‘Com um braço só’
Um dos aspectos menos atraentes da personalidade humana é a tendência de muitas pessoas de só condenar os vícios que não praticam, ou pelos quais não se sentem atraídas. Um caloteiro que não fuma, não bebe e não joga, por exemplo, é frequentemente a voz que mais grita contra o cigarro, a bebida e os cassinos.
Mas fecha a boca, os ouvidos e os olhos, como os três prudentes macaquinhos orientais, quando o assunto é honestidade no pagamento de dívidas pessoais. É a velha história: o mal está sempre na alma dos outros.
Pode até ser verdade, infelizmente, quando se trata de política brasileira, em que continua valendo, mais do que nunca, a máxima popular do “pega um, pega geral”.
Mas a última flor nascida no orquidário nacional de escândalos, e que já recebeu o nome genérico de cartel Siemens ─ uma maciça conspiração para fraudar licitações públicas, sobretudo em São Paulo e na área ferroviária ─, passou de muito a mera prática da hipocrisia.
No caso, quem está na gerência do orquidário é o PSDB, o único grupo político brasileiro ao qual se pode chamar de partido da oposição, e que há anos critica a corrupção frenética praticada nos governos do PT.
Só que, em vez de ficar acusando o adversário por delinquências que parecem não tentá-lo, o PSDB foi pego numa demonstração de que pode ser atraído, e muito, por elas ─ ou seja, ficou dando ao Brasil lições de moral sobre os vícios do PT, em público, e praticando precisamente esses mesmos vícios, em particular.
Os delitos, que começaram a acontecer há pelo menos quinze anos, em 1998, encontram-se de re
pente na conhecidíssima categoria dos fatos que serão “rigorosamente apurados” (no Brasil, como se sabe, há dois tipos de apuração oficial, as “rigorosas” e as outras, que ninguém consegue explicar direito o que são: têm em comum, entre si, o fato de sempre darem mais ou menos na mesma).
O que há de certo é que durante dez anos seguidos, entre 1998 e 2008, pelo menos quinze empresas se juntaram, a portas fechadas, para combinar previamente o resultado de licitações no valor de 1,2 bilhão de reais para a venda de trens, metrôs e equipamento ferroviário ao governo.
É indiscutível, também, que entre os anos de 2000 e 2007 duas linhas do metrô de São Paulo, outras duas de trens metropolitanos, também em São Paulo, e o metrô de Brasília foram contaminados por ladroagem grosseira ─ só aí, calcula-se, o prejuízo para o contribuinte pode ter ficado na casa dos 450 milhões de reais.
Quem veio com as denúncias não foi o PT; foi uma das próprias cabeças desse bicho que se nutre de concorrências fraudadas, a Siemens, que houve por bem denunciar-se a si mesma para obter penas menores num eventual processo, que até hoje não veio.
Não há nenhuma dúvida, enfim, de que durante esse período todo quem esteve com a chave do cofre pagador foi o PSDB de São Paulo.
O que se tem, ao fim e ao cabo, é mais ou menos o seguinte: uma roubalheira iniciada há quinze anos, e denunciada por um dos próprios participantes, não havia merecido até agora, quando o caso enfim explodiu em público, o menor esforço de investigação séria por parte das autoridades paulistas.
Se o governador Geraldo Alckmin e o ex-governador José Serra, para ficar nos nomes mais eminentes dessa história, acham mesmo que São Paulo foi apenas uma vítima, e que nenhuma autoridade estadual tem coisa alguma a ver com isso tudo, por que os fatos nunca foram expostos em plena luz do sol, entre 1998 e hoje?
O PSDB deu uma resposta da pior qualidade às acusações — o mesmo tipo de resposta viciada que acusa o PT de dar a cada denúncia de corrupção que recebe. Acusou os acusadores; fez as cansadíssimas perguntas a respeito de “quem estaria por trás”, ou “quem se beneficia” disso tudo.
Estão por trás e se beneficiaram, é óbvio, os que ganharam com os delitos praticados — e é positivamente certo que, desta vez, o PT não teve nada a ver com a história.
As reações de Brasília não foram melhores. Estaríamos, na política brasileira de hoje. reduzidos a um concurso de auditório do tipo “Quem quer roubar?”.
Um diz: “Eu roubo, mas você também”. O outro responde: “Eu roubo, mas você rouba mais”.
Nesse caso, é melhor chamar como árbitro o general Álvaro Obregón, chefe militar e político no México dos anos 10 e 20 do século passado.
Obregón, entre outras proezas, perdeu o braço direito numa batalha contra Pancho Villa e, segundo o anedotário mexicano, candidatou-se depois à Presidência da República com o seguinte lema:
“Votem em mim, que tenho um braço só. Vou roubar a metade do que os outros”.
19 de agosto de 2013
Mas fecha a boca, os ouvidos e os olhos, como os três prudentes macaquinhos orientais, quando o assunto é honestidade no pagamento de dívidas pessoais. É a velha história: o mal está sempre na alma dos outros.
Pode até ser verdade, infelizmente, quando se trata de política brasileira, em que continua valendo, mais do que nunca, a máxima popular do “pega um, pega geral”.
Mas a última flor nascida no orquidário nacional de escândalos, e que já recebeu o nome genérico de cartel Siemens ─ uma maciça conspiração para fraudar licitações públicas, sobretudo em São Paulo e na área ferroviária ─, passou de muito a mera prática da hipocrisia.
No caso, quem está na gerência do orquidário é o PSDB, o único grupo político brasileiro ao qual se pode chamar de partido da oposição, e que há anos critica a corrupção frenética praticada nos governos do PT.
Só que, em vez de ficar acusando o adversário por delinquências que parecem não tentá-lo, o PSDB foi pego numa demonstração de que pode ser atraído, e muito, por elas ─ ou seja, ficou dando ao Brasil lições de moral sobre os vícios do PT, em público, e praticando precisamente esses mesmos vícios, em particular.
Os delitos, que começaram a acontecer há pelo menos quinze anos, em 1998, encontram-se de re
pente na conhecidíssima categoria dos fatos que serão “rigorosamente apurados” (no Brasil, como se sabe, há dois tipos de apuração oficial, as “rigorosas” e as outras, que ninguém consegue explicar direito o que são: têm em comum, entre si, o fato de sempre darem mais ou menos na mesma).
O que há de certo é que durante dez anos seguidos, entre 1998 e 2008, pelo menos quinze empresas se juntaram, a portas fechadas, para combinar previamente o resultado de licitações no valor de 1,2 bilhão de reais para a venda de trens, metrôs e equipamento ferroviário ao governo.
É indiscutível, também, que entre os anos de 2000 e 2007 duas linhas do metrô de São Paulo, outras duas de trens metropolitanos, também em São Paulo, e o metrô de Brasília foram contaminados por ladroagem grosseira ─ só aí, calcula-se, o prejuízo para o contribuinte pode ter ficado na casa dos 450 milhões de reais.
Quem veio com as denúncias não foi o PT; foi uma das próprias cabeças desse bicho que se nutre de concorrências fraudadas, a Siemens, que houve por bem denunciar-se a si mesma para obter penas menores num eventual processo, que até hoje não veio.
Não há nenhuma dúvida, enfim, de que durante esse período todo quem esteve com a chave do cofre pagador foi o PSDB de São Paulo.
O que se tem, ao fim e ao cabo, é mais ou menos o seguinte: uma roubalheira iniciada há quinze anos, e denunciada por um dos próprios participantes, não havia merecido até agora, quando o caso enfim explodiu em público, o menor esforço de investigação séria por parte das autoridades paulistas.
Se o governador Geraldo Alckmin e o ex-governador José Serra, para ficar nos nomes mais eminentes dessa história, acham mesmo que São Paulo foi apenas uma vítima, e que nenhuma autoridade estadual tem coisa alguma a ver com isso tudo, por que os fatos nunca foram expostos em plena luz do sol, entre 1998 e hoje?
O PSDB deu uma resposta da pior qualidade às acusações — o mesmo tipo de resposta viciada que acusa o PT de dar a cada denúncia de corrupção que recebe. Acusou os acusadores; fez as cansadíssimas perguntas a respeito de “quem estaria por trás”, ou “quem se beneficia” disso tudo.
Estão por trás e se beneficiaram, é óbvio, os que ganharam com os delitos praticados — e é positivamente certo que, desta vez, o PT não teve nada a ver com a história.
As reações de Brasília não foram melhores. Estaríamos, na política brasileira de hoje. reduzidos a um concurso de auditório do tipo “Quem quer roubar?”.
Um diz: “Eu roubo, mas você também”. O outro responde: “Eu roubo, mas você rouba mais”.
Nesse caso, é melhor chamar como árbitro o general Álvaro Obregón, chefe militar e político no México dos anos 10 e 20 do século passado.
Obregón, entre outras proezas, perdeu o braço direito numa batalha contra Pancho Villa e, segundo o anedotário mexicano, candidatou-se depois à Presidência da República com o seguinte lema:
“Votem em mim, que tenho um braço só. Vou roubar a metade do que os outros”.
19 de agosto de 2013
Publicado na edição impressa de VEJA
J. R. GUZZO
J. R. GUZZO
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