, como todos nós, sabe que um choque pode embaralhar os já congestionados circuitos mentais.
O processo de humanização se desdobrou numa entrevista a Jô Soares, na qual, no Dia dos Namorados, Dilma discorreu sobre o ajuste fiscal e suas preferências de leitura. Ela ainda não se humanizou como Obama, que vai aos programas de televisão. Dilma só dá entrevistas no seu habitat, com os tapetes, livros e, possivelmente, um leve cheiro de mofo do palácio.
O trânsito do divino ao humano é sempre muito complicado. Os islamitas moderados sabem disso. O Corão (surata 9, versículo 5) aconselha matar os politeístas onde quer que se encontrem. Os moderados afirmam que isso é um texto do século VII, vale para um contexto da Península Árabica em guerra. Mas a religião disse que o texto foi ditado por Deus, onisciente e eterno, superior a todas as conjunturas históricas. Afirmar que o texto foi escrito por seres humanos, falíveis, sujeitos às limitações de seu tempo, é assumir o risco da heresia. Não creio que os marqueteiros queriam apenas mostrar a descida de Dilma ao mundo dos humanos, que desfilam em suas bicicletas Specialized cercados de seguranças de terno escuro.
Podemos imaginar outro caminho da humanização. Ele não envolve a relação divino-humano, mas sim a relação entre pessoa e máquinas. Humanizar, nesse caso, seria mostrar que Dilma não é a máquina de processar números e tomar decisões. Ela tem as mesmas preocupações que todos nós e, inclusive, leu a Bíblia na cadeia.
Nesse ponto, acho que o caminho dos marqueteiros não me convence. Se Dilma é vista como máquina de decisões, o aparato precisa de conserto, não de traços humanos. Grande parte de suas análises e decisões foi para o buraco: a máquina nos trouxe a uma das maiores crises da História do país.
Se aceitassem minhas ponderações, o problema dos marqueteiros não seria humanizar Dilma, mas trans-humanizá-la, transformando-a em máquina mais eficiente. Em vez da conversa com Jô que, na cadeia, quando não estamos lendo a Bíblia, chamamos de cerca-lourenço, Dilma deveria estar implantando chips em muitas partes do corpo. Seria capaz de acionar o aparato do governo sem tantos ministros, detectar desvios antes que cheguem a R$1 bilhão, emitir ondas sonoras que acalmem o Congresso.
O projeto de trans-humanizar Dilma não significa que não possa ir ao programa de culinária e mostrar como fritar um ovo. Há chips para isso. Mas todos saberíamos que Dilma não é apenas humana. Como ela quase arruinou nosso sistema energético, vamos confiar apenas no Sol para alimentar os seus dispositivos. Cada vez que ela se aproximar do astro, como o robô europeu Philae, saberemos que busca contato conosco:
— Alô Terra, vocês estão me ouvindo?
Nietzsche escreveu “Humano, demasiadamente humano”, para analisar a morte de Deus e a solidão humana ao decidir sobre o certo e o errado.
Seres humanos andam de bicicleta e aparecem no programa do Jô, pessoal. Mas os marqueteiros de Dilma deveriam considerar aberto o debate sobre sua humanização. Afinal, ela apenas desceria do Olimpo, apenas se distanciaria da máquina?
O Deus bíblico é capaz de fazer perguntas, de ter curiosidade, ao criar os bichos, sobre o nome que Adão daria a eles. Aparentemente, a curiosidade é um dado contraditório num Deus que sabe tudo. Contradição e curiosidade são dados humanos. Se até o Deus bíblico é curioso, por que Dilma não faz perguntas aos seres humanos: o que achamos dela, do seu governo e de seu próprio projeto de humanização. Mesmo uma eficaz máquina trans-humana está arriscada a dizer “Olá Terra, vocês me escutam?”, e ser respondida com um ensurdecedor panelaço.
O que os marqueteiros fariam ainda com Dilma para que pareça humana? Pedalar não vale mais, porque ela está sendo questionada no TCU exatamente por pedalar. Não precisamente na bicicleta, mas nas contas do governo.
A história recente já produziu outro gesto de humanização: o general Garrastazu Médici fazendo embaixadas num campo de futebol. Aprendemos com o marketing político que os seres humanos praticam o futebol e o ciclismo. Chega de humanizar, vamos trans-humanizar, encher os políticos de chips e antenas. Prefiro encontrar Dilma e, ao invés de “bom dia, presidente”, saudá-la com um lugar-comum nos encontros de terceiro grau: “Por favor, leve-me ao seu líder”.
22 de junho de 2015
Fernando Gabeira
Como Dilma é considerada uma das mulheres mais poderosas do mundo, a humanização pretendida pelos marqueteiros é uma espécie de saída do Olimpo. Ela vai parecer agora uma pessoa comum, uma filha de Deus na nossa imensa canoa furada que é o Brasil de hoje. Ao vê-la no seu passeio de bicicleta, convenci-me de que era humana. Deuses não usam capacete. Não se importam em se esborrachar no asfalto com seus etéreos cérebros. Dilma, como todos nós, sabe que um choque pode embaralhar os já congestionados circuitos mentais.
O processo de humanização se desdobrou numa entrevista a Jô Soares, na qual, no Dia dos Namorados, Dilma discorreu sobre o ajuste fiscal e suas preferências de leitura. Ela ainda não se humanizou como Obama, que vai aos programas de televisão. Dilma só dá entrevistas no seu habitat, com os tapetes, livros e, possivelmente, um leve cheiro de mofo do palácio.
O trânsito do divino ao humano é sempre muito complicado. Os islamitas moderados sabem disso. O Corão (surata 9, versículo 5) aconselha matar os politeístas onde quer que se encontrem. Os moderados afirmam que isso é um texto do século VII, vale para um contexto da Península Árabica em guerra. Mas a religião disse que o texto foi ditado por Deus, onisciente e eterno, superior a todas as conjunturas históricas. Afirmar que o texto foi escrito por seres humanos, falíveis, sujeitos às limitações de seu tempo, é assumir o risco da heresia. Não creio que os marqueteiros queriam apenas mostrar a descida de Dilma ao mundo dos humanos, que desfilam em suas bicicletas Specialized cercados de seguranças de terno escuro.
Podemos imaginar outro caminho da humanização. Ele não envolve a relação divino-humano, mas sim a relação entre pessoa e máquinas. Humanizar, nesse caso, seria mostrar que Dilma não é a máquina de processar números e tomar decisões. Ela tem as mesmas preocupações que todos nós e, inclusive, leu a Bíblia na cadeia.
Nesse ponto, acho que o caminho dos marqueteiros não me convence. Se Dilma é vista como máquina de decisões, o aparato precisa de conserto, não de traços humanos. Grande parte de suas análises e decisões foi para o buraco: a máquina nos trouxe a uma das maiores crises da História do país.
Se aceitassem minhas ponderações, o problema dos marqueteiros não seria humanizar Dilma, mas trans-humanizá-la, transformando-a em máquina mais eficiente. Em vez da conversa com Jô que, na cadeia, quando não estamos lendo a Bíblia, chamamos de cerca-lourenço, Dilma deveria estar implantando chips em muitas partes do corpo. Seria capaz de acionar o aparato do governo sem tantos ministros, detectar desvios antes que cheguem a R$1 bilhão, emitir ondas sonoras que acalmem o Congresso.
O projeto de trans-humanizar Dilma não significa que não possa ir ao programa de culinária e mostrar como fritar um ovo. Há chips para isso. Mas todos saberíamos que Dilma não é apenas humana. Como ela quase arruinou nosso sistema energético, vamos confiar apenas no Sol para alimentar os seus dispositivos. Cada vez que ela se aproximar do astro, como o robô europeu Philae, saberemos que busca contato conosco:
— Alô Terra, vocês estão me ouvindo?
Nietzsche escreveu “Humano, demasiadamente humano”, para analisar a morte de Deus e a solidão humana ao decidir sobre o certo e o errado.
Seres humanos andam de bicicleta e aparecem no programa do Jô, pessoal. Mas os marqueteiros de Dilma deveriam considerar aberto o debate sobre sua humanização. Afinal, ela apenas desceria do Olimpo, apenas se distanciaria da máquina?
O Deus bíblico é capaz de fazer perguntas, de ter curiosidade, ao criar os bichos, sobre o nome que Adão daria a eles. Aparentemente, a curiosidade é um dado contraditório num Deus que sabe tudo. Contradição e curiosidade são dados humanos. Se até o Deus bíblico é curioso, por que Dilma não faz perguntas aos seres humanos: o que achamos dela, do seu governo e de seu próprio projeto de humanização. Mesmo uma eficaz máquina trans-humana está arriscada a dizer “Olá Terra, vocês me escutam?”, e ser respondida com um ensurdecedor panelaço.
O que os marqueteiros fariam ainda com Dilma para que pareça humana? Pedalar não vale mais, porque ela está sendo questionada no TCU exatamente por pedalar. Não precisamente na bicicleta, mas nas contas do governo.
A história recente já produziu outro gesto de humanização: o general Garrastazu Médici fazendo embaixadas num campo de futebol. Aprendemos com o marketing político que os seres humanos praticam o futebol e o ciclismo. Chega de humanizar, vamos trans-humanizar, encher os políticos de chips e antenas. Prefiro encontrar Dilma e, ao invés de “bom dia, presidente”, saudá-la com um lugar-comum nos encontros de terceiro grau: “Por favor, leve-me ao seu líder”.
22 de junho de 2015
Fernando Gabeira
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