"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

sábado, 24 de dezembro de 2016

NAS MÃOS DO STF

As causas básicas estão explicadas em detalhes em artigo no meu blog e em inae.org.br, mas a crise estadual, diante da inoperância do governo federal, atinge proporções de calamidade, sobre a qual o País deveria se debruçar. Essa situação já foi decretada por Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Minas. Outros Estados e Municípios virão atrás.

A essência do problema é simples. Diante de sub-orçamentos cativos (isto é, com fatias fixas e comando descentralizado -- os verdadeiros “donos do orçamento”), que totalizam 60% das receitas convencionais, sem bancar os próprios aposentados, os governadores não têm como pagar uma gigantesca conta global de inativos com os restantes 40% e ao mesmo tempo atender às necessidades dos segmentos fora do manto protetor das vinculações de receitas, dos duodécimos fixos etc.

No setor residual, destacam-se as áreas de Segurança, crítica para a manutenção da ordem pública, e de Infraestrutura, que desapareceu dos orçamentos públicos. A saída para a infraestrutura seria atendê-la por meio do setor privado, mas isso paradoxalmente enfrenta resistências ideológicas. Diante da maior recessão de nossa história, a receita do orçamento desprotegido desaba mais que a dos demais, deixando o governador, que muitos imaginam todo-poderoso, praticamente sem opções.

Temerosos da reação dos servidores e dos “donos”, os gestores financeiros começam adiando pagamentos de serviços junto ao setor privado, como alimentação para presídios, combustível para a polícia, subsídios ao transporte coletivo etc. Em seguida, atrasam salários e pagamentos de juros à União. Finalmente, chega-se na saúde e na educação. Mas aí entram o Tesouro Nacional e o Judiciário local (parte dos “donos”) para arrestar os recursos depositados nas contas bancárias, como no Rio, deixando o governador à míngua. Além disso, as partes afetadas põem na agenda a discussão de problemas válidos apenas em outros contextos, como os incentivos fiscais do Rio, com o objetivo de desviar a atenção das questões reais.

É óbvio que a União terá de pôr recursos nos Estados, ainda que no Ministério da Fazenda exista firme oposição a tal medida. Governo existe para agir quando se faz imperioso, não é para fazer firula. A União pode fazer isso simplesmente cumprindo a lei, e, ao mesmo tempo, resolver os problemas conjunturais e o estrutural. Basta ler meu texto acima citado e usar o modelo de projeto de lei apresentado no mesmo lugar.

O artigo 40 da Constituição manda os entes públicos (inclusive a União, que nada faz nessa direção) zerarem os respectivos passivos previdenciários ou atuariais mediante o aumento das contribuições dos empregadores e dos funcionários ativos, aposentados e pensionistas, após colocarem o máximo de ativos ou recebíveis que puderem. Isso se faz via fundos de pensão, reorganizando os orçamentos estaduais, que se livrariam da despesa de inativos e ficariam só com o encargo de pagar sua contribuição – a que couber –, como faz qualquer empresa.

Aqui entra também a reforma da Previdência estadual, que reduziria a necessidade de ajuste nas contribuições, pegando carona na PEC que o governo federal enviou ao Congresso, infelizmente desfigurada no Planalto, com a retirada, na última hora, do ajuste dos militares estaduais.

O problema conjuntural se resolve se a União adiantar o dinheiro da venda (securitização) dos recebíveis, emitindo dívida, mas recebendo ativos financeiros em troca, zerando o efeito sobre a dívida pública líquida, algo que já se fez inúmeras vezes. É o mínimo que pode ser feito, quando em apenas três anos (2015-17) o Banco Central terá emitido R$ 423 bilhões para financiar os buracos primários acumulados da União, sem nenhum lastro em ativos/recebíveis. Por que não se programou algo para a crise estadual quando foram fixadas as metas de déficit primário para esses três anos?

O Rio está tentando adotar a solução descrita, mas não pode dar qualquer passo porque, em vez de adiantar dinheiro para manter os pagamentos estaduais em dia, o Ministério da Fazenda limpa a conta bancária do Estado. Como poderá o governador barganhar um aumento de contribuição com os servidores se não tem como garantir seu pagamento em dia?

Outro exemplo de inoperância foi a omissão do governo (ou seu trabalho contrário) na discussão, quinta-feira, de um projeto no Senado que permitiria aos Estados lançar mão de um recebível certo, a chamada “dívida ativa”, que poderia, no formato correto, mobilizar recursos expressivos para equilibrar as previdências estaduais. A versão que ficou para voto eventual nesta terça cede a pressões corporativas e reduz seu valor potencial a algo inexpressivo, exatamente quando aqueles entes mais necessitam.

Diante de cenário tão grave, a lúcida presidente do STF, ministra Carmem Lúcia, vai acabar forçada a assumir um papel que nunca deve ter imaginado para a maioria do plenário daquela Corte: substituir o Poder Executivo, pois, com o Congresso em crise, os segmentos abalados não terão outra instância a recorrer.


24 de dezembro de 2016
Raul Velloso, O Globo

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