Intimamente associado à estória de Alexandre III, dito Magno ou Grande (que o cortou com a sua espada), mas também à lenda mitológica do Rei Midas (que transformava em ouro tudo o que tocava), nenhum símbolo retrata melhor a experiência da precipitação e da irreflexão do que o nó górdio.
A alusão que agora se faz à ele, longe de pretender constituir um preâmbulo, é mera advertência, senão indispensável, extremamente útil: todas as vezes em que se pretender, irrefletida e precipitadamente, outorgar a uma palavra ou locução ressonância emotiva, escrevendo-a, com letras maiúsculas, para mostrar o respeito reverencial que todos, sem exceção, devem ter por ela, é preciso ficar alerta, para não se deixar cair num sofisma.
Tomemos como exemplo as recentes notícias jornalísticas acerca da censura prévia à biografia de celebridades, para demonstrar como a opinião pública vem se manifestando de modo divergente sobre o tema “liberdade de manifestação do pensamento versus o direito à privacidade e intimidade”, em todas as suas formas.
LIMITES OU FREIOS
Para desatar esse nó górdio não será necessário utilizar a espada de Alexandre; contudo será inevitável acentuar e contrapor certos valores, evitando-se, assim, que todos sejam vítimas daquela espécie de unilateralidade que impede não só a discussão como a reflexão, por intermédio da seguinte pergunta: por que a manifestação do pensamento e a expressão da atividade artística são livres, estes direitos não encontram limites ou freios?
Qualquer criança de colo, dona daquela espécie de saber ‘só de ouvir dizer’, tem, desde tenra idade, a mais perfeita noção de que ‘a liberdade de um acaba quando começa a do outro’, para repetir colorida e significativa expressão popular. Este conceito, quase intuitivo, parece não ter sido perdido de vista desde que Montesquieu, há 250 anos, proclamou que ‘a liberdade é o direito de fazer tudo o que as leis permitem’.
A beleza e a simplicidade dessa definição – que nos foi legada pelo homem que deixou sua confortável posição na magistratura francesa do século XVIII para ensinar as gerações seguintes como evitar a concentração de poderes, como dividi-lo, para que haja lei, lei de verdade, lei ajustada ao espírito das leis, ao espírito nacional – deixam bem claro esta verdade inelutável: ‘Se um cidadão pudesse fazer tudo aquilo que as leis proíbem, ele já não teria liberdade, pois os outros teriam igualmente esse poder’.
Percebendo, como Montesquieu, que o direito à liberdade, em todas as suas formas depende para a sua formação da integração do binômio ‘fazer o que a lei permite-não fazer o que a lei proíbe’, é que Lacordaire ensinou que ‘entre o forte e o fraco, entre o rico e o pobre, entre o patrão e o empregado, é a liberdade que oprime e a lei que liberta’ (entre le fort et le faible, le riche e le pauvre, le maitre et le serviteur, c’est la liberte qui opprime et la loi qui affranchit).
Eureka! – teria dito Archimedes, acaso até aqui tivesse acompanhado o raciocínio deste articulista de ocasião. A liberdade encontra os seus limites na própria lei. Quisera o romântico que ela não os encontrasse, pois nada há de mais romântico do que tudo se permitir em nome do amor. Todavia, até mesmo o último dos românticos concordaria comigo quando afirmo que não é permitido matar por amor. Quem diria, a própria virtude precisa de limites – in medio virtus (a virtude está no meio).
A liberdade, ou a restrição da liberdade, também precisa de limites. A experiência eterna dos povos e das civilizações, desde os seus primórdios, mostra, claramente, que todo homem que detém um poder ilimitado é levado a abusar dele, até encontrar os limites. Para que o abuso não se verifique é preciso que o poder freie o poder, e que até mesmo os direitos mais sagrados (à liberdade) e as mais puras virtudes (o amor) sejam exercitados na medida certa.
CONCEITO DE LIBERDADE
Portanto, é com a total subversão do conceito de liberdade – ora abusando da palavra liberdade, ora se servindo dela, de forma apenas aparente, para conceber um ideal de justiça que se deva venerar mais do que todos, como se determinada concepção de justiça fosse a única boa, a única que corresponde ao ideal de justiça perseguido pelo coração dos homens, sendo todas as outras apenas embustes – que a opinião pública, assumidamente leiga, tenta justificar e coonestar a atitude de escritores que, se arvorando em lídimos censores dos seus biografados, expõem a intimidade e a privacidade deles de forma desonrosa e desairosa para toda a sociedade.
Se é certo que uma figura pública não detém razoável expectativa de privacidade (reasonable expectation of privacy), não é menos certo que ataques desfraldados à sua honra objetiva e subjetiva constituem crime, portanto, ato ilícito absoluto.
A Constituição, a lei das leis, prevê que só existe liberdade de expressão e de manifestação do pensamento até onde não haja violação à honra e à imagem das pessoas, ou seja, até onde não se faça o que ela proíbe. Em todos esses casos (e a partir deles), o que há é abuso de direito. Ora, bem disse Camões: “cesse tudo o que a musa antiga canta que um valor mais alto se alevanta!”
Não, mil vezes não! Não caiamos nessa tosca arapuca. A busca pelo verdadeiro significado da palavra liberdade não reside em adequá-la às nossas conveniências próprias, sejam morais ou políticas, mas sim em cumprir, fazer cumprir e exigir o cumprimento da nossa Constituição, porque à margem dela só existem o arbítrio e a obscuridade.
Que as pessoas tenham liberdade para escrever o que bem quiserem, expressando livremente seus pensamentos, vedado o anonimato, como prevê a Carta Magna (Art. 5º, IV), mas que, em contrapartida, assumam o risco de violar a honra alheia e respondam por seus atos, nas esferas cível e criminal, caso isto ocorra; pois, como disse certa vez Marcel Pagnol, “a honra é como os fósforos: serve apenas uma vez” (L’honneur c’est comme les allumettes, ça ne sert qu’une fois).
25 de outubro de 2013
Fernando Orotavo Neto é jurista, autor de diversas
obras de Direito e professor de Processo Civil
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