Entre as várias associações e entidades que questionam a recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de que são as Câmaras Municipais, e não os Tribunais de Contas, as instâncias legais para coibir a malversação do dinheiro público, está a Associação Nacional dos Auditores de Controle Externo dos Tribunais de Contas do Brasil (ANTC), que entrou no Supremo com um “memorial complementar para esclarecer divergência” com o qual pretende que seja revista a interpretação dada à decisão.
Caso prevaleça a tese de que prefeitos — e por extensão governadores — só se tornarão inelegíveis se as Câmaras Municipais (ou as Assembleias Legislativas) rejeitarem suas contas, milhares de prefeitos estarão livres da Lei da Ficha Limpa, que considera que prefeitos (e governadores) perdem o direito a concorrer a cargos públicos se os Tribunais de Contas rejeitarem suas contas, independentemente da decisão dos vereadores ou deputados estaduais.
A decisão foi apertada —6 a 5 — e está causando muita controvérsia, especialmente porque praticamente anula um dos principais pontos da Lei da Ficha Limpa, criticada na sua forma pelo ministro Gilmar Mendes. A presidente da ANTC, Lucieni Pereira da Silva, ressalta, em especial, um ponto: “Mais grave do que o prefeito ficar sob um julgamento meramente político dos vereadores, outro problema gravíssimo é que a Constituição não confere à Câmara Municipal os instrumentos necessários para assegurar o ressarcimento do valor desviado dos cofres públicos”.
Ela se refere a um efeito imediato da decisão: os prefeitos e governadores que tiverem o controle político de suas respectivas Casas Legislativas jamais serão punidos por eventuais falcatruas, além do que terão em mãos um poderoso instrumento contra seus adversários locais, podendo rejeitar as contas dos antecessores mesmo que o Tribunal de Contas as tenha aprovado. Além disso, na mesma sessão, o STF tomou outra decisão: em caso de omissão da análise das contas por parte do Legislativo, os prefeitos não podem ser punidos. Bastará, portanto, que as contas não sejam analisadas para que o prefeito fique livre de punição.
Lucieni Pereira destaca que “As Casas Legislativas não têm competência para julgar contas de ordenador de despesa, fixar o valor do dano, determinar o ressarcimento aos cofres públicos e aplicar multa proporcional ao dano”. Ela explica que ao repartir as competências do controle externo, a Constituição as inclui no artigo 71 (incisos II e VIII), e não na competência do Legislativo (artigos 31 e 49).
Para assegurar o ressarcimento do dano rapidamente, o artigo 71, § 3º da Constituição, estabelece que as decisões do TCU e demais Tribunais de Contas têm eficácia de título executivo, o que significa que as decisões dos tribunais, em caso de desvio de dinheiro público, podem ser executadas imediatamente pela Advocacia-Geral da União (AGU) no Judiciário se for dinheiro federal.
Não é necessário discutir a matéria numa vara civil para só depois executar. O ministro Teori Zavascki destacou esse ponto no seu voto vencido, mas Lucieni Pereira acha que os demais ministros não atentaram para esse dado. “Do jeito que está a decisão, se o prefeito desviar dinheiro em janeiro de 2016, ele só prestará contas anuais de 2016 em abril de 2017, em até 60 dias após a abertura da sessão legislativa. O Tribunal de Contas tem o prazo de 180 dias (6 meses) para emitir o parecer prévio das contas anuais do prefeito, ou seja, tem até outubro de 2017, quando enviará o parecer prévio para Câmara Municipal. E nisso, o dinheiro desviado não voltou aos cofres públicos. Se o prefeito tiver o controle da Câmara Municipal, esse dinheiro não voltará, ressalta a presidente da ANTC.
E, quando a Câmara Municipal julgar esse parecer prévio, só poderá aprovar, aprovar com ressalvas ou rejeitar; não poderá fazer mais nada. Se as contas forem rejeitadas, o prefeito ficará inelegível por 8 anos, mas estará rico. “Assim, o desvio de dinheiro público pode compensar”, lamenta. Oito anos depois, esse ex-prefeito volta a se eleger e desvia novamente, e no máximo ficará inelegível.
A ANTC considera que essa decisão induzirá a dois comportamentos: 1) Prefeitos quererão ser ordenadores de despesa, pois não serão tecnicamente julgados; 2) valerá a pena prefeito roubar, já que o Tribunal de Contas não poderá determinar que ele devolva o valor desviado.
21 de agosto de 2016
Merval Pereira, O Globo
Caso prevaleça a tese de que prefeitos — e por extensão governadores — só se tornarão inelegíveis se as Câmaras Municipais (ou as Assembleias Legislativas) rejeitarem suas contas, milhares de prefeitos estarão livres da Lei da Ficha Limpa, que considera que prefeitos (e governadores) perdem o direito a concorrer a cargos públicos se os Tribunais de Contas rejeitarem suas contas, independentemente da decisão dos vereadores ou deputados estaduais.
A decisão foi apertada —6 a 5 — e está causando muita controvérsia, especialmente porque praticamente anula um dos principais pontos da Lei da Ficha Limpa, criticada na sua forma pelo ministro Gilmar Mendes. A presidente da ANTC, Lucieni Pereira da Silva, ressalta, em especial, um ponto: “Mais grave do que o prefeito ficar sob um julgamento meramente político dos vereadores, outro problema gravíssimo é que a Constituição não confere à Câmara Municipal os instrumentos necessários para assegurar o ressarcimento do valor desviado dos cofres públicos”.
Ela se refere a um efeito imediato da decisão: os prefeitos e governadores que tiverem o controle político de suas respectivas Casas Legislativas jamais serão punidos por eventuais falcatruas, além do que terão em mãos um poderoso instrumento contra seus adversários locais, podendo rejeitar as contas dos antecessores mesmo que o Tribunal de Contas as tenha aprovado. Além disso, na mesma sessão, o STF tomou outra decisão: em caso de omissão da análise das contas por parte do Legislativo, os prefeitos não podem ser punidos. Bastará, portanto, que as contas não sejam analisadas para que o prefeito fique livre de punição.
Lucieni Pereira destaca que “As Casas Legislativas não têm competência para julgar contas de ordenador de despesa, fixar o valor do dano, determinar o ressarcimento aos cofres públicos e aplicar multa proporcional ao dano”. Ela explica que ao repartir as competências do controle externo, a Constituição as inclui no artigo 71 (incisos II e VIII), e não na competência do Legislativo (artigos 31 e 49).
Para assegurar o ressarcimento do dano rapidamente, o artigo 71, § 3º da Constituição, estabelece que as decisões do TCU e demais Tribunais de Contas têm eficácia de título executivo, o que significa que as decisões dos tribunais, em caso de desvio de dinheiro público, podem ser executadas imediatamente pela Advocacia-Geral da União (AGU) no Judiciário se for dinheiro federal.
Não é necessário discutir a matéria numa vara civil para só depois executar. O ministro Teori Zavascki destacou esse ponto no seu voto vencido, mas Lucieni Pereira acha que os demais ministros não atentaram para esse dado. “Do jeito que está a decisão, se o prefeito desviar dinheiro em janeiro de 2016, ele só prestará contas anuais de 2016 em abril de 2017, em até 60 dias após a abertura da sessão legislativa. O Tribunal de Contas tem o prazo de 180 dias (6 meses) para emitir o parecer prévio das contas anuais do prefeito, ou seja, tem até outubro de 2017, quando enviará o parecer prévio para Câmara Municipal. E nisso, o dinheiro desviado não voltou aos cofres públicos. Se o prefeito tiver o controle da Câmara Municipal, esse dinheiro não voltará, ressalta a presidente da ANTC.
E, quando a Câmara Municipal julgar esse parecer prévio, só poderá aprovar, aprovar com ressalvas ou rejeitar; não poderá fazer mais nada. Se as contas forem rejeitadas, o prefeito ficará inelegível por 8 anos, mas estará rico. “Assim, o desvio de dinheiro público pode compensar”, lamenta. Oito anos depois, esse ex-prefeito volta a se eleger e desvia novamente, e no máximo ficará inelegível.
A ANTC considera que essa decisão induzirá a dois comportamentos: 1) Prefeitos quererão ser ordenadores de despesa, pois não serão tecnicamente julgados; 2) valerá a pena prefeito roubar, já que o Tribunal de Contas não poderá determinar que ele devolva o valor desviado.
21 de agosto de 2016
Merval Pereira, O Globo
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