O incerto e o duvidoso são parte do fascínio contido no esporte. E também na vida
De vez em quando vejo partidas de campeonatos internacionais. Ultimamente tem me chamado a atenção nas transmissões o número e a variedade de câmeras que, de quase todos os ângulos possíveis e imagináveis, seguem o jogo. Algo me diz que esse fenômeno é mais notado no Inglês, mas não tenho certeza. O que é claro é que a missão das transmissões é transformar o futebol numa atividade acima de qualquer dúvida.
A tecnologia dá a impressão de estar a serviço de uma exatidão e perfeição, não só das imagens, mas sobretudo das decisões que determinam o resultado das partidas. O futebol não é a única modalidade sob mira dos fanáticos da verdade. O basquete, principalmente o americano, sofre bastante desse mal, não fossem os Estados Unidos os primeiros inventores de refinadas técnicas para descobrir enganos e puni-los sem piedade. São tão sofisticados na NBA que, apesar dos três juízes na quadra, ainda contam com uma central de vídeo, com sede em Seattle, capaz de dirimir qualquer dúvida.
Os três juízes frequentemente confabulam e, dada a incrível rapidez do jogo, mesmo com auxílio das câmeras de quadra que repetem o lance inúmeras vezes, ainda assim ficam em dúvida. E não pode haver mais dúvidas. O espetáculo não pode mais ser prejudicado por meros seres humanos falíveis. Apelam então para as frias máquinas de Seattle, que dão seu voto decisivo. Não sei bem o que vêm em Seattle, mas é como se fosse a palavra de Deus: ninguém contesta o que determinam.
No tênis já inventaram uma maquininha que apita estridentemente se uma bola bate sobre a linha. Imaginem a precisão da engenhoca, dada a velocidade com que são arremessadas as bolas. Em suma, há uma verdadeira caça ao lance duvidoso, polêmico, incerto.
Essa incerteza, que sempre fez parte do futebol, parece ter seus dias contados. Temos agora a profusão de câmeras e seus expedientes para tentar achar a verdade do lance, aquilo que se oculta e dá margem a dúvidas. Esquecem essas pessoas que o incerto e o duvidoso são parte do fascínio contido no esporte. E não só no esporte. O incerto, o que não temos certeza, é que nos mantém vivos e alertas do momento em que nascemos ao último dia.
A vida é fascinante exatamente porque sabemos muito pouco sobre ela. Quase todos os fatos que se apresentam na nossa vida diária são vagos e admitem várias maneiras de interpretá-los. Assim, o desafio à capacidade do ser humano de decifrar o que se passa é parte da grandeza de qualquer competição esportiva. Se essa missão for deixada à máquina, grande parte, para não dizer o total de seu charme e encantamento, vão se esvaziar.
E mais, é a dúvida que fixa jogos na memória. Lembro de um jogo entre Corinthians e São Paulo de épocas mais do que passadas, e minha lembrança é mais notável porque não torço para nenhum dos dois times. Um deles ganhou por 1 a 0 se lembro bem, e o gol até hoje não se sabe se foi legal ou não. Havia um buraco, que ninguém notou, na rede de uma das traves do Pacaembu, num dos cantos baixos. A bola entrou talvez pelo buraco, mas pode ter entrado direto no gol.
A velocidade do lance turvou o julgamento preciso e o jogo acabou 1 a 0. Durante semanas só se falou nisso. Teria a bola entrado por fora, ou não? O que vale dizer que foi o duvidoso, o improvável, que conservou por tantas décadas na minha memória um jogo morto e esquecido.
Talvez alguém atingido pela mania de exatidão dos dias de hoje prefira consultar o Google sobre esse Corinthians e São Paulo. Vai saber o ano exato, a renda exata e as escalações exatas do jogo e, creio, nenhuma palavra sobre o lance que decidiu a partida. Teria informações boas para a exatidão dos fatos, mas péssimas para a poesia da memória.
