Eu tenho saudade do Estadual. Sei que é preciso relativizar: ouvi outro dia, de um integrante do grupo de comédia inglês Monty Python, num documentário sobre sua obra, que as pessoas não sonhavam reunir novamente os Beatles só por causa da música, mas movidas por um desejo inconsciente de voltar a ser o que eram quando John, Paul, George e Ringo estavam juntos — em resumo, jovens.
Sei também que a memória é seletiva: as primeiras imagens que vêm à mente quando bate o saudosismo são de ídolos como Zico e Roberto Dinamite, de gols marcantes como o da barriga de Renato Gaúcho e o de Maurício encerrando o jejum; o Ladrilheiro e a volta olímpica da caravela ficam guardados na prateleira do esquecimento, em meio a tantos outros momentos que não merecem mais do que a poeira do tempo.
Então, talvez eu precise reformular: tenho saudade do tempo em que o Estadual era relevante. Organizado, quase nunca foi — como de resto ainda não é o futebol nacional. Mas não precisava brigar contra a própria desimportância. Nasci pouco antes da criação do Brasileiro, que levou um bom tempo para rivalizar com os regionais na preferência de clubes e torcidas. No caso específico do Rio, não bastou o primeiro título de um clube do Estado, o Vasco de Dinamite em 1974, para que o interesse migrasse para o país. A sequência de títulos do Flamengo nos anos 80, que levou à conquista da Libertadores, foi mais importante para mudar esse padrão — embora não tenha diminuído a rivalidade local, como os já citados Maurício e Renato provariam em 89 e 95, respectivamente.
O golpe de misericórdia veio com a adoção do sistema de pontos corridos, em 2003. O Brasileiro passou a ocupar mais datas de um calendário já inchado, que precisava acomodar ainda competições mais importantes para os clubes, como a Libertadores e a Copa do Brasil. Os Estaduais ficaram espremidos no começo da temporada, sujeitos aos problemas da época no futebol nacional, como por exemplo o fato de que os times ainda não estão montados. Iniciativas como a do AtléticoPR, que passou a escalar a equipe sub-23 para disputar o Paranaense, marcaram essa nova etapa, e passou a ser mais comum ver pequenos conquistando títulos – caso do Novo Hamburgo no último Gauchão.
Hoje, os Estaduais existem basicamente por uma razão: eleger o presidente da CBF. Como os votos das 27 federações, somados, valem mais do que os dos 40 maiores clubes do país, é preciso manter os eleitores satisfeitos. O Campeonato Carioca pode ter o Fluminense jogando para pouco mais de 400 testemunhas num estádio praguejado por formigas, onde o gandula precisa acender a lanterna do celular para buscar a bola que cai no matagal atrás do gol. Se for para garantir o resultado nas urnas, bola pro mato que o jogo é de campeonato!
Retrato da desimportância
Veja-se, agora, o falso dilema do Vasco: escalar ou não os titulares para o jogo de hoje, contra o Volta Redonda? Digo falso porque na vida real ele não existe. Tudo indica que Zé Ricardo vai botar 11 reservas em campo, poupando o time para receber o Universidad Concepción pela Libertadores — num confronto, na prática, já decidido, depois dos 4 a 0 no Chile.
A análise de cenário não é muito complicada: garantir a vaga na semifinal da Taça Guanabara significa acrescentar um ou dois jogos decisivos antes dos confrontos da próxima fase da Libertadores, na Bolívia (e se o adversário for o Jorge Wilstermann, como parece provável, um deles será nos 2.830m de altitude de Sucre). É vantagem?
Continuo acreditando que ninguém joga para perder. Mas a cada ano estamos vendo mais cenários em que não vale muito a pena vencer. Talvez esteja na hora de ver o lado bom da morte dos Estaduais.
Basquete na cabeça
Anderson Varejão estreou com festa no basquete do Flamengo. Diego, Julio Cesar, Vinicius Júnior e Lucas Paquetá, astros do time de futebol, juntaram-se ao bom público que foi à Arena Olímpica assistir à fácil vitória sobre o Campo Mourão. Perucas cacheadas homenagearam o pivô, que volta também à seleção brasileira, ao lado de Leandrinho, outro repatriado da NBA, convocados pelo técnico Aleksandar Petrovic para dois jogos das eliminatórias do Mundial.
É o começo de uma longa trajetória para salvar um exesporte olímpico brasileiro, que tenta se modernizar com outra iniciativa importante: agora, os atletas também votam para eleger o presidente da CBB. Por enquanto, só os que já defenderam a seleção estão aptos, o que já gerou críticas ao modelo. Mas é um começo.
Correção
Na última coluna, escrevi que Nenê se despediu do Vasco com status de ídolo sem ter conquistado nenhum título. Errei: ele foi campeão estadual invicto em 2016, marcando 7 gols e sendo eleito o craque da competição. Peço desculpas ao jogador e aos leitores.
