Como fugir a essas tiranias que subvertem as liberdades básicas em nome de uma difusa 'vontade geral'?
A convite da Liberty Fund --uma associação americana que promove dezenas de colóquios por ano pelo mundo inteiro e publica as grandes obras do pensamento político "liberal"-- passei os últimos dias relendo Alexis de Tocqueville (1805-1859), autor do clássico "Da Democracia na América" (e do igualmente magistral "O Antigo Regime e a Revolução").
Da primeira vez que viajei com ele pelos Estados Unidos, ainda estudante, devo ter entendido metade da obra (estimativa otimista). Hoje, confesso que consegui uns 75% --e simpatizei com a essencial inquietação do aristocrata francês.
A "era democrática" nascia desse lado do Atlântico. Acabaria por se espalhar pelo mundo. Mas Tocqueville, apesar de admirações mil pelo novo país, detectou na "era da igualdade" o seu problema mais marcante: como escapar às "tiranias da maioria", que poderiam ser ainda mais brutais do que as tiranias do passado?
No Antigo Regime, a tirania tinha solução: as cabeças decepadas de Charles 1º (na Inglaterra) ou de Luís 16 (na França) eram uma resposta possível. E eficaz.
Mas como fugir, na era democrática, a essas tiranias majoritárias, silenciosas, muitas vezes ignaras, que subvertem as liberdades básicas em nome de uma difusa "vontade geral" --que, por ser geral, têm sempre prioridade sobre as vozes dissonantes?
Conheço as respostas clássicas para aliviar os potenciais prejuízos: separação de poderes; eleições regulares; liberdade de expressão; fortalecimento da sociedade civil. Tocqueville tocou todos esses instrumentos.
Mas o que perturba é verificar que, para Tocqueville, nenhum desses mecanismos pode ser suficiente para evitar o dilúvio da tirania majoritária. A história do século 20 é o retrato dessa melancolia profética: será preciso recordar os ditadores que usaram a democracia para liquidar a democracia?
Só que o problema das democracias não se limita às "tiranias da maioria". Também é preciso ter em conta as "tiranias da minoria" --uma observação sagaz introduzida na discussão do colóquio por John O'Sullivan, um conhecido colunista britânico para quem um dos problemas das democracias modernas está na forma como alegadas "elites" (políticas, intelectuais, acadêmicas etc.) capturam a liberdade das maiorias.
Pode ser sob a forma de um "paternalismo soft" (o que devemos comer, beber, fumar etc.). E pode ser sob a forma de um "paternalismo hard" (o que devemos ler, pensar, que expressões usar, que sensibilidades de minorias respeitar etc.).
Escusado será dizer que as nossas democracias estão hoje dominadas por esses dois tipos de tiranias: por um lado, a tirania de populistas autoritários que conquistam facilmente a ignorância e a pobreza das massas com suas promessas ilusórias de redenção.
Por outro lado, encontramos também a tirania de uma suposta "intelligentsia" vanguardista que gosta de tratar os cidadãos como crianças --crianças que não sabem pensar, nem comportar-se, nem viver sem a tutela de um Estado "babysitter", que as embala do berço até a cova. Haverá solução para isso?
Curiosamente, Tocqueville achava que sim. E mais: considerava que essas soluções deveriam nascer no interior das democracias --e não pelo retorno reacionário a uma idade de ouro aristocrática que, na verdade, nunca verdadeiramente existiu.
Algumas dessas soluções já foram referidas: separação de poderes; liberdade de expressão; pluralismo religioso; reforço da independência da sociedade civil (a "arte de associação", como lhe chamava Tocqueville e que ele presenciou com agrado nos Estados Unidos).
Mas a mensagem fundamental de Tocqueville é que a única forma de preservar a liberdade perante a tirania passa por cultivar nos indivíduos o gosto por essa liberdade.
Ou, como o próprio escreveu num dos momentos mais sublimes da sua "Da Democracia na América", o principal objetivo de um governo virtuoso é permitir que os cidadãos possam viver sem a sua ajuda. E acrescenta Tocqueville: "Isso é mais útil do que a ajuda alguma vez será."
Passaram quase 200 anos sobre essas palavras. Curiosamente, não envelheceram uma ruga.
