Na quarta parte da entrevista de Zuenir Ventura com o editor e jornalista Cesar Benjamim, feita em 2007 para o livro “1968: o que fizeram de nós”, o futuro secretário de Educação da Prefeitura do Rio de Janeiro, entre outros assuntos de importância, fala sobre o desmonte do sistema educacional brasileiro e considera um engodo o Prouni (Programa Universidade para Todos), criado pelo governo Lula para favorecer as instituições particulares de ensino superior, ao invés de fortalecer as escolas e universidades públicas.
ZUENIR VENTURA – Em 98, você escreveu que “se continuamos interessados em 1968 é porque o que então ocorreu ainda nos tem a dizer sobre o futuro”. Afinal, 68 terminou ou não terminou?CESAR BENJAMIN – 68 não gerou um projeto político. Teve um aspecto, porém, que me marcou muito, o da vontade. Íamos para o centro da cidade, vinha a polícia e corríamos dela, até que dissemos: “Não vamos correr mais; agora a gente vai para cima deles.” Começamos a dispersar a polícia, que nunca tinha sido confrontada. Passamos a espalhar bolinhas de gude pelo chão, e os cavalos escorregavam; soltávamos rojão, e os cavalos se assustavam. Descobrimos então que podíamos ganhar. Sessenta e oito, para mim, foi a rebeldia associada à vontade. Isso é maior do que todos os erros que cometemos. Tenho buscado viver de forma coerente com os valores que assumi naquela época, que foi a da minha juventude, sempre aberto a reaprender e a repensar.
Que passa por um projeto de educação, não?Todos sabem que a educação brasileira é um desastre. A cada ano, jogamos na rua multidões de analfabetos funcionais. Aprendem a soletrar o nome, a ler o letreiro de um ônibus, mas não são capazes de escrever uma carta dizendo: “Prezada mãe, estou aqui”. Há tempos, uma notícia chamou minha atenção. Um rapaz de 20 anos foi preso em São Paulo por furto. Ele estava na escola desde os oito anos, e na delegacia mandou um bilhete para a mãe. O jornal publicou uma foto do que ele escreveu. O bilhete era quase indecifrável, parecia escrito em língua estrangeira. Estava na escola há doze anos e não conseguia escrever quatro linhas! Coloque-se na posição desse rapaz. Que sentido tem a vida dele? Ano após ano numa escola que não lhe ensina nada, enquanto os meios de comunicação só falam em competitividade! A vida se transforma numa enorme perda de tempo. Nesse vazio de possibilidades, tudo é igual, tudo é possível, não há horizontes de crescimento e de transcendência, não há futuro, e o próprio crime se banaliza.
O que de mais urgente precisaria ser feito nesse campo?
O economista Márcio Pochmann, da Unicamp, fez um cálculo interessante: que esforço o Brasil teria que fazer para atingir, em dez anos, o nível que o Chile tem hoje na escola de segundo grau? O resultado é o seguinte: teríamos que criar cinco milhões e 700 mil novas vagas no ensino médio, formar 120 mil professores, criar 100 mil novas turmas, construir 50 mil salas de aula. Se o governo Lula dissesse: “Eu não vou fazer isso tudo, mas vou começar a fazer, vou começar uma revolução na educação”, eu o apoiaria. Bastaria isso. Mas o que ele faz? Faz o Prouni, um engodo. Como as faculdades privadas cresceram muito no governo Fernando Henrique e ficaram com capacidade ociosa, o governo Lula compra vagas nessas escolas de péssima qualidade e as oferece para cursos à noite. Isso é brincar com o Brasil. A estrutura do ensino superior brasileiro não é adequada às necessidades do país, pois as faculdades privadas se multiplicaram sem controle, sempre oferecendo os cursos que têm menos custos. Seria preciso alterar a estrutura do ensino superior, mas enfrentar isso exige uma grandeza que perdermos. Estamos sempre em busca das soluções mais fáceis, que invariavelmente desembocam no marketing. Enquanto oferecemos cursos ruins e de baixo custo, com professores desestimulados, a China está formando 80 mil doutores em Física, a Finlândia assumiu a ponta em telecomunicações, a Índia é o novo pólo mundial da informática.
