Leio nos jornais que, no Estado americano de Ohio, um condenado demorou quase meia hora a morrer
Não é fácil encontrar um defensor da pena de morte. Mas, às vezes, deparamos com um exemplar da espécie. E então perguntamos: qual a melhor forma de matar o condenado? Fuzilamento? Decapitação? Câmara de gás?
A pergunta horroriza os humanistas. Por isso, eles preferem a "injeção letal", uma forma parecida com a vulgar anestesia cirúrgica. É mais "limpo", "indolor", "civilizado", dizem eles.
Nem sempre. Leio nos jornais que, no Estado americano de Ohio, um condenado demorou quase meia hora a morrer. Tudo porque os Estados Unidos, privados das drogas tradicionais europeias, usaram um novo coquetel de medicamentos.
Resultado: foi agonia até o fim, com o condenado em sufocamento e dor extrema.
Ponto prévio: sou radicalmente contra a pena de morte.
Motivos morais básicos: o homicídio humano não legitima o homicídio de Estado.
Além disso, imagino que para certos tipos de psicopatas a promessa de serem transformados em "mártires" do sistema judicial é uma atração suplementar para cometerem certas barbaridades midiáticas.
O julgamento de Timothy McVeigh, o famoso extremista de Oklahoma City que matou mais de 150 pessoas, foi um caso pungente de orgulho e vaidade. Se os Estados Unidos lhe tivessem negado a morte, essa teria sido a maior derrota daquela vida.
A justiça americana fez-lhe a vontade e McVeigh, na hora da execução, até se deu ao luxo de recitar "Invictus", o poema de William Henley que acompanhou Nelson Mandela na prisão de Robben Island. McVeigh, tal como Mandela, também era "senhor do seu destino" e "capitão da sua alma".
Aplausos? Eles existem, sim. E, nos últimos tempos, tenho escutado alguns na literatura crítica de Ernest van den Haag. Apresentações: o professor Van den Haag (1914-2002) foi um eminente sociólogo e jurista que, remando contra a corrente, defendeu a pena de morte com todas as letras.
E o argumento central de Van den Haag é simples e difícil de refutar: para certos criminosos, a morte é a única forma de proteger a comunidade. O professor Van den Haag não fala do tradicional papel "dissuasor" da pena de morte, embora não seja insensível a ele.
O que interessa a Van den Haag é contestar o conhecido argumento de que a prisão perpétua é tão eficaz quanto a pena capital.
Se fecharmos um criminoso numa cela para o resto da vida, já estamos a proteger a comunidade --e, claro, a evitar os erros judiciais que continuam a condenar inocentes à morte.
O professor Van den Haag discorda frontalmente desse raciocínio. Porque, para ele, a palavra "comunidade" não se limita ao mundo que existe fora do presídio. Também existe uma comunidade dentro do presídio. Uma comunidade de guardas e prisioneiros que têm igual direito a uma proteção absoluta e que normalmente são esquecidos ou ignorados nos debates sobre a matéria.
Para ele, quando a punição máxima fica apenas pela prisão perpétua, sem existir um castigo mais terminal, o condenado sabe que nada tem a perder. A tentativa de fuga; a violência contra guardas e prisioneiros; a repetição de novos homicídios --tudo isso é possível porque o criminoso não teme a punição última: perder a própria vida.
É essa "isenção", aliás, que funciona como um incentivo para que certos criminosos atuem dentro dos presídios com uma perversa sensação de impunidade. Como responder a isto?
Lembrando duas coisas, creio. Em primeiro lugar, é preciso reconhecer que Van den Haag tem razão ao admitir que a prisão perpétua pode ser um incentivo ao crime pela ausência de qualquer consequência mais grave para o criminoso. Para usar o ditado, perdido por um, perdido por mil.
Mas isso não legitima o raciocínio seguinte do autor de que só a morte é eficaz. Ironicamente, é possível usar o mesmo argumento de Van den Haag para defender que a única forma de desarmar um criminoso dentro da prisão passa por conceder-lhe a possibilidade de recuperar a liberdade no futuro. De acordo com certas condutas e limites.
Vem nos livros: os homens são especialmente perigosos, não quando temem a morte --mas quando perdem toda a esperança.
