Sempre entendi a vida de um homem como uma resultante, em primeiro lugar do acaso, em segundo da vontade de cada um. Nasci no campo, de família pobre de camponeses, e consegui viver em três países da Europa e bater pernas por boa parte do mundo. Dependeu um pouco de minha vontade. E mais ainda do acaso.
Já contei. Eu estudava em uma escola rural, na divisa entre Brasil e Uruguai. Findo o curso primário, bom em matemática, o máximo que podia aspirar era ser caixeiro nalgum bolicho das Três Vendas ou Ponche Verde, uma das poucas chances de escapar ao rabo do arado. Findas as provas, atrelei o tordilho à aranha. Uma fase havia terminado em minha vida. Voltava ao campo, talvez para lá morrer.
Dei de rédeas ao tordilho, a aranha já descia o lançante da coxilha. Foi quando Dona Ivone Garrido, uma professora vinda de Dom Pedrito para fiscalizar as provas, atravessou o alambrado de sete fios que cercava o colégio e gritou: "pára, Clotilde, teu filho é um gênio, ele não pode voltar para o campo". Minha mãe, que só queria ouvir isto, me tomou as rédeas das mãos e esbarrou o tordilho. Daqueles segundos geridos pelo deus Acaso – e aqui começa o mistério – decorrem minhas andanças e estas linhas.
Outros acasos me levaram para cá e para lá. Por acaso, encontrei a mulher que preencheu minha vida e foi companheira nos bons e maus momentos. Por acaso, e um pouco de volição, fui para a Suécia. Por acaso, li uma convocatória de bolsas para a França num jornal, concorri e ganhei quatro anos em Paris. Por acaso, tropecei em um livro de Sábato e daí decorreu um doutorado. Claro que havia sempre uma vontade permeando os acasos. Mas sem os acasos, minha vida não teria sido a que foi.
Cientistas buscam todos os dias causas genéticas para comportamentos e opções de cada indivíduo. Já se buscou o gene do alcoolismo. Não me consta que tenha sido encontrado. Se o fosse, seria muito oportuno. Qualquer pinguço poderia justificar-se cientificamente: "Que posso fazer? É genético. Garçom, dose dupla, por favor". Nada mais confortável que atribuir a uma predestinação biológica o que depende de uma decisão.
Buscou-se depois um gene bem mais conveniente, o do homossexualismo. Mas os engenheiros genéticos parecem ser avessos a leituras históricas. No Ocidente, o homossexualismo era um comportamento normal e até mesmo desejável, antes que o cristianismo contaminasse a cultura helênica com a camisa-de-força de seu conceito de amor, como algo único e direcionado ao sexo oposto. Aliás, este poderoso mito literário ocidental, o amor, nasce na Grécia, com os poemas de Safo de Lesbos, e é antes de tudo homossexual. Em todo caso, uma causa biológica para esta opção facilitaria a vida de muitos efebos sem maior cultura histórica. “É genético, querido”.
O que está sendo cada vez mais insólito de admitir é que alguém é homossexual porque decidiu ser homossexual, porque gosta de relacionar-se com o mesmo, em suma, porque é livre de decidir com quem quer se relacionar.
Buscou-se também o gene da inteligência. Epa! Terreno minado. Imagine se este gene fosse politicamente incorreto, com preferência por certas raças. Encontrá-lo seria um desastre. Deixa pra lá, melhor não insistir nesta pesquisa.
Há uns bons quinze anos, os jornais anunciaram outro brilhante achado dos cientistas. Pois estes senhores conseguiram produzir, por meio de engenharia genética, um rato que permanece fiel a um parceiro. Esse animal normalmente fútil, dizem as agências, tornou-se um amante mais fiel depois de receber genes do arganaz, um roedor conhecido por sua fidelidade. Segundo o resultado, a dedicação a um só parceiro, durante a vida toda, talvez seja uma questão de presença no cérebro de uma determinada química, que associa o amor ao hábito.
Estudos com os arganazes mostraram que a sensibilidade ao hormônio vasopressina determinava se o macho da espécie acasalava com várias fêmeas ou se formava um casal com um delas para o resto da vida. Para mudar o comportamento roedores, bastou manipular o mecanismo regulatório da vasopressina.