05 de fevereiro de 2018
Marcelo Barreto, O Globo
Sei também que a memória é seletiva: as primeiras imagens que vêm à mente quando bate o saudosismo são de ídolos como Zico e Roberto Dinamite, de gols marcantes como o da barriga de Renato Gaúcho e o de Maurício encerrando o jejum; o Ladrilheiro e a volta olímpica da caravela ficam guardados na prateleira do esquecimento, em meio a tantos outros momentos que não merecem mais do que a poeira do tempo.
Então, talvez eu precise reformular: tenho saudade do tempo em que o Estadual era relevante. Organizado, quase nunca foi — como de resto ainda não é o futebol nacional. Mas não precisava brigar contra a própria desimportância. Nasci pouco antes da criação do Brasileiro, que levou um bom tempo para rivalizar com os regionais na preferência de clubes e torcidas. No caso específico do Rio, não bastou o primeiro título de um clube do Estado, o Vasco de Dinamite em 1974, para que o interesse migrasse para o país. A sequência de títulos do Flamengo nos anos 80, que levou à conquista da Libertadores, foi mais importante para mudar esse padrão — embora não tenha diminuído a rivalidade local, como os já citados Maurício e Renato provariam em 89 e 95, respectivamente.
O golpe de misericórdia veio com a adoção do sistema de pontos corridos, em 2003. O Brasileiro passou a ocupar mais datas de um calendário já inchado, que precisava acomodar ainda competições mais importantes para os clubes, como a Libertadores e a Copa do Brasil. Os Estaduais ficaram espremidos no começo da temporada, sujeitos aos problemas da época no futebol nacional, como por exemplo o fato de que os times ainda não estão montados. Iniciativas como a do AtléticoPR, que passou a escalar a equipe sub-23 para disputar o Paranaense, marcaram essa nova etapa, e passou a ser mais comum ver pequenos conquistando títulos – caso do Novo Hamburgo no último Gauchão.
Hoje, os Estaduais existem basicamente por uma razão: eleger o presidente da CBF. Como os votos das 27 federações, somados, valem mais do que os dos 40 maiores clubes do país, é preciso manter os eleitores satisfeitos. O Campeonato Carioca pode ter o Fluminense jogando para pouco mais de 400 testemunhas num estádio praguejado por formigas, onde o gandula precisa acender a lanterna do celular para buscar a bola que cai no matagal atrás do gol. Se for para garantir o resultado nas urnas, bola pro mato que o jogo é de campeonato!
Retrato da desimportância
Veja-se, agora, o falso dilema do Vasco: escalar ou não os titulares para o jogo de hoje, contra o Volta Redonda? Digo falso porque na vida real ele não existe. Tudo indica que Zé Ricardo vai botar 11 reservas em campo, poupando o time para receber o Universidad Concepción pela Libertadores — num confronto, na prática, já decidido, depois dos 4 a 0 no Chile.
A análise de cenário não é muito complicada: garantir a vaga na semifinal da Taça Guanabara significa acrescentar um ou dois jogos decisivos antes dos confrontos da próxima fase da Libertadores, na Bolívia (e se o adversário for o Jorge Wilstermann, como parece provável, um deles será nos 2.830m de altitude de Sucre). É vantagem?
Continuo acreditando que ninguém joga para perder. Mas a cada ano estamos vendo mais cenários em que não vale muito a pena vencer. Talvez esteja na hora de ver o lado bom da morte dos Estaduais.
Basquete na cabeça
Anderson Varejão estreou com festa no basquete do Flamengo. Diego, Julio Cesar, Vinicius Júnior e Lucas Paquetá, astros do time de futebol, juntaram-se ao bom público que foi à Arena Olímpica assistir à fácil vitória sobre o Campo Mourão. Perucas cacheadas homenagearam o pivô, que volta também à seleção brasileira, ao lado de Leandrinho, outro repatriado da NBA, convocados pelo técnico Aleksandar Petrovic para dois jogos das eliminatórias do Mundial.
É o começo de uma longa trajetória para salvar um exesporte olímpico brasileiro, que tenta se modernizar com outra iniciativa importante: agora, os atletas também votam para eleger o presidente da CBB. Por enquanto, só os que já defenderam a seleção estão aptos, o que já gerou críticas ao modelo. Mas é um começo.
Correção
Na última coluna, escrevi que Nenê se despediu do Vasco com status de ídolo sem ter conquistado nenhum título. Errei: ele foi campeão estadual invicto em 2016, marcando 7 gols e sendo eleito o craque da competição. Peço desculpas ao jogador e aos leitores.
05 de fevereiro de 2018
Marcelo Barreto, O Globo
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