Em artigos publicados neste espaço opinativo sempre defendi o dever de denúncia da imprensa e seu relevante papel no resgate da ética na vida pública. Foi assim no caso do mensalão. Sobrou, então, muita crítica injusta ao trabalho da mídia. Jornais e repórteres foram acusados da prática de prejulgamento e de descuido com a presunção de inocência. Políticos e governantes devassados pelos holofotes da imprensa em situações delituosas e constrangedoras, seja qual for o colorido partidário, vislumbram atitudes de engajamento onde só há empenho de apuração.
Agora um escândalo potencialmente explosivo sacode o coração do tucanato. É surpreendente o que vai aflorando da investigação em curso no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) sobre a formação de cartel em licitações para a compra de equipamentos, construção e manutenção de linhas de trens e metrô em São Paulo. O cartel também atuou em Brasília e o Ministério Público Federal vê impressões digitais do grupo em licitações federais.
A reação inicial do governo paulista foi errática. Em vez de enfrentar a denúncia, sem dúvida contundente, adotou a teoria conspiratória de que o Cade, órgão ligado ao Ministério da Justiça, agia como "polícia política" do PT ao vazar, de forma seletiva e a conta-gotas, documentos em seu poder sobre o escândalo. As críticas ao trabalho da imprensa já começam a pipocar. Afirma-se que no amanhecer de uma eleição em que o PT joga todas as fichas para quebrar a hegemonia tucana a imprensa estaria colaborando para a desestabilização do PSDB em São Paulo. Lançam-se, novamente, suspeitas sobre o trabalho dos jornalistas. Esquece-se que não somos pró ou contra nenhum partido, nem fazemos jornalismo seletivo. Nosso compromisso é com a verdade e com o leitor. Nada mais.
Tentam jogar nas costas da mídia suposta politização de suas pautas. Imprensa boa, para os políticos, é imprensa a favor. Nosso papel é mostrar a verdade, independentemente de eventuais simpatias ou antipatias. É exatamente isso que faz do jornalismo um dos pilares da democracia. Impõe-se, como é lógico, redobrado cuidado na apuração. Não podemos, e não devemos, fazer uma competição de furos em prejuízo da qualidade. O brilho da manchete não está acima da dignidade das pessoas. É preciso ouvir o outro lado, evitar precipitação, ponderar antes de publicar. Mas isso não significa renunciar ao dever ético da denúncia.
Na verdade, os brasileiros assistem, mais uma vez, a uma vertiginosa sucessão de escândalos da novela da corrupção. Mas não devemos perder a esperança. Trata-se de um processo purificador. O Brasil não está pior, mais corrupto. Simplesmente as lentes de aumento da imprensa são mais sofisticadas. Temos mais liberdade de imprensa e de expressão. A democracia ventila tudo. Ficamos sabendo mais das coisas. E isso é bom. Manifesto, portanto, otimismo com as lições do novo escândalo.
Os jornalistas, segundo alguns, estariam extrapolando seu papel e assumindo funções reservadas à polícia e ao Poder Judiciário. Outros, preocupados com a possibilidade de tudo terminar em pizza, gostariam de ver repórteres transformados em juízes e agentes policiais. Outros ainda aplaudem nosso trabalho na medida exata em que tentam instrumentalizar nossas pautas como armas de ataque a adversários e inimigos. Estamos fazendo o nosso trabalho. Só isso.
O jornalismo, como qualquer atividade humana, está sujeito a erros. Um balanço objetivo, no entanto, indica um saldo favorável ao trabalho da reportagem. Na verdade, a imprensa mais uma vez se tornou uma instância importante no combate aos malfeitos e à impunidade, qualquer que seja o matiz partidário dos supostos envolvidos. A repercussão do mergulho no cerne das irregularidades dá alento à cidadania.
Ilude-se quem imagina que tudo ficará como estava. Enganam-se os que pretendem instrumentalizar a imprensa. O Brasil, no mensalão e agora, está passando por uma profunda mudança cultural. O que está em jogo não é um partido, mas a imensa indignação com a impunidade, venha de onde vier. E é aí que nós, jornalistas, e você, caro leitor, podemos desempenhar papel decisivo. É importante que o Ministério Público, no cumprimento de seus deveres constitucionais, se sinta respaldado pela sociedade. Mas é também importante, a exemplo do que ocorreu nas recentes passeatas da cidadania, que a opinião pública não admita tentativas, abertas ou camufladas, de capitalização ou partidarização da indignação pública. Sobretudo, é essencial que o Judiciário, serenamente e sem engajamentos espúrios, esteja à altura do clamor popular.
Em nome do indispensável amplo direito de defesa, a efetivação da justiça pode acabar se transformando numa arma dos poderosos de ontem e de hoje e numa sistemática frustração dos mais desprotegidos. Aplica-se aos desvalidos o rigor da lei e se concedem aos afiliados do poder as vantagens dos infinitos recursos que o Direito reserva a quem pode pagar uma boa defesa.
A democracia é o melhor antídoto contra o veneno da desigualdade. Os caminhos democráticos lembram as sendas de montanha: o excursionista está sempre subindo, até mesmo quando parece que está descendo. A democracia é um lento aprendizado. Mas funciona. A consequência da corrupção deve ser a punição.
A sociedade, ao contrário do que pensam os céticos e pessimistas, pode emergir desses episódios num patamar mais elevado. Graças ao papel da imprensa e ao cumprimento do seu dever de denúncia, seja qual for o desfecho das investigações em andamento, depois delas estaremos melhores. E o efeito cascata, espero, será irreversível.
19 de agosto de 2013
Carlos Alberto Di Franco, O Estado de São Paulo
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