Não é fácil encontrar um defensor da pena de morte. Mas, às vezes, deparamos com um exemplar da espécie. E então perguntamos: qual a melhor forma de matar o condenado? Fuzilamento? Decapitação? Câmara de gás?
A pergunta horroriza os humanistas. Por isso, eles preferem a "injeção letal", uma forma parecida com a vulgar anestesia cirúrgica. É mais "limpo", "indolor", "civilizado", dizem eles.
Nem sempre. Leio nos jornais que, no Estado americano de Ohio, um condenado demorou quase meia hora a morrer. Tudo porque os Estados Unidos, privados das drogas tradicionais europeias, usaram um novo coquetel de medicamentos.
Resultado: foi agonia até o fim, com o condenado em sufocamento e dor extrema.
Ponto prévio: sou radicalmente contra a pena de morte.
Motivos morais básicos: o homicídio humano não legitima o homicídio de Estado.
Além disso, imagino que para certos tipos de psicopatas a promessa de serem transformados em "mártires" do sistema judicial é uma atração suplementar para cometerem certas barbaridades midiáticas.
O julgamento de Timothy McVeigh, o famoso extremista de Oklahoma City que matou mais de 150 pessoas, foi um caso pungente de orgulho e vaidade. Se os Estados Unidos lhe tivessem negado a morte, essa teria sido a maior derrota daquela vida.
A justiça americana fez-lhe a vontade e McVeigh, na hora da execução, até se deu ao luxo de recitar "Invictus", o poema de William Henley que acompanhou Nelson Mandela na prisão de Robben Island. McVeigh, tal como Mandela, também era "senhor do seu destino" e "capitão da sua alma".
Aplausos? Eles existem, sim. E, nos últimos tempos, tenho escutado alguns na literatura crítica de Ernest van den Haag. Apresentações: o professor Van den Haag (1914-2002) foi um eminente sociólogo e jurista que, remando contra a corrente, defendeu a pena de morte com todas as letras.
E o argumento central de Van den Haag é simples e difícil de refutar: para certos criminosos, a morte é a única forma de proteger a comunidade. O professor Van den Haag não fala do tradicional papel "dissuasor" da pena de morte, embora não seja insensível a ele.
O que interessa a Van den Haag é contestar o conhecido argumento de que a prisão perpétua é tão eficaz quanto a pena capital.
Se fecharmos um criminoso numa cela para o resto da vida, já estamos a proteger a comunidade --e, claro, a evitar os erros judiciais que continuam a condenar inocentes à morte.
O professor Van den Haag discorda frontalmente desse raciocínio. Porque, para ele, a palavra "comunidade" não se limita ao mundo que existe fora do presídio. Também existe uma comunidade dentro do presídio. Uma comunidade de guardas e prisioneiros que têm igual direito a uma proteção absoluta e que normalmente são esquecidos ou ignorados nos debates sobre a matéria.
Para ele, quando a punição máxima fica apenas pela prisão perpétua, sem existir um castigo mais terminal, o condenado sabe que nada tem a perder. A tentativa de fuga; a violência contra guardas e prisioneiros; a repetição de novos homicídios --tudo isso é possível porque o criminoso não teme a punição última: perder a própria vida.
É essa "isenção", aliás, que funciona como um incentivo para que certos criminosos atuem dentro dos presídios com uma perversa sensação de impunidade. Como responder a isto?
Lembrando duas coisas, creio. Em primeiro lugar, é preciso reconhecer que Van den Haag tem razão ao admitir que a prisão perpétua pode ser um incentivo ao crime pela ausência de qualquer consequência mais grave para o criminoso. Para usar o ditado, perdido por um, perdido por mil.
Mas isso não legitima o raciocínio seguinte do autor de que só a morte é eficaz. Ironicamente, é possível usar o mesmo argumento de Van den Haag para defender que a única forma de desarmar um criminoso dentro da prisão passa por conceder-lhe a possibilidade de recuperar a liberdade no futuro. De acordo com certas condutas e limites.
Vem nos livros: os homens são especialmente perigosos, não quando temem a morte --mas quando perdem toda a esperança.
18 de fevereiro de 2014
João Pereira Coutinho, Folha de SP
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