"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

terça-feira, 26 de maio de 2015

O CHILE DE SALVADOR ALLENDE



É sempre interessante recordar um pouco da história do governo de Salvador Allende, no Chile.

Salvador Allende, deputado socialista, foi eleito para a presidência do Chile em 3 de setembro e tomou posse em 4 de novembro de 1970. Candidatou-se por uma coligação de partidos de esquerda – a Unidade Popular – e venceu com apenas 36,3% dos votos (1,4% a mais que seu principal adversário, que obteve 34,9%). A Constituição chilena exigia, porém, a metade mais um dos votos. Não havendo essa maioria, o Congresso deveria escolher entre os dois mais votados. A vitória de Allende no Congresso foi conseguida através de uma composição com a Democracia Cristã, sob a condição de que o futuro governo observasse as “garantias constitucionais”.

Na campanha eleitoral, Allende havia anunciado as“primeiras 40 medidas” de efeito popular que, se eleito, iria adotar. Além das já tradicionais eliminação do desemprego, fim da inflação, educação, assistência médica, previdência social, melhor alimentação, casa, luz e água para todos, havia algumas medidas curiosas:

restrição de viagens de funcionários do governo ao exterior;

controle do uso de automóveis oficiais;

fim dos reajustes das prestações e das dívidas com a Corporación de Viviendas (CORVI);

dissolução do Grupo Móvil (correspondente àROTA).

O objetivo básico do governo era a construção do socialismo com democracia e pluralismo. Para tanto se tornava necessário transformar as empresas de mineração, o sistema financeiro e as grandes empresas nacionais e estrangeiras em “propriedade social”. A reforma agrária, que já estava em curso no país, seria acelerada com a expropriação de mil latifúndios logo no primeiro ano de governo.

A política econômica de curto prazo objetivava aumentar a disponibilidade de bens e serviços para o consumo, direcionando esse aumento para os menos favorecidos. Para isso, era preciso redistribuir a renda. Nesse sentido, foram adotadas as seguintes medidas:

aumento de 100% do IPC para todos os trabalhadores e aumentos acima do IPC para os salários mais baixos (IPC mais 5% até um salário-mínimo e IPC mais 3% até dois salários-mínimos) com o objetivo de aumentar a poder de compra dos trabalhadores e provocar um impacto na demanda de bens e serviços. Ou seja, seria o “espetáculo do crescimento”;

para deter a inflação e assegurar ganhos reais aos trabalhadores foi iniciada uma inflexível política de controle de preços. Os aumentos de salários não poderiam ser repassados aos preços e os produtores deveriam buscar os seus lucros com o aumento da produção. Nos setores onde não houvesse capacidade ociosa suficiente para atender ao incremento da demanda o abastecimento seria garantido através de importações.

Para o controle de preços, o governo foi buscar uma Resolução de 1966. Os preços de grande parte dos produtos foram congelados ao nível de outubro de 1970 (mês anterior ao da posse do presidente). Foi criada uma “Oficina Coordinadora del Consumidor, Difusión y Denúncias” - uma espécie de disque-denúncia econômico -, especialmente dedicada a receber denúncias do povo sobre especulações e problemas de abastecimento dos produtos de consumo habitual, o que provocou um grande afã de cooperação. Para orientação dos consumidores, a “Oficina” logo iniciou a distribuição de listas de preços e disposições legais de caráter geral às quais os comerciantes ficariam obrigados a se submeter;

para evitar o aumento dos custos, a taxa cambial foi congelada e anunciou-se que a política de desvalorizações periódicas e sistemáticas seria abandonada, bem como seria abandonado qualquer tipo de sujeição a organismos internacionais, como o FMI;

como medidas de distribuição direta, entre outras, foram adotadas as seguintes:

trega gratuita de um litro de leite diariamente a cada criança;

assistência médica gratuita em todos os postos de saúde e hospitais;

supressão do pagamento de matrículas no ensino básico e congelamento desse pagamento no ensino médio;

suspensão dos reajustes nas prestações à CORVI e a outros organismos previdenciários;

construção de balneários populares.

a taxa de juros máxima, que estava tabelada em 24% ao ano desde o governo anterior, foi reduzida para 18%, o mesmo ocorrendo com as taxa de linhas de créditos especiais concedidas pelos bancos com refinanciamento do Banco Central do Chile. Em algumas dessas linhas as taxas caíram para a metade, ou seja, de 24% para 12% ao ano;

a política fiscal foi orientada no sentido de aumentar os impostos das grandes empresas, dos grandes proprietários (era o governo quem definia o que era “grande”) e dos produtos consumidos pelas classes média e alta, com o objetivo de aumentar a arrecadação e promover a distribuição de renda. O imposto sobre o patrimônio das pessoas físicas foi aumentado e o aumento estendido também às sociedades anônimas chilenas e às agências estrangeiras. O imposto de renda adicional sobre as sucursais de empresas estrangeiras foi aumentado. Com relação aos automóveis, foi aumentado o imposto sobre a primeira venda de veículos novos e o imposto anual foi tornado progressivo para os automóveis de maior valor.

