No meu terceiro dia cobrindo a Feira do Livro em Frankfurt, na sexta-feira passada, resolvi escolher a liberdade como assunto da matéria que eu deveria mandar para este caderno. Não foi nenhum momento de grande inspiração. A programação daquela sexta conspirava a meu favor e o tema estava passeando pelo evento antes mesmo de ele abrir as portas. O que faltava era reunir juízos e crenças em um texto só.
Como argumentos para abordar escritores que pirulitavam pelos pavilhões da Buchmesse, havia pelo menos três boas ocorrências para me dar amparo: Luiz Ruffato estava sendo agredido desde seu discurso de abertura da feira, em que traçou um retrato da sociedade brasileira e suas desigualdades sem nenhuma economia; antes mesmo dessa inauguração barulhenta, três escritores lançaram um manifesto acompanhado de um abaixo-assinado defendendo, entre outros pontos, a liberdade de ir para as ruas para brigar pelo que se acredita; e, por fim, com a justificativa de que se trata de um ataque à liberdade de expressão, nomes como Laurentino Gomes e Ruy Castro usaram seu tempo na agenda alemã para se posicionar contra o controle das biografias apoiado por gente como Chico Buarque e Caetano Veloso.
Se a fala de Ruffato e o manifesto pró-manifesto não chegaram a ser consenso, foi difícil encontrar entre quem tira da “escreveção” o seu sustento alguém que achasse razoável limitar a independência de biógrafos.
A resposta assimétrica veio apenas de quem, mesmo tendo a literatura como ofício, também veste o papel de personagem. A poeta Alice Ruiz – que se diz radicalmente contra a censura (como se alguém assumisse que é a favor), mas que ficou chateadíssima com o livro de Toninho Vaz sobre Paulo Leminski – acha que a autorização prévia seria uma boa ferramenta para se evitar relatos sensacionalistas, que têm seu foco no que pode representar mais exemplares vendidos. “Se neste país os interesses literários estivessem acima dos interesses mercantis…”, suspirou, exibindo um desconforto legítimo capaz de fazer surgir até uma certa empatia.
Mas aí, na mesma feira, aparece quem ajuda a entender o Brasil com uma lógica arrasadora, para derrubar dúvidas. “Um país que incentiva a biografia chapa-branca está condenado a não se reconhecer no espelho do futuro”. A frase de Laurentino Gomes, que fez suas pesquisas sobre nossa monarquia entrarem no hit parade das livrarias, ficou ecoando em Frankfurt até o fim do evento, atravessou o oceano Atlântico e continua assombrando as respostas frágeis de quem acha que proteger a privacidade é motivo suficiente para engessar a história.
O GOSTO APURADO DE HITLER
Não é preciso muita imaginação para entender o estrago de se viver em um paraíso das biografias autorizadas, que só se tornam públicas depois de o sujeito que dá título ou sua família ou seu advogado ler, cortar, acrescentar e aprovar. Mas vou usar um pouco da disponível no momento.
Hitler seria conhecido por seu gosto apurado para a música clássica e pela ideia forte de nação e de pertencimento. Médici como o general que não cassou o mandato de um só deputado e que colocou geladeira e televisão nas casas do povo pobre do Brasil. Bruno como um goleiro talentoso, irresistível e que teve uma aposentadoria precoce por problemas pessoais. Tudo bem limpinho.
Aí vem a turma dizer que, tudo bem, pode até contar uns podres, desde que o dindim obtido com a venda da obra seja partilhado com quem serviu de inspiração. Ruy Castro disse que topa a ideia, com uma condição singela: quem serviu de inspiração também partilha os custos do trabalhão que é escrever uma biografia.
Acho digno e aproveito para incluir uma reivindicação da minha categoria, os jornalistas. Seria razoável que venha para o nosso bolso uma parte da bilheteria dos shows que ajudamos a divulgar, da arrecadação dos discos que ganham espaço nos cadernos de cultura, da grana que entra via lei de incentivo nos projetos que ganham a chancela da crítica especializada. Não é justo?
(transcrito de O Tempo)
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