A convite da Liberty Fund --uma associação americana que promove dezenas de colóquios por ano pelo mundo inteiro e publica as grandes obras do pensamento político "liberal"-- passei os últimos dias relendo Alexis de Tocqueville (1805-1859), autor do clássico "Da Democracia na América" (e do igualmente magistral "O Antigo Regime e a Revolução").
Da primeira vez que viajei com ele pelos Estados Unidos, ainda estudante, devo ter entendido metade da obra (estimativa otimista). Hoje, confesso que consegui uns 75% --e simpatizei com a essencial inquietação do aristocrata francês.
A "era democrática" nascia desse lado do Atlântico. Acabaria por se espalhar pelo mundo. Mas Tocqueville, apesar de admirações mil pelo novo país, detectou na "era da igualdade" o seu problema mais marcante: como escapar às "tiranias da maioria", que poderiam ser ainda mais brutais do que as tiranias do passado?
No Antigo Regime, a tirania tinha solução: as cabeças decepadas de Charles 1º (na Inglaterra) ou de Luís 16 (na França) eram uma resposta possível. E eficaz.
Mas como fugir, na era democrática, a essas tiranias majoritárias, silenciosas, muitas vezes ignaras, que subvertem as liberdades básicas em nome de uma difusa "vontade geral" --que, por ser geral, têm sempre prioridade sobre as vozes dissonantes?
Conheço as respostas clássicas para aliviar os potenciais prejuízos: separação de poderes; eleições regulares; liberdade de expressão; fortalecimento da sociedade civil. Tocqueville tocou todos esses instrumentos.
Mas o que perturba é verificar que, para Tocqueville, nenhum desses mecanismos pode ser suficiente para evitar o dilúvio da tirania majoritária. A história do século 20 é o retrato dessa melancolia profética: será preciso recordar os ditadores que usaram a democracia para liquidar a democracia?
Só que o problema das democracias não se limita às "tiranias da maioria". Também é preciso ter em conta as "tiranias da minoria" --uma observação sagaz introduzida na discussão do colóquio por John O'Sullivan, um conhecido colunista britânico para quem um dos problemas das democracias modernas está na forma como alegadas "elites" (políticas, intelectuais, acadêmicas etc.) capturam a liberdade das maiorias.
Pode ser sob a forma de um "paternalismo soft" (o que devemos comer, beber, fumar etc.). E pode ser sob a forma de um "paternalismo hard" (o que devemos ler, pensar, que expressões usar, que sensibilidades de minorias respeitar etc.).
Escusado será dizer que as nossas democracias estão hoje dominadas por esses dois tipos de tiranias: por um lado, a tirania de populistas autoritários que conquistam facilmente a ignorância e a pobreza das massas com suas promessas ilusórias de redenção.
Por outro lado, encontramos também a tirania de uma suposta "intelligentsia" vanguardista que gosta de tratar os cidadãos como crianças --crianças que não sabem pensar, nem comportar-se, nem viver sem a tutela de um Estado "babysitter", que as embala do berço até a cova. Haverá solução para isso?
Curiosamente, Tocqueville achava que sim. E mais: considerava que essas soluções deveriam nascer no interior das democracias --e não pelo retorno reacionário a uma idade de ouro aristocrática que, na verdade, nunca verdadeiramente existiu.
Algumas dessas soluções já foram referidas: separação de poderes; liberdade de expressão; pluralismo religioso; reforço da independência da sociedade civil (a "arte de associação", como lhe chamava Tocqueville e que ele presenciou com agrado nos Estados Unidos).
Mas a mensagem fundamental de Tocqueville é que a única forma de preservar a liberdade perante a tirania passa por cultivar nos indivíduos o gosto por essa liberdade.
Ou, como o próprio escreveu num dos momentos mais sublimes da sua "Da Democracia na América", o principal objetivo de um governo virtuoso é permitir que os cidadãos possam viver sem a sua ajuda. E acrescenta Tocqueville: "Isso é mais útil do que a ajuda alguma vez será."
Passaram quase 200 anos sobre essas palavras. Curiosamente, não envelheceram uma ruga.
02 de julho de 2014
João Pereira Coutinho, Folha de SP
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