Era mais do que sabido que o governo estava pronto para comemorar em grande estilo o leilão de Libra, qualquer que fosse seu desfecho. Mas a comemoração acabou passando dos limites. E deixou transparecer clara intenção de lançar poeira nos olhos da opinião pública, para disfarçar as dificuldades expostas pelo leilão.
Tendo em conta as dimensões do campo de Libra, é natural que as cifras relacionadas à sua produção potencial pareçam impressionantes. Especialmente se acumuladas num período de 35 anos. A questão é o quão mais impressionantes poderiam ter sido se o leilão tivesse sido pautado por regras bem concebidas.
É lamentável que, com seis anos de preparação, a licitação montada pelo governo só tenha conseguido atrair um único consórcio que, com toda tranquilidade, arrematou o campo pelo lance mínimo. Trata-se de desfecho melancólico que, num país sério, deveria dar lugar a uma reavaliação criteriosa das restrições que o governo decidiu impor ao leilão.
O lance mínimo foi de 41,65% do lucro em óleo. Descontados todos os custos envolvidos, esse é o percentual do excedente de petróleo produzido em Libra que caberá ao governo. É óbvio que, se o leilão tivesse atraído outros interessados, o governo poderia ter conseguido percentual superior.
Menos óbvia, mas da maior importância, é a constatação de que os custos medidos em óleo, deduzidos da produção total para efeito da apuração do lucro em óleo, estão brutalmente inflados pelas absurdas exigências de conteúdo local em equipamentos. Em bom português, isso significa que, para sustentar vasta gama de produtores nacionais de equipamentos para a indústria de petróleo, o governo aceitou receber parcela menor do petróleo que será produzido em Libra. Menos dinheiro para educação e para saúde. E mais dinheiro para grupos de “interesse especial” que, com crucial ajuda do governo, conseguiram se apropriar de parte substancial do excedente a ser gerado pelo pré-sal.
Causa também preocupação que a Petrobras não se tenha contentado com a já esdrúxula participação legal mínima de 30%. Ao se permitir a extravagância de “fazer bonito”, subscrevendo 40% do consórcio, a Petrobras terá de arcar com encargos bem mais pesados de investimento, que vão muito além do simples pagamento de R$ 1,5 bilhão a mais pelo bônus de assinatura. E, tendo em vista a fragilidade financeira da empresa, teme-se que, mais uma vez, a conta acabe nas costas do Tesouro. O que seria indefensável. Não há por que canalizar mais dinheiro público para o pré-sal. Com regras adequadas, não faltarão investidores privados interessados.
Em entrevista a “O Estado de S. Paulo” (20/10), o ministro Guido Mantega, asseverou que “o Tesouro não dará e nunca deu ajuda à Petrobras”. Mas, logo em seguida, lembrando-se da gigantesca operação de capitalização da empresa em 2010, tentou qualificá-la como “outra história”, em que “o governo vendeu R$ 5 bilhões de barris à Petrobras, e ela nos pagou por isso, em exploração”. Na verdade não foi bem assim. A União dispunha de reservas de petróleo que, se tivessem sido licitadas na época, teriam gerado R$ 75 bilhões ao Tesouro, mais de 2,5 vezes o total de gastos do PAC em 2011. Algo como R$ 90 bilhões a preços de hoje. O Tesouro cedeu essas reservas à Petrobras, no quadro de uma operação de capitalização, e recebeu em troca ações da empresa, que hoje talvez valham metade dos R$ 90 bilhões.
Numa propaganda oficial recente na TV, pessoas com olhos marejados assistem um video em que um robô fixa a Bandeira Nacional no fundo do mar, num poço da Petrobras. A cena traz à mente os R$ 90 bilhões, a preços de hoje, transferidos do Tesouro à Petrobras, em 2010, e a inevitável constatação de que, num país de tantas carências, recursos públicos tão vultosos poderiam ter tido destino incomparavelmente mais nobre. Para ajudar a fixar essa ideia, deveríamos imaginar uma pequena Bandeira Nacional espetada em cada esgoto a céu aberto Brasil afora. Isso, sim, deveria deixar nossos olhos marejados. Já é hora de o País tomar juízo.