No que diz respeito aos arganazes, não sei. Quanto ao ser humano, fidelidade vai depender em boa parte do acaso. Se peguei esta rua e não aquela, se ao pegar esta rua tropecei com esta ou aquela mulher, se indo a Paris encontrei uma macedônia e se ela, também por acaso, foi para Paris. Ou indo a Suécia encontrei uma finlandesa, que também por acaso,foi cair em Estocolmo. Se cultivo por razões religiosas a fidelidade, ou se não a cultivo por ser ateu. Em suma, vai depender das circunstâncias e de um ato de vontade meu, jamais de um gene.
Somos infiéis porque a vizinha é linda. Porque aquela aluna quer uma pedagogia mais personalizada. Porque aquela moça no bar nos olhou com um olhar mais quente. Porque as formas daquela transeunte distraída mexeram com nossos hormônios. Em suma, pela elementar razão de que... somos livres. Da mesma forma, sempre me pareceu que permanecer fiel a um parceiro fosse decisão a ser tomada por cada um. Nada disso. Segundo os doutos cientistas, liberdade é mito. Você não escolhe nada, a biologia é que determina suas ações. Tudo era genético, o arganaz que o diga.
A busca de uma base genética para explicar comportamentos isenta todo homem de qualquer responsabilidade. Sou bêbado? Não tenho culpa alguma, estava nos genes. Sou homossexual? Foi sem querer, a genética determinou. Até aqui, disto não decorrem maiores consequências. O problema surge quando a genética busca justificar o crime, absolvendo todo e qualquer criminoso.
Li há pouco um artigo preocupante na Zero Hora. Fala de um ex-detento que, anos depois de libertado, senta de novo no banco dos réus. Voltou a furtar, é o que dizem. Como estamos falando de um reincidente, o juiz achou por bem descobrir se há algo de errado no cérebro do acusado. A perícia informa que ele tem um córtex cingulado anterior (ACC, na sigla em inglês) preguiçoso. Agora a acusação pede perpétua, porque um córtex dessa lavra não merece lugar entre os cidadãos de bem (os bem-acerebrados, diga-se), e a defesa vai se vacinando com a tese de que ninguém tem culpa por nascer com um parafuso a menos: o réu não passa de um robô programado para furtar.
O julgamento proposto é imaginário, mas a perícia se baseia em um estudo bastante real e recente, liderado pelos neurocientistas americanos Kent Kiehl e Eyal Aharoni. Eles monitoraram a atividade cerebral de 96 apenados e constataram que aqueles com ACC menos ativo tinham duas vezes mais chances de voltar a cometer crimes nos quatro anos seguintes à libertação.
O artigo cita um caso clássico da literatura jurídica, o americano Donta Page, que confessou ter estuprado e matado a facadas uma jovem em 1999, escapou da pena de morte e foi sentenciado à prisão perpétua. A defesa alegou que espancamentos durante a infância haviam danificado o cérebro de Page. Ele não tinha escolha senão ser violento.
Ou seja, livre arbítrio não existe. Todo homem é refém do seu passado. Ou de seus genes. Nesta época em que há uma tendência generalizada a absolver todo criminoso, a tese faz fortuna. Vai ver que Zé Dirceu, José Genoíno et caterva não podiam deixar de ser corruptos. A corrupção estava no sangue, ou melhor, nos genes. Não tinham nenhuma outra opção a não ser corromper-se. E dizer que os coitados, reféns de sua genética, estão sendo hoje condenados por um tribunal obsoleto, que nada entende das neurociências.
Segundo o professor da Faculdade de Direito da UFRGS, criminologista e desembargador aposentado Odone Sanguiné, o futuro que a neurociência acena para a Justiça Criminal é de reformas inclusivas, que levem em conta o princípio da dignidade humana.
- O diálogo com os conhecimentos das neurociências está provocando uma revisão das categorias dogmáticas do Direito Penal, bem como uma rediscussão sobre a legitimação das penas e medidas de segurança - afirma.
Assim, quando alguém estupra uma criança ou faz picadinho da própria mulher, não nos apressemos em julgá-lo. O homem, no fundo, é inocente. Algum gene bandido o levou, inexoravelmente, a tais gestos.
