O Supremo Tribunal Federal (STF) terá em breve uma boa oportunidade para voltar atrás e desfazer o equívoco que cometeu no dia 10 passado, quando decidiu que a competência para julgar as contas dos prefeitos é exclusiva das Câmaras Municipais
O Supremo Tribunal Federal (STF) terá em breve uma boa oportunidade para voltar atrás e desfazer o equívoco que cometeu no dia 10 passado, quando decidiu que a competência para julgar as contas dos prefeitos é exclusiva das Câmaras Municipais. Espera-se que, quando vier a apreciar o embargo de declaração a ser impetrado pelo Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral para contestar essa decisão, o STF aproveite a chance e reconheça que não deveria ter comprometido dessa maneira os efeitos da Lei da Ficha Limpa, dando a gestores comprovadamente irresponsáveis o aval legal para que disputem eleições.
Por 6 votos a 5, o Supremo, ao julgar dois recursos extraordinários, entendeu que os Tribunais de Contas devem desempenhar a função de meros auxiliares do Poder Legislativo, fornecendo-lhe pareceres opinativos sobre as contas dos prefeitos. Em seu voto, o ministro Ricardo Lewandowski, presidente do STF, entendeu que somente os vereadores têm a prerrogativa de julgar o administrador municipal, pois detêm mandato obtido nas urnas.
Já o ministro Luiz Roberto Barroso, relator de um dos recursos, considerou que o julgamento do prefeito depende do tipo de conta que está sendo julgado. Se as contas forem de gestão – isto é, relativas aos ordenadores de despesas, portanto eminentemente administrativas –, devem ser julgadas pelo Tribunal de Contas. No caso de contas de governo – aquelas concernentes ao resultado anual da atuação governamental no trato das finanças, especialmente o cumprimento do disposto no Orçamento –, o julgamento é do Legislativo, amparado por pareceres de Tribunais de Contas.
A maioria dos ministros entendeu que, caso a Câmara Municipal decida não julgar o prefeito que cometeu irregularidades em sua administração, essa omissão anula os efeitos do dispositivo da Lei da Ficha Limpa que torna inelegíveis aqueles que “tiverem suas contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável que configure ato doloso de improbidade administrativa”.
Está claro que tal decisão rasga a Lei da Ficha Limpa, pois permite que as Câmaras Municipais concedam a administradores desonestos – justamente aqueles que deveriam ser alijados da política, conforme estabelece o espírito da Lei da Ficha Limpa – aval para disputar eleições e manter intacto o sistema que lhes dá poder e dinheiro em detrimento do interesse público.
Decerto não era essa a intenção do Supremo, mas tal é o resultado de sua sentença. Quando o ministro Gilmar Mendes, relator de um dos recursos, argumenta que o “controle externo” das contas do prefeito deve ser exercido pela Câmara Municipal, por sua legitimidade como representante do povo, ele não leva em consideração que não se trata de um julgamento político, mas técnico, que deve ser exercido justamente por instituição que, ao menos em tese, não está à mercê do usual toma lá dá cá da política fisiológica.
Gilmar Mendes acrescentou que não se pode dar tanto poder aos Tribunais de Contas, porque estes “podem rejeitar as contas de maneira banal para causar a inelegibilidade de um prefeito”. De fato, esse é um risco que se corre, especialmente devido à qualidade duvidosa de diversos Tribunais de Contas País afora. No entanto, é preferível esse risco à anulação de um dos pilares da Lei da Ficha Limpa.
Se o problema é a eventual má-fé dos Tribunais de Contas, que se providenciem mudanças capazes de mitigar essa possibilidade. O que não se pode é deixar que a tal sentença produza um efeito indesejado. Pois, ao reduzir drasticamente o alcance das decisões dos Tribunais de Contas, para evitar eventuais injustiças e supostamente privilegiar os representantes do povo no julgamento das contas de prefeitos, o Supremo deu carta branca para que centenas de administradores comprovadamente irresponsáveis ou corruptos possam disputar eleições como se nada de ilegal tivessem feito.