25 de outubro de 2013
Rogério Furquim Werneck, O Globo
Tendo em conta as dimensões do campo de Libra, é natural que as cifras relacionadas à sua produção potencial pareçam impressionantes. Especialmente se acumuladas num período de 35 anos. A questão é o quão mais impressionantes poderiam ter sido se o leilão tivesse sido pautado por regras bem concebidas.
É lamentável que, com seis anos de preparação, a licitação montada pelo governo só tenha conseguido atrair um único consórcio que, com toda tranquilidade, arrematou o campo pelo lance mínimo. Trata-se de desfecho melancólico que, num país sério, deveria dar lugar a uma reavaliação criteriosa das restrições que o governo decidiu impor ao leilão.
O lance mínimo foi de 41,65% do lucro em óleo. Descontados todos os custos envolvidos, esse é o percentual do excedente de petróleo produzido em Libra que caberá ao governo. É óbvio que, se o leilão tivesse atraído outros interessados, o governo poderia ter conseguido percentual superior.
Menos óbvia, mas da maior importância, é a constatação de que os custos medidos em óleo, deduzidos da produção total para efeito da apuração do lucro em óleo, estão brutalmente inflados pelas absurdas exigências de conteúdo local em equipamentos. Em bom português, isso significa que, para sustentar vasta gama de produtores nacionais de equipamentos para a indústria de petróleo, o governo aceitou receber parcela menor do petróleo que será produzido em Libra. Menos dinheiro para educação e para saúde. E mais dinheiro para grupos de “interesse especial” que, com crucial ajuda do governo, conseguiram se apropriar de parte substancial do excedente a ser gerado pelo pré-sal.
Causa também preocupação que a Petrobras não se tenha contentado com a já esdrúxula participação legal mínima de 30%. Ao se permitir a extravagância de “fazer bonito”, subscrevendo 40% do consórcio, a Petrobras terá de arcar com encargos bem mais pesados de investimento, que vão muito além do simples pagamento de R$ 1,5 bilhão a mais pelo bônus de assinatura. E, tendo em vista a fragilidade financeira da empresa, teme-se que, mais uma vez, a conta acabe nas costas do Tesouro. O que seria indefensável. Não há por que canalizar mais dinheiro público para o pré-sal. Com regras adequadas, não faltarão investidores privados interessados.
Em entrevista a “O Estado de S. Paulo” (20/10), o ministro Guido Mantega, asseverou que “o Tesouro não dará e nunca deu ajuda à Petrobras”. Mas, logo em seguida, lembrando-se da gigantesca operação de capitalização da empresa em 2010, tentou qualificá-la como “outra história”, em que “o governo vendeu R$ 5 bilhões de barris à Petrobras, e ela nos pagou por isso, em exploração”. Na verdade não foi bem assim. A União dispunha de reservas de petróleo que, se tivessem sido licitadas na época, teriam gerado R$ 75 bilhões ao Tesouro, mais de 2,5 vezes o total de gastos do PAC em 2011. Algo como R$ 90 bilhões a preços de hoje. O Tesouro cedeu essas reservas à Petrobras, no quadro de uma operação de capitalização, e recebeu em troca ações da empresa, que hoje talvez valham metade dos R$ 90 bilhões.
Numa propaganda oficial recente na TV, pessoas com olhos marejados assistem um video em que um robô fixa a Bandeira Nacional no fundo do mar, num poço da Petrobras. A cena traz à mente os R$ 90 bilhões, a preços de hoje, transferidos do Tesouro à Petrobras, em 2010, e a inevitável constatação de que, num país de tantas carências, recursos públicos tão vultosos poderiam ter tido destino incomparavelmente mais nobre. Para ajudar a fixar essa ideia, deveríamos imaginar uma pequena Bandeira Nacional espetada em cada esgoto a céu aberto Brasil afora. Isso, sim, deveria deixar nossos olhos marejados. Já é hora de o País tomar juízo.
25 de outubro de 2013
Rogério Furquim Werneck, O Globo
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