31 de agosto de 2013
janer cristaldo
Já contei. Eu estudava em uma escola rural, na divisa entre Brasil e Uruguai. Findo o curso primário, bom em matemática, o máximo que podia aspirar era ser caixeiro nalgum bolicho das Três Vendas ou Ponche Verde, uma das poucas chances de escapar ao rabo do arado. Findas as provas, atrelei o tordilho à aranha. Uma fase havia terminado em minha vida. Voltava ao campo, talvez para lá morrer.
Dei de rédeas ao tordilho, a aranha já descia o lançante da coxilha. Foi quando Dona Ivone Garrido, uma professora vinda de Dom Pedrito para fiscalizar as provas, atravessou o alambrado de sete fios que cercava o colégio e gritou: "pára, Clotilde, teu filho é um gênio, ele não pode voltar para o campo". Minha mãe, que só queria ouvir isto, me tomou as rédeas das mãos e esbarrou o tordilho. Daqueles segundos geridos pelo deus Acaso – e aqui começa o mistério – decorrem minhas andanças e estas linhas.
Outros acasos me levaram para cá e para lá. Por acaso, encontrei a mulher que preencheu minha vida e foi companheira nos bons e maus momentos. Por acaso, e um pouco de volição, fui para a Suécia. Por acaso, li uma convocatória de bolsas para a França num jornal, concorri e ganhei quatro anos em Paris. Por acaso, tropecei em um livro de Sábato e daí decorreu um doutorado. Claro que havia sempre uma vontade permeando os acasos. Mas sem os acasos, minha vida não teria sido a que foi.
Cientistas buscam todos os dias causas genéticas para comportamentos e opções de cada indivíduo. Já se buscou o gene do alcoolismo. Não me consta que tenha sido encontrado. Se o fosse, seria muito oportuno. Qualquer pinguço poderia justificar-se cientificamente: "Que posso fazer? É genético. Garçom, dose dupla, por favor". Nada mais confortável que atribuir a uma predestinação biológica o que depende de uma decisão.
Buscou-se depois um gene bem mais conveniente, o do homossexualismo. Mas os engenheiros genéticos parecem ser avessos a leituras históricas. No Ocidente, o homossexualismo era um comportamento normal e até mesmo desejável, antes que o cristianismo contaminasse a cultura helênica com a camisa-de-força de seu conceito de amor, como algo único e direcionado ao sexo oposto. Aliás, este poderoso mito literário ocidental, o amor, nasce na Grécia, com os poemas de Safo de Lesbos, e é antes de tudo homossexual. Em todo caso, uma causa biológica para esta opção facilitaria a vida de muitos efebos sem maior cultura histórica. “É genético, querido”.
O que está sendo cada vez mais insólito de admitir é que alguém é homossexual porque decidiu ser homossexual, porque gosta de relacionar-se com o mesmo, em suma, porque é livre de decidir com quem quer se relacionar.
Buscou-se também o gene da inteligência. Epa! Terreno minado. Imagine se este gene fosse politicamente incorreto, com preferência por certas raças. Encontrá-lo seria um desastre. Deixa pra lá, melhor não insistir nesta pesquisa.
Há uns bons quinze anos, os jornais anunciaram outro brilhante achado dos cientistas. Pois estes senhores conseguiram produzir, por meio de engenharia genética, um rato que permanece fiel a um parceiro. Esse animal normalmente fútil, dizem as agências, tornou-se um amante mais fiel depois de receber genes do arganaz, um roedor conhecido por sua fidelidade. Segundo o resultado, a dedicação a um só parceiro, durante a vida toda, talvez seja uma questão de presença no cérebro de uma determinada química, que associa o amor ao hábito.
Estudos com os arganazes mostraram que a sensibilidade ao hormônio vasopressina determinava se o macho da espécie acasalava com várias fêmeas ou se formava um casal com um delas para o resto da vida. Para mudar o comportamento roedores, bastou manipular o mecanismo regulatório da vasopressina.