19 de agosto de 2016
Editorial O Estadão
O Supremo Tribunal Federal (STF) terá em breve uma boa oportunidade para voltar atrás e desfazer o equívoco que cometeu no dia 10 passado, quando decidiu que a competência para julgar as contas dos prefeitos é exclusiva das Câmaras Municipais. Espera-se que, quando vier a apreciar o embargo de declaração a ser impetrado pelo Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral para contestar essa decisão, o STF aproveite a chance e reconheça que não deveria ter comprometido dessa maneira os efeitos da Lei da Ficha Limpa, dando a gestores comprovadamente irresponsáveis o aval legal para que disputem eleições.
Por 6 votos a 5, o Supremo, ao julgar dois recursos extraordinários, entendeu que os Tribunais de Contas devem desempenhar a função de meros auxiliares do Poder Legislativo, fornecendo-lhe pareceres opinativos sobre as contas dos prefeitos. Em seu voto, o ministro Ricardo Lewandowski, presidente do STF, entendeu que somente os vereadores têm a prerrogativa de julgar o administrador municipal, pois detêm mandato obtido nas urnas.
Já o ministro Luiz Roberto Barroso, relator de um dos recursos, considerou que o julgamento do prefeito depende do tipo de conta que está sendo julgado. Se as contas forem de gestão – isto é, relativas aos ordenadores de despesas, portanto eminentemente administrativas –, devem ser julgadas pelo Tribunal de Contas. No caso de contas de governo – aquelas concernentes ao resultado anual da atuação governamental no trato das finanças, especialmente o cumprimento do disposto no Orçamento –, o julgamento é do Legislativo, amparado por pareceres de Tribunais de Contas.
A maioria dos ministros entendeu que, caso a Câmara Municipal decida não julgar o prefeito que cometeu irregularidades em sua administração, essa omissão anula os efeitos do dispositivo da Lei da Ficha Limpa que torna inelegíveis aqueles que “tiverem suas contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável que configure ato doloso de improbidade administrativa”.
Está claro que tal decisão rasga a Lei da Ficha Limpa, pois permite que as Câmaras Municipais concedam a administradores desonestos – justamente aqueles que deveriam ser alijados da política, conforme estabelece o espírito da Lei da Ficha Limpa – aval para disputar eleições e manter intacto o sistema que lhes dá poder e dinheiro em detrimento do interesse público.
Decerto não era essa a intenção do Supremo, mas tal é o resultado de sua sentença. Quando o ministro Gilmar Mendes, relator de um dos recursos, argumenta que o “controle externo” das contas do prefeito deve ser exercido pela Câmara Municipal, por sua legitimidade como representante do povo, ele não leva em consideração que não se trata de um julgamento político, mas técnico, que deve ser exercido justamente por instituição que, ao menos em tese, não está à mercê do usual toma lá dá cá da política fisiológica.
Gilmar Mendes acrescentou que não se pode dar tanto poder aos Tribunais de Contas, porque estes “podem rejeitar as contas de maneira banal para causar a inelegibilidade de um prefeito”. De fato, esse é um risco que se corre, especialmente devido à qualidade duvidosa de diversos Tribunais de Contas País afora. No entanto, é preferível esse risco à anulação de um dos pilares da Lei da Ficha Limpa.
Se o problema é a eventual má-fé dos Tribunais de Contas, que se providenciem mudanças capazes de mitigar essa possibilidade. O que não se pode é deixar que a tal sentença produza um efeito indesejado. Pois, ao reduzir drasticamente o alcance das decisões dos Tribunais de Contas, para evitar eventuais injustiças e supostamente privilegiar os representantes do povo no julgamento das contas de prefeitos, o Supremo deu carta branca para que centenas de administradores comprovadamente irresponsáveis ou corruptos possam disputar eleições como se nada de ilegal tivessem feito.
19 de agosto de 2016
Editorial O Estadão
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