"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

domingo, 25 de agosto de 2013

ASSIM CAMINHA A HUMANIDADE

 

Ao longo dos últimos dias a imagem de centenas de crianças sem vida, alinhadas num chão de cimento, assombra a comunidade internacional. Algumas estão enfileiradas ao lado dos pais, também envoltos em lençóis brancos, deixando à vista apenas seus rostos.

Todos têm fisionomia serena — perderam a agonia crispada que marcou as últimas horas de suas vidas. Chama a atenção, na improvisada alameda de cadáveres, a ausência de qualquer gota de sangue. Aquelas vidas atingidas por algum agente químico numa madrugada em Damasco parecem ter se apagado sozinhas.

Na guerra civil que há três anos estraçalha a Síria e já fez mais de 100 mil mortos, a ONU, os Estados Unidos e potências mundiais se deparam com indícios cada vez mais consistentes, embora conflitantes quanto à autoria, de que mais ataques químicos estejam nos planos de quem controla este arsenal no país.


Sírios tentam identificar corpos depois de ataque químico. Foto: AP
 
“Precisamos nos certificar de que não haverá uma proliferação de armas de destruição em massa”, advertiu pela primeira vez o presidente americano Barack Obama.

Por feliz coincidência, o Centro Belfer para Assuntos Internacionais e Científicos, da Universidade de Harvard, acaba de tornar público um relatório que serve de reflexão também para o atual imbróglio sírio. O estudo tem 40 páginas.

E apesar do título árido — Plutonium Mountain: Inside the 17-Year Mission to Secure a Legacy of Soviet Nuclear Testing (A montanha de plutônio — por dentro da missão de 17 anos para isolar um legado de testes nucleares soviéticos), o caso narrado nada tem de tedioso.

Ele reconstitui a determinação de um grupo de cientistas de três países que levaram 17 anos para nos presentear com algo que somente agora sabemos existir. Trata-se de um modesto monumento de três faces, em pedra escura, fincado no pé de uma remota colina rochosa do Cazaquistão, com uma inscrição trilíngue, em inglês, russo e cazaque: “1996-2012. O mundo se tornou mais seguro.”

A inscrição resume o êxito da maior e mais complexa operação de desativação de material nuclear desde a Guerra Fria.

Sabia-se que a União Soviética realizara quase todos os seus testes nucleares numa área despovoada do Cazaquistão oriental.

Equivalente, em tamanho, ao estado de Alagoas, o Centro de Semipalatinsk fora palco de 456 explosões, 116 das quais na atmosfera e 340 subterrâneas no interior da Montanha Degelen.

Algumas eram explosões atômicas; outras, experiências para estudar o impacto de explosivos convencionais sobre o plutônio e o urânio enriquecido, ou para testar a segurança de armas nucleares durante acidentes simulados.

Com o colapso da União Soviética, em 1991, e sua retirada do Cazaquistão, tudo foi abandonado à própria sorte — o centro de testes, equipamentos, um emaranhado de 180 túneis não lacrados, silos repletos de resíduos de plutônio.

O saque às instalações não tardou. Para os moradores das localidades vizinhas, trilhos que antes transportavam artefatos nucleares valiam pelo metal, cabos elétricos, pelo cobre.

Ninguém parecia se interessar pelo material nuclear. Uma verba militar do Pentágono que financiara a construção de barreiras de acesso aos túneis de pouco servira.

Em 1998, o cientista Siegfried Hecker se aposentara da direção do Laboratório Nacional de Los Alamos e decidiu fazer uma périplo de nove dias por Semipalatinsk. Alarmou-se ao ver predadores fazerem escavações mecanizadas à procura de metais vendáveis.

No relatório de viagem que elaborou ao final, comparou a Montanha Degelen a uma mina de plutônio em potencial para terroristas e bucaneiros.

Visto que apenas os russos tinham o mapa dessa mina e sabiam o tipo de material tóxico ali enterrado, decidiu estabelecer uma ponte de confiança científica à margem da política e das respectivas burocracias governamentais. Encontrou em Radi Ilkaev, o diretor do laboratório nuclear Arzamas-16, o interlocutor certo.

Apesar da desconfiança e da cautela do lado russo, formaram-se duas equipes com o mesmo propósito de blindar o centro de testes abandonado.

A eles se juntou o governo do Cazaquistão, ávido por limpar seu território da indigesta contaminação soviética. Não sabiam, então, que custaria 150 milhões de dólares nem que levaria 17 anos.

Começaram por encontrar uma solução para um campo de explosões em silos verticais, onde resíduos de plutônio haviam se acumulado quase na superfície do solo: copiaram a fórmula adotada para o reator de Chernobyl, encobrindo a área com um gigantesco sarcófago de concreto.

Os Estados Unidos entraram com o dinheiro; a Rússia com a tecnologia; o Cazaquistão com a mão de obra. O colosso foi concluído em 2003.

Para blindar a Montanha Degelen, a poucos quilômetros de distância, foi preciso esperar até 2005. Só então os russos entregaram os dados mais comprometedores sobre o que ficara no seu interior: mais de 100 quilos de plutônio recuperável, o suficiente para fabricar uma dúzia de bombas nucleares.

Três dos sítios eram de altíssimo risco. Num só local, além de plutônio de alta qualidade ficara também todo o equipamento usado para fabricar uma bomba.

Foram necessários outros sete anos para que a última caverna da montanha fosse considerada vedada e os cientistas inaugurassem a singela plaqueta. Neste caso, a Humanidade avançou um passo em 17 anos. No caso da Síria, podemos estar recuando 25 anos — o último ataque maciço com armas químicas foi obra de Saddam Hussein, em 1988.

25 de agosto de 2013
Dorrit Harazim é jornalista.
O Globo

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