No que diz respeito aos arganazes, não sei. Quanto ao ser humano, fidelidade vai depender em boa parte do acaso. Se peguei esta rua e não aquela, se ao pegar esta rua tropecei com esta ou aquela mulher, se indo a Paris encontrei uma macedônia e se ela, também por acaso, foi para Paris. Ou indo a Suécia encontrei uma finlandesa, que também por acaso,foi cair em Estocolmo. Se cultivo por razões religiosas a fidelidade, ou se não a cultivo por ser ateu. Em suma, vai depender das circunstâncias e de um ato de vontade meu, jamais de um gene.
Somos infiéis porque a vizinha é linda. Porque aquela aluna quer uma pedagogia mais personalizada. Porque aquela moça no bar nos olhou com um olhar mais quente. Porque as formas daquela transeunte distraída mexeram com nossos hormônios. Em suma, pela elementar razão de que... somos livres. Da mesma forma, sempre me pareceu que permanecer fiel a um parceiro fosse decisão a ser tomada por cada um. Nada disso. Segundo os doutos cientistas, liberdade é mito. Você não escolhe nada, a biologia é que determina suas ações. Tudo era genético, o arganaz que o diga.
A busca de uma base genética para explicar comportamentos isenta todo homem de qualquer responsabilidade. Sou bêbado? Não tenho culpa alguma, estava nos genes. Sou homossexual? Foi sem querer, a genética determinou. Até aqui, disto não decorrem maiores consequências. O problema surge quando a genética busca justificar o crime, absolvendo todo e qualquer criminoso.
Li há pouco um artigo preocupante na Zero Hora. Fala de um ex-detento que, anos depois de libertado, senta de novo no banco dos réus. Voltou a furtar, é o que dizem. Como estamos falando de um reincidente, o juiz achou por bem descobrir se há algo de errado no cérebro do acusado. A perícia informa que ele tem um córtex cingulado anterior (ACC, na sigla em inglês) preguiçoso. Agora a acusação pede perpétua, porque um córtex dessa lavra não merece lugar entre os cidadãos de bem (os bem-acerebrados, diga-se), e a defesa vai se vacinando com a tese de que ninguém tem culpa por nascer com um parafuso a menos: o réu não passa de um robô programado para furtar.
O julgamento proposto é imaginário, mas a perícia se baseia em um estudo bastante real e recente, liderado pelos neurocientistas americanos Kent Kiehl e Eyal Aharoni. Eles monitoraram a atividade cerebral de 96 apenados e constataram que aqueles com ACC menos ativo tinham duas vezes mais chances de voltar a cometer crimes nos quatro anos seguintes à libertação.
O artigo cita um caso clássico da literatura jurídica, o americano Donta Page, que confessou ter estuprado e matado a facadas uma jovem em 1999, escapou da pena de morte e foi sentenciado à prisão perpétua. A defesa alegou que espancamentos durante a infância haviam danificado o cérebro de Page. Ele não tinha escolha senão ser violento.
Ou seja, livre arbítrio não existe. Todo homem é refém do seu passado. Ou de seus genes. Nesta época em que há uma tendência generalizada a absolver todo criminoso, a tese faz fortuna. Vai ver que Zé Dirceu, José Genoíno et caterva não podiam deixar de ser corruptos. A corrupção estava no sangue, ou melhor, nos genes. Não tinham nenhuma outra opção a não ser corromper-se. E dizer que os coitados, reféns de sua genética, estão sendo hoje condenados por um tribunal obsoleto, que nada entende das neurociências.
Segundo o professor da Faculdade de Direito da UFRGS, criminologista e desembargador aposentado Odone Sanguiné, o futuro que a neurociência acena para a Justiça Criminal é de reformas inclusivas, que levem em conta o princípio da dignidade humana.
- O diálogo com os conhecimentos das neurociências está provocando uma revisão das categorias dogmáticas do Direito Penal, bem como uma rediscussão sobre a legitimação das penas e medidas de segurança - afirma.
Assim, quando alguém estupra uma criança ou faz picadinho da própria mulher, não nos apressemos em julgá-lo. O homem, no fundo, é inocente. Algum gene bandido o levou, inexoravelmente, a tais gestos.
31 de agosto de 2013
janer cristaldo
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