"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

quarta-feira, 21 de maio de 2014

FUTEBOL E COSMOLOGIA

 Impossível não pensar que o esporte moderno, aperfeiçoado numa Inglaterra protoindustrializada, tenha sido inspirado pelos modelos parlamentares republicanos, nos quais a escolha religiosa e a competição política não conduziam à morte do adversário, mas era um direito a ser respeitado.
 
Parlamentos eleitos e constituições revalidadas por todos num novo papel — o de cidadão, e não mais o de aldeão, plebeu ou aristocrata-cortesão — são os exemplos para essas atividades igualmente agregadoras como os esportes, nos quais o primeiro aprendizado é conhecer e aceitar as regras.
 
Só que o estádio não serve mais para a decisão política que definiria o destino de uma classe ou sociedade, de uma crença ou costume, mas para o gozo não utilitário de assistir a uma prova competitiva feroz, mas governada por normas e por árbitros imparciais.
 
Um primeiro ponto pode, então, ser assentado. O esporte exprime um cosmo e o jogo, por mais errático que seja o seu resultado, segue rotinas. Tal como uma fábrica inglesa de 1800, ele pode promover a vitória (lucros e produtividade) ou a derrota (vitória do competidor ou falência). Num outro plano, o esporte seria um instrumento de internalização de um tempo objetivo — uma duração quantificada e medida por um relógio. Uma temporalidade que não é feita pelas nossas atividades, mas que nos faz ou nos obriga a fazer certas coisas. Assim, o teatro, o cinema, as corridas de cavalo e todas as competições esportivas começam a ter um tempo para começar e terminar, e o usam como um limite de derrota ou vitória, já que nenhum time de futebol é vitorioso para sempre, mas apenas numa partida. Em outra, ele pode ter de enfrentar o peso da derrota.
Essa concretização do tempo que pode ser de trabalho ou lazer — e pode ser comprado ou poupado, mas não deve ser desperdiçado — é algo patente nos esportes modernos e no futebol que amamos e praticamos com maestria. A modernidade transforma o tempo em um jogador cuja atuação pode ser decisiva para o resultado de um jogo. Neste sentido, ele pode ser mais importante do que um jogador.
 
Numa disputa de Copa do Mundo, o tempo é tão sacralizado quanto o de um ritual religioso, digamos — sem pretender ofender suscetibilidades — de uma missa cantada. E tal como na missa, o campo de futebol, com suas linhas e círculos, reproduz na esfera do entretenimento esperanças, coragem, fé, confiança, generosidade, aplicação, disciplina, força de vontade, egoísmo e altruísmo. Todos esses elementos constitutivos do sagrado. Esse sagrado que Durkheim definia como sendo removido do ordinário e do profano.
 
A mais óbvia separação ocorre entre espectadores e jogadores. Os primeiros são profanos e desmarcados; os segundos são marcados e separados: são os que jogam e, como os antigos gladiadores, podem morrer. Estão interditados e circulam numa área tabu, semelhante à do padre no altar. Nela, o goleiro é o que guarda o sacrário, ou o gol que o representa, como o relicário que, se ficar intocado ou virgem, vai produzir a vitória num conjunto de pessoas intermediárias: jornalistas e personagens que fazem parte das margens do ritual.
 
Mas notem que, tal como o sagrado é dos atores e o profano dos torcedores, essa mesma segmentação é refeita no próprio jogo e faz parte de sua estrutura. Temos, assim, o “nosso time” — sagrado para nós; mas profano relativamente ao time adversário.
Ninguém pode eliminar essa oposição entre “nós e eles” que tanto perturba o mundo real. Pelo contrário, há incentivos para o combate de um lado e do outro, o que remete ao dualismo perpétuo do bem contra o mal. Sem isso, simplesmente não haveria movimento, jogo e significado.
 
O futebol é um rompimento controlado com a paz, na qual há uma licença para uma guerra em que os dois “exércitos” usam apenas uma bala: a bola, que é de todos e não é de ninguém. A “bola mobile’’, que segue quem a controla e a possui com mais competência. Empurrada no sacrossanto espaço do adversário, a bola — como uma hóstia ao contrário — santifica o doador dando-lhe pontos: uma proximidade do céu.
 
A metade de um campo de futebol é estruturalmente idêntica à metade de um templo cristão, inclusive com suas marcações retangulares. Neste esquema, quanto menor a demarcação, maiores o perigo e a sacralização. Como sugeri, o sacrário é o gol que, com sua rede, se torna uma porta invertida, aberta para dentro. Se o beisebol jogado na América estadunidense dramatiza o home run (a corrida para a fronteira e para casa) com que o individualismo americano tanto equaciona o sucesso, pois sair e voltar da base triunfante é o “êxito”, o nosso futebol simboliza a luta do bem contra o mal em toda a sua agonia.
Ainda mais...
 
21 de maio de 2014
Roberto DaMatta é antropólogo

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