Como já foi escrito em um texto anterior, PRIMO LEVI era um químico italiano de apenas 24 anos quando foi capturado pelas forças fascistas italianas e deportado para o campo de concentração de Auschwitz, a fábrica da morte construída pelo regime nazista para executar judeus, homossexuais, comunistas e ciganos.
Em 1945, após sua libertação, militares soviéticos encarregaram Levi e outro prisioneiro, o médico Leonardo De Benedetti, de elaborarem um relatório detalhado sobre as inomináveis condições dos campos. O resultado foi transformado em um livro – “Assim foi Auschwitz” -, um testemunho extraordinário e pioneiro sobre os campos de concentração, e ainda hoje uma peça impressionante a respeito da prática clínica num lugar de desumanização e extermínio. Detalhes escabrosos, escatológicos e aviltantes a respeito do cotidiano dos médicos, enfermeiros e pacientes são apresentados numa prosa sóbria, cristalina e antissentimental.
No livro há relatos, depoimentos, cartas e comentários publicados quase até às vésperas de sua morte, em 1987. Invocam, com o poder do testemunho e a desconcertante claridade de sua prosa, a agonia de milhões de pessoas que experimentaram o inferno em um sistema diabolicamente concebido para espoliar do homem tudo o que ele tem – seu corpo, sua esperança e, por fim, sua própria vida.
A seguir um dos capítulos do “Assim foi Auschwitz”, intitulado “A Europa dos Campos de Concentração”, escrito por PRIMO LEVI em 1973:
A história da deportação e dos campos de concentração não pode ser dissociada da história das tiranias fascistas na Europa. Ela representa seu fundamