Fernando Orotavo Neto é um dos maiores especialistas em Direito Financeiro e Mercado de Capitais. No comando do escritório que leva seu nome e foi fundado por seu avô em 1945, ele tem em seu currículo muitas disputas bilionárias travadas nas últimas décadas. E quase todas são “leading cases”, expressão que no jargão jurídico significa “causa líder ou pioneira”, ou seja, aquele tipo de litígio que abre caminho para a formação da jurisprudência sobre determinada questão jurídica. No caso dele, litígios quase sempre referentes ao Mercado de Valores Mobiliários.
Conselheiro efetivo da OAB, professor (licenciado) de Direito Processual Civil na Universidade Candido Mendes, autor de diversos artigos e obras jurídicas (“Das Liquidações Extrajudiciais de Instituições Financeiras” e “Dos Recursos Cíveis”), o jurista está por trás de importantíssimos processos, como a anulação da multa recorde de meio bilhão de reais imposta pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) no célebre caso Rioprevidência.
Além disso, entre outras causas de valor portentoso, foi responsável pelo resgate de créditos da ordem de 1,1 bilhão de reais, no caso da emissão das Letras Financeiras do Estado de Pernambuco, e de 1,8 bilhão de reais, pelo Estado de Alagoas; teve sucesso na recuperação de créditos na liquidação extrajudicial do Banco Vega; e conseguiu recuperar 65 milhões de reais para uma empresa de serviços de eletricidade na liquidação extrajudicial do Banco Santos, impedindo, assim, o calote.
Qual a maior dificuldade em propor e defender ações judiciais na área do mercado financeiro e de capitais?A maior dificuldade, a meu ver, é a inexistência de uma justiça especializada. As operações financeiras de onde se originam essa espécie de litígio, os próprios produtos e serviços oferecidos pelo mercado de valores mobiliários são cada vez mais complexos e especializados. Além disso, as regras bancárias (instruções, resoluções, portarias e deliberações) que regem as operações financeiras mudam diuturnamente. Inexiste uma codificação para as normas bancárias, como existe nos outros ramos do Direito, o que dificulta a interpretação delas pelo julgador. Um juiz, normalmente, só passa a tomar conhecimento do que é um day-trade, uma venda a descoberto, um swap de derivativo, quando um processo sobre o tema cai no seu colo. Não basta bem conhecer direito societário para atuar nesse ramo do direito. É necessário conhecer direito constitucional, civil, processo civil, administrativo, penal, além de possuir amplo conhecimento, é claro, quanto à mecânica sistemática e operacional das operações financeiras negociadas no mercado de valores mobiliários, primário e secundário.
Cite um exemplo desse tipo de situação, por favor.Certa vez, um cliente chegou desesperado no escritório, porque fora denunciado pelo Ministério Público por ter comprado ações sem movimentar recursos financeiros. O juiz aceitou a denúncia, porque não tinha a mínima ideia do que era uma venda a descoberto, operação que, além de usual, praxe mesmo, constitui importante instrumento de liquidez para o mercado financeiro e que reside em apostar na “baixa” do ativo mobiliário, ou seja, vender uma ação a R$ 10,00, para comprá-la, depois da venda, a R$ 8,00, para lucrar R$ 2,00. Ou seja, vende-se o que não se tem, mas entrega-se o que foi prometido, a ação, seja com lucro ou prejuízo (na hipótese de a ação subir para R$ 12,00). No fim, deu tudo certo, embora explicar não tenha sido fácil, num primeiro momento.
A anulação da multa de R$ 504 milhões no caso Rioprevidência, além de lhe render o apelido de “algoz da CVM”, expôs algumas falhas no processo administrativo que tramitou pela autarquia. A quem podem ser imputadas essas falhas?É a primeira vez que ouço falar desse apelido… Olha, litigar contra a CVM e contra o Banco Central é muito difícil. Em primeiro lugar, porque os atos administrativos em geral gozam de uma presunção de legalidade, que precisará ser demolida pela parte contrária. O juiz, no primeiro contato com o processo, já tende a achar que as autarquias estão com a razão. E a falta de um conhecimento especializado a respeito da mecânica dos negócios financeiros, com certeza, tende a ocultar, involuntariamente embora, a existência das eventuais falhas incorridas pela autoridade monetária ou fiscalizadora no julgamento ou na análise da ocorrência do delito administrativo. Não bastasse isso, tanto a CVM quanto o BC têm funcionários de altíssima especialização, que realmente entendem do riscado. No entanto, os agentes da administração pública são como todos nós, não estão imunes a erros.
Quais as consequências jurídicas e administrativas resultantes da inédita anulação dessa multa de meio bilhão de reais imposta pela CVM no Caso Rioprevidência, a segunda maior da sua história?No âmbito judicial, o mais importante foi ter criado um precedente. Agora, sempre que a CVM afirmar que o acusado causou um prejuízo em detrimento de alguém, mesmo que o fato-prejuízo não constitua elemento da tipificação do delito administrativo, fica obrigada a deferir a prova pericial requerida pelo acusado, sob pena de cerceamento de defesa e posterior anulação do julgamento administrativo. Na ambiência administrativa, esse precedente judicial propiciou uma evolução hermenêutica, porque, depois dessa decisão unânime da 7ª Tuma Especializada do TRF-2, tenho conhecimento de processos administrativos sancionadores em que a própria CVM deferiu a prova pericial sem que fosse necessário que o acusado se socorresse do Judiciário para conseguir a sua realização. Isto é muito bom, e parece-me que nova orientação da CVM só está a merecer aplausos. Recentemente, anulamos uma multa aplicada a um acusado por informação confidencial, e a dois outros, que foram acusados por delitos de operação fraudulenta e de prática não-equitativa, como noticiado, inclusive, pelo respeitado site Conjur. Sempre que o ato administrativo sancionador padecer de vícios resultantes de erro de forma ou de conteúdo, pode e deve ser anulado pelo Poder Judiciário. Na minha opinião, essas foram as maiores contribuições trazidas por esse precedente judicial.
No caso da Rioprevidência, quem errou na CVM?Não consigo imputar o erro ocorrido no julgamento administrativo do Caso Rioprevidência a fulano ou beltrano. A meu ver, o erro é sistêmico. As normas bancárias – inferiores que são – devem, sempre e sempre, ser interpretadas conforme a Constituição e as leis. E quando isso não acontece, o ato administrativo sancionador corre o risco de se afastar da legalidade. Essa ação da Rioprevidência chamou muita atenção pelo valor da pena, pela grandiosidade da multa, mas o direito não tem preço. A multa pode ser ilegal se for de um real ou de um bilhão. Pouco importa. Legalidade e ilegalidade não se confundem. Quando você acusa alguém de ter causado prejuízo a outrem, é impensável que se possa impedir o acusado de provar a inexistência do prejuízo ou do nexo de causalidade entre a ação ou omissão praticada e o prejuízo. Sob os auspícios da Constituição Cidadã de 1988, o mito da supremacia do interesse público deve ser mitigado em prol da garantia dos direitos fundamentais do cidadão, sob pena de retrocesso social.
E a emissão de títulos por alguns Estados, com posterior calote dos compradores?Entendo que nada justifica que um ente federativo emita títulos, aos quais subjaz empréstimo público, e não pague esses títulos no vencimento. A existência de um Estado caloteiro, que não paga os títulos que emite, prejudica até o grau de investimento do País como um todo, por se tratar de uma república federativa. Por igual, se uma instituição financeira desvia dinheiro entregue a ela por investidores ou poupadores, destinando esses recursos a outra empresa que lhe é coligada ou mantém com ela vínculos de interesse, nada mais justo e legal do que punir também a empresa destinatária do dinheiro alheio, tal como prevê a Lei de Liquidações Extrajudiciais. No Direito Financeiro, não há milagres. O que existe é empreender a melhor estratégica jurídica para cada caso, o que depende, é claro, de conhecimento sobre o mercado financeiro e de capitais, bem como sobre a mecânica operacional das negociações financeiras. Sem isso, fica muito complicado.
Recuperar créditos devidos por entes federativos inadimplentes e receber o dinheiro que poupadores e investidores aplicaram em bancos falidos não deve ser muito fácil também. Existe uma fórmula que garanta o sucesso dessa empreitada processual?
Não, pois cada caso é um caso e tem suas peculiaridades. Quem disser que existe fórmula é charlatão, e não advogado. Aqui no escritório, de início procuramos analisar a legalidade da operação financeira como um todo. Qual é a natureza da negociação efetivada, se houve falhas operacionais, como aconteceram e em que fase. Assim, podemos identificar com maior facilidade a norma bancária que regulava a operação e constatar se foi violada. Temos de saber se foi no mercado primário ou secundário, para entender por que a falha aconteceu e quem foi o responsável ou contribuiu por ação ou omissão, e, principalmente, quais foram osplayers da operação, que dela se beneficiaram, direta ou indiretamente, obtendo vantagem patrimonial ilícita e indevida em detrimento de terceiros. Depois, utilizamos a regra de seguir o dinheiro, porque, embora dinheiro não tenha cheiro, sempre deixa rastros, por melhor escondido que seja. E o dono final do dinheiro quase sempre é o mentor da operação ou seu beneficiário, pois ninguém corre o risco de montar uma operação financeira ilegal para deixar o resultado com outra pessoa.
Não, pois cada caso é um caso e tem suas peculiaridades. Quem disser que existe fórmula é charlatão, e não advogado. Aqui no escritório, de início procuramos analisar a legalidade da operação financeira como um todo. Qual é a natureza da negociação efetivada, se houve falhas operacionais, como aconteceram e em que fase. Assim, podemos identificar com maior facilidade a norma bancária que regulava a operação e constatar se foi violada. Temos de saber se foi no mercado primário ou secundário, para entender por que a falha aconteceu e quem foi o responsável ou contribuiu por ação ou omissão, e, principalmente, quais foram osplayers da operação, que dela se beneficiaram, direta ou indiretamente, obtendo vantagem patrimonial ilícita e indevida em detrimento de terceiros. Depois, utilizamos a regra de seguir o dinheiro, porque, embora dinheiro não tenha cheiro, sempre deixa rastros, por melhor escondido que seja. E o dono final do dinheiro quase sempre é o mentor da operação ou seu beneficiário, pois ninguém corre o risco de montar uma operação financeira ilegal para deixar o resultado com outra pessoa.
10 de agosto de 2016
Carlos Newton
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