O economista Márcio Pochmann, da Unicamp, fez um cálculo interessante: que esforço o Brasil teria que fazer para atingir, em dez anos, o nível que o Chile tem hoje na escola de segundo grau? O resultado é o seguinte: teríamos que criar cinco milhões e 700 mil novas vagas no ensino médio, formar 120 mil professores, criar 100 mil novas turmas, construir 50 mil salas de aula. Se o governo Lula dissesse: “Eu não vou fazer isso tudo, mas vou começar a fazer, vou começar uma revolução na educação”, eu o apoiaria. Bastaria isso. Mas o que ele faz? Faz o Prouni, um engodo. Como as faculdades privadas cresceram muito no governo Fernando Henrique e ficaram com capacidade ociosa, o governo Lula compra vagas nessas escolas de péssima qualidade e as oferece para cursos à noite. Isso é brincar com o Brasil. A estrutura do ensino superior brasileiro não é adequada às necessidades do país, pois as faculdades privadas se multiplicaram sem controle, sempre oferecendo os cursos que têm menos custos. Seria preciso alterar a estrutura do ensino superior, mas enfrentar isso exige uma grandeza que perdermos. Estamos sempre em busca das soluções mais fáceis, que invariavelmente desembocam no marketing. Enquanto oferecemos cursos ruins e de baixo custo, com professores desestimulados, a China está formando 80 mil doutores em Física, a Finlândia assumiu a ponta em telecomunicações, a Índia é o novo pólo mundial da informática.
Qual a sua maior crítica ao governo Lula? É ter rebaixado os horizontes de expectativa da nação. Um povo não se define tanto pelo que é, mas pelo que quer vir a ser. Nosso horizonte está muito rebaixado, ficou pequenininho. Os políticos se apresentam como campeões da caridade, e não como portadores de projetos para o país. O Lula disseminou isso, com sua enorme capacidade de nivelar por baixo e cooptar. O MST tem convênios com o Incra, o PC do B tem o Ministério dos Esportes, o banqueiro tem o juro, o pobre tem o Bolsa Família. Todo mundo se dá um pouquinho bem, enquanto o Brasil caminha alegremente para o cu do mundo. Estamos virando um país em que tudo é malfeitinho: o professor não dá uma aula decente, passa trabalho; o aluno não aprende, faz trabalho para ganhar a nota; o Congresso Nacional vira uma casa de despachantes; a polícia arma o bandido. As instituições estão deixando de funcionar, substituídas por uma enorme farsa. Taí outra coisa que me faria apoiar o governo: “Eu vou convocar a sociedade para, juntos, fazermos as coisas funcionarem. Professor vai dar aula de boa qualidade, congressista vai debater questões relevantes e fazer leis, juiz vai julgar e polícia vai combater o crime.” Já seria um bom programa de governo… Mas o exemplo teria que vir, é claro, do próprio governo.
Otimista por natureza, você parece ter feito a opção pelo pessimismo.Não sou pessimista. Mas também não quero aderir ao otimismo idiota do marketing. Com todas as minhas imensas limitações, quero ajudar a reconstruir um otimismo que decorra de um pensamento robusto e de uma vontade vigorosa. Eu não acho que o Brasil não vai dar certo. Mas, para que dê certo, precisamos fazer um imenso esforço intelectual, político e moral. Precisamos pensar e trabalhar seriamente. Sinto-me mais próximo da geração a que me referi e mais afastado da esquerda atual. Nosso povo não tem motivos para seguir a esquerda que está aí. Ela não se mostrou à altura da sua própria utopia, mergulhou no terreno da hipocrisia. E a política institucional brasileira faliu. Estamos vivendo o fim do impulso que a sociedade teve nos anos 80, com o fim do regime militar e a redemocratização, que construiu atores, esperanças e instrumentos novos, como a Constituição de 88, o Ministério Público, as eleições diretas, movimentos sociais, PT, MST, CUT, etc. Esse processo deu, à minha geração, a esperança de conseguir fundir democracia e justiça social. O Lula de 89 representava esse impulso renovador, que sofreu um baque com a eleição de Collor. Mas o impulso permaneceu vivo enquanto existiu uma oposição pulsante ao projeto de desconstrução de Collor e Fernando Henrique. Permaneceu existindo uma esperança, a idéia de que um dia isso ia chegar lá! Quando o Lula ganha em 2002 e, junto com o PT, rasga a fantasia, integrando-se ao sistema tradicional de poder, o impulso reformador dos anos 80 realmente se esgota. Começa a anomia. Hoje, os partidos só discutem o loteamento de cargos, muitos dos quais, aliás, perfeitamente medíocres.
Por que há tanto interesse em nomear um diretor do DNIT? Porque cada órgão, cada diretoria, gerencia orçamentos, organiza licitações, faz compras, atende ou deixa de atender pedidos, e é isso que interessa. A democracia recente brasileira – o governo Lula acelerou esse processo – criou lobbies que pilham sistematicamente o Estado nacional. O Estado deixou de ser um espaço organizador de um projeto e se transformou em um terreno aberto à acumulação primitiva. O presidente do Brasil tem 25 mil cargos para nomear, enquanto o presidente da França tem 300. Com isso, ele quebra a espinha do Congresso, que se apequena e passa a viver em torno dessas negociatas. Tem gente boa lá, mas a banda podre é que se sente prestigiada e cresce. Estabelecem-se relações cínicas, que contaminam toda a nação.
24 de dezembro de 2016
Mário Assis Causanilhas
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