05 de fevereiro de 2018
ugo giorgetti, Estadão
De vez em quando vejo partidas de campeonatos internacionais. Ultimamente tem me chamado a atenção nas transmissões o número e a variedade de câmeras que, de quase todos os ângulos possíveis e imagináveis, seguem o jogo. Algo me diz que esse fenômeno é mais notado no Inglês, mas não tenho certeza. O que é claro é que a missão das transmissões é transformar o futebol numa atividade acima de qualquer dúvida.
A tecnologia dá a impressão de estar a serviço de uma exatidão e perfeição, não só das imagens, mas sobretudo das decisões que determinam o resultado das partidas. O futebol não é a única modalidade sob mira dos fanáticos da verdade. O basquete, principalmente o americano, sofre bastante desse mal, não fossem os Estados Unidos os primeiros inventores de refinadas técnicas para descobrir enganos e puni-los sem piedade. São tão sofisticados na NBA que, apesar dos três juízes na quadra, ainda contam com uma central de vídeo, com sede em Seattle, capaz de dirimir qualquer dúvida.
Os três juízes frequentemente confabulam e, dada a incrível rapidez do jogo, mesmo com auxílio das câmeras de quadra que repetem o lance inúmeras vezes, ainda assim ficam em dúvida. E não pode haver mais dúvidas. O espetáculo não pode mais ser prejudicado por meros seres humanos falíveis. Apelam então para as frias máquinas de Seattle, que dão seu voto decisivo. Não sei bem o que vêm em Seattle, mas é como se fosse a palavra de Deus: ninguém contesta o que determinam.
No tênis já inventaram uma maquininha que apita estridentemente se uma bola bate sobre a linha. Imaginem a precisão da engenhoca, dada a velocidade com que são arremessadas as bolas. Em suma, há uma verdadeira caça ao lance duvidoso, polêmico, incerto.
Essa incerteza, que sempre fez parte do futebol, parece ter seus dias contados. Temos agora a profusão de câmeras e seus expedientes para tentar achar a verdade do lance, aquilo que se oculta e dá margem a dúvidas. Esquecem essas pessoas que o incerto e o duvidoso são parte do fascínio contido no esporte. E não só no esporte. O incerto, o que não temos certeza, é que nos mantém vivos e alertas do momento em que nascemos ao último dia.
A vida é fascinante exatamente porque sabemos muito pouco sobre ela. Quase todos os fatos que se apresentam na nossa vida diária são vagos e admitem várias maneiras de interpretá-los. Assim, o desafio à capacidade do ser humano de decifrar o que se passa é parte da grandeza de qualquer competição esportiva. Se essa missão for deixada à máquina, grande parte, para não dizer o total de seu charme e encantamento, vão se esvaziar.
E mais, é a dúvida que fixa jogos na memória. Lembro de um jogo entre Corinthians e São Paulo de épocas mais do que passadas, e minha lembrança é mais notável porque não torço para nenhum dos dois times. Um deles ganhou por 1 a 0 se lembro bem, e o gol até hoje não se sabe se foi legal ou não. Havia um buraco, que ninguém notou, na rede de uma das traves do Pacaembu, num dos cantos baixos. A bola entrou talvez pelo buraco, mas pode ter entrado direto no gol.
A velocidade do lance turvou o julgamento preciso e o jogo acabou 1 a 0. Durante semanas só se falou nisso. Teria a bola entrado por fora, ou não? O que vale dizer que foi o duvidoso, o improvável, que conservou por tantas décadas na minha memória um jogo morto e esquecido.
Talvez alguém atingido pela mania de exatidão dos dias de hoje prefira consultar o Google sobre esse Corinthians e São Paulo. Vai saber o ano exato, a renda exata e as escalações exatas do jogo e, creio, nenhuma palavra sobre o lance que decidiu a partida. Teria informações boas para a exatidão dos fatos, mas péssimas para a poesia da memória.
05 de fevereiro de 2018
ugo giorgetti, Estadão
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