"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

ESQUISITO E RARO: A DISTÂNCIA ENTRE O PORTUGUÊS E O ESPANHOL

“Vivo na Europa há dez anos e gostaria de entender a relação de algumas de nossas palavra em português com as de nosso primo espanhol. No português esquisito é algo estranho, fora dos padrões, e raro é algo que não acontece com frequência. Já em espanhol esquisito e raro significam algo bom, com toques de requinte.” (Samuel Freitas)

A consulta de Samuel é interessante por ilustrar os limites da etimologia para o conhecimento atual do sentido e do peso das palavras em seus respectivos idiomas. Dito de outra forma: como ele bem observou, a correspondência semântica entre o português e o espanhol nos casos de esquisito/exquisito e raro/raro (como no de muitos outros vocábulos) envolve mesmo uma assimetria que pode levar a traduções equivocadas. No entanto, essas palavras vieram exatamente da mesma fonte, com o mesmo significado básico, que o uso tratou mais tarde de matizar.

Vamos começar pelo caso mais simples. Raro é, sim, a tradução do espanhol raro na maioria dos contextos. Trata-se de palavras provenientes, por via erudita, do latim rarus (“espaçado, esparso, pouco denso”), vocábulo que pelo caminho vulgar deu em ralo. Nã há diferença entre as acepções principais de raro na língua de Camões e na de Cervantes: “que não é comum, vulgar; que poucas vezes se encontra” (Houaiss); “extraordinário, pouco comum ou frequente” (Real Academia Española).

A distinção se dá apenas em acepções secundárias, extensões daquele núcleo semântico original. De fato, raro passou a ser empregado com frequência no espanhol moderno como sinônimo de “excelente, de qualidade incomum”. O mesmo não se deu em português, pelo menos não com tanta força. Expressões como “beleza rara” são usuais e apontam para a mesma ideia, mas não tiveram (ainda?) força para dar ao adjetivo autonomia como uma palavra intensamente elogiosa.
O caso de esquisito/exquisito é semelhante, mas ainda mais curioso. Aqui o processo de distanciamento semântico entre o português e o espanhol é mais acentuado. Ambas as palavras têm como matriz o latim exquisitus, “seleto, procurado diligentemente, escolhido a dedo, requintado”. O sentido do termo latino era furiosamente positivo, como se vê.

Também é assim o sentido preservado no espanhol exquisito, “de singular e extraordinária qualidade”. O mesmo se dá no inglês exquisite e no francês exquis, adjetivos empregados para qualificar o que denota requinte, o que é deliciosamente refinado. Tal acepção, convém registrar, existe também em português. O que ocorre é que no Brasil ela foi se tornando cada vez mais rara, restrita a velhos livros, enquanto o sentido expandido e levemente negativo de “estranho, anormal, difícil de explicar” abria caminho para outro, este abertamente negativo, de “que tem aspecto feio, desajeitado ou desagradável”. Estas últimas acepções são, sem dúvida, as mais frequentes em nossa linguagem comum há muito tempo.

Como curiosidade, vale registrar que o inglês exquisite ensaiou trilhar um caminho parecido com o nosso esquisito. Entre os séculos XV e XVIII, segundo o dicionário etimológico de Douglas Harper, foi uma palavra da moda que se usava para qualificar “qualquer coisa (boa ou ruim, tanto uma tortura quanto uma obra de arte) elevada a uma condição altamente rebuscada, às vezes com conotações de reprovação”. Tal sentido, porém, caiu em desuso na língua de Shakespeare.

29 de agosto de 2013
Veja

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