Além dessas medidas, Allende propôs ao Congresso a aprovação de um “Fundo Nacional de Capitalização” para aumentar a poupança pública e prover uma fonte de financiamento para investimentos nos setores básicos da produção (empresas estatais). Esse fundo seria formado com aportes obrigatórios de todas as empresas industriais, comerciais, mineradoras, pesqueiras e outras cujo capital efetivo fosse superior a dois milhões de escudos em 31 de janeiro de 1970, na base de 15% sobre os lucros anuais.

Na sua primeira mensagem ao Congresso, em 21 de maio de 1971, o presidente Allende comentou o “avanço no cumprimento dos planos governamentais”: “Em menos de seis meses, o Governo Popular, com o respaldo decidido e crescente de todo o povo, logrou superar com êxito uma das mais profundas depressões econômicas havidas nos últimos anos no Chile (...) O que constituía o problema principal seis meses atrás, que era a necessidade de aumentar violentamente a demanda, se transformou agora na necessidade de pôr em ação todas as forças materiais e humanas para incrementar substancialmente a produção”.

De fato, os resultados obtidos no primeiro ano do governo Allende foram espetaculares: o PIB cresceu 9,0% em 1971; a indústria de transformação cresceu 13,6% e o comércio 15,8%. A inflação caiu de 34,9% em 1970 para 22,1% em 1971 e o salário médio cresceu 16,3%.

A prosperidade econômica dos primeiros 6 meses combinada com a total abertura política levou muitas pessoas, especialmente as de baixa renda, a votarem nos candidatos da Unidade Popular nas eleições municipais de abril de 1971, fazendo com que os partidos da coalizão política de Allende recebessem cerca de 50% dos votos.

Mas nem tudo corria às mil maravilhas. Problemas de abastecimento e o mercado negro começavam a surgir e o presidente fazia ameaças nessa sua primeira Mensagem ao Congresso: “Sabemos (...) que a reativação enfrenta obstáculos. Por um lado, certos grupos empresariais intentam impedir o êxito de nossas medidas mediante um entorpecimento aberto ou disfarçado da produção. Por outro lado, a falta de audácia de alguns setores, demasiadamente embebidos nos esquemas tradicionais de produção baixa e lucros altos, os impedem de compreender a conjuntura atual e efetuar um maior aporte ao processo produtivo. Esta é, não obstante, sua obrigação social. Àqueles que não a cumprirem, deliberadamente ou não, aplicaremos todos os instrumentos legais ao nosso alcance para continuar estimulando-os e, em caso necessário, obrigá-los a produzir mais”.

Além dos problemas de abastecimento, alguns resultados macroeconômicos do primeiro ano indicavam que haviam sido lançadas as sementes do desastre: as exportações caíram e as importações aumentaram; o Balanço de Pagamentos teve um saldo negativo; as reservas internacionais do país desabaram para a metade; com os aumentos reais de salários, congelamento de preços, nacionalizações, educação e assistência médica gratuitas, distribuição de leite, etc, as despesas do governo aumentaram brutalmente, quadruplicando o déficit público, que passou de 2,7% para 10,7% do PIB.

O segundo ano de governo – 1972 – foi marcado por um aumento das dificuldades. O governo desvalorizou a moeda em 33,3%, os problemas de abastecimento se intensificaram, a inflação começou a subir, os investimentos continuaram em declínio, as reservas internacionais em quase zero e os credores do país não aceitavam a renegociação da dívida externa sem o monitoramento do FMI.

Os problemas de abastecimento eram particularmente graves, levando o governo a criar, em abril de 1972, “Juntas de Abastecimento e Preços” (JAP’s) nos bairros, com as atribuições de atender aos problemas de abastecimento dos comerciantes varejistas; respaldar suas denúncias contra os intermediários inescrupulosos; e cooperar com o controle de preços, tendo sempre atualizadas, em cada “Unidad Vicinal”, as listas de preços oficiais, exigindo dos comerciantes seu cumprimento mediante a persuasão ou coerção.

As JAP’s eram formadas pelas organizações de trabalhadores que tivessem sede na localidade, tais como, juntas de vizinhos, centros de mães, sindicatos, associações de moradores e de comerciantes varejistas, centros de estudantes, clubes esportivos e outras organizações similares.

No caso específico da carne, o governo, desde o ano anterior já havia tomado a seu cargo o abastecimento e distribuição através da “Sociedade de Construcciones Agropecuárias” (SOCOAGRO). Para atingir o objetivo de controlar integralmente o comércio de carne e gado em pé, a SOCOAGRO proibiu o transporte de gado em pé sem licença especial, centralizou o abate nos matadouros da chamada rede nacional, fechou paulatinamente os pequenos matadouros municipais e centralizou o controle da importação.

Os funcionários do governo e os trabalhadores das empresas recém-estatizadas logo descobriram que atenderiam melhor a seus interesses individuais se desviassem a produção para o mercado-negro (o desvio era estimado 70% da produção das 535 empresas estatais), o que agravou ainda mais o abastecimento aos preços tabelados e generalizou a corrupção no país. O governo, naturalmente, explicava o problema peloaumento da demanda das classes de mais baixa rendaque antes estariam marginalizadas, bem como acusava a oposição de manobras especulativas com óbvia intenção política.

A verdade é que o mercado-negro expandiu-se vigorosamente. Com a inflação e a recusa do governo em reajustar os preços oficiais pagos aos agricultores, a produção de alimentos dirigia-se cada vez mais para o mercado negro. Na área industrial, por exemplo, o preço de um automóvel no mercado negro chegava a ser dez vezes maior que no oficial. O resultado foi o surgimento de dois sistemas de preços: um, subsidiado, através do sistema de distribuição estatal e dirigido à população de baixa renda; outro, o do florescente mercado-negro, dirigido às classes média e alta.

Ao lado da corrupção, começou a reinar no campo a mais completa anarquia, pois os grupos esquerdistas, especialmente o MIR-Movimiento de Izquierda Revolucionária, realizavam invasões de terras indiscriminadamente com a finalidade de apressar a reforma agrária, o que acabou conduzindo à violência.

Em meados de 1972, um ano e meio após a posse de Allende, a situação econômica do Chile era alarmante. O déficit público tornou-se insustentável, principalmente devido aos subsídios à chamada área social, as reservas internacionais estavam zeradas e a produção industrial em queda livre. O presidente Allende substituiu os ministros da Economia e da Fazenda. A nova equipe, em agosto de 1972 novamente desvalorizou a moeda, agora em 56,2%, aumentou os preços dos setores nacionalizados e permitiu reajustes de preços na agricultura, embora limitados. O resultado dessas medidas foi um brutal aumento na taxa de inflação: 22,7% em agosto, 22,2% em setembro e 15,2% em outubro. Em 12 meses, a inflação que já estava indo do patamar de 20% para o de 40%, pulou para 142,9%.

O déficit público em 1972 aumentou para 13% do PIB, a base monetária se expandiu 185,7% e a inflação chegou a 163,4%. O salário médio real caiu 19,6%, a Balança Comercial apresentou um déficit e o Balanço de Pagamentos fechou o ano com um déficit semelhante ao do ano anterior, que foi coberto pelo endividamento externo.

O ano de 1973 começou com o país já em situação caótica e em meio a uma radicalização política. Cubanos faziam parte da guarda pessoal de Allende, denominada“GAP-Grupo de Amigos do Presidente” (um desses cubanos, que se tornou chefe do GAP, casou-se com uma sobrinha do presidente). Outro sobrinho de Allende, Andrés Pascal Allende, que se encontrava preso e foi libertado pelo presidente, era um dos líderes do MIR, que se dedicava à prática de assaltos, seqüestros e invasão de terras.

Além da subversão em alta, esse ano iria encerrar-se com uma queda de 10,3% na produção agrícola, 2,3% na indústria, 6,4% no comércio e 5,6% no PIB. O déficit público representaria 24,7% do PIB, a inflação chegaria a 508,3% e o salário real cairia mais 46,3%.

Mas, para Salvador Allende, esse ano não terminou.

Em 11 de setembro de 1973 o governo foi deposto.


26 de maio de 2015
Carlos I.S. Azambuja é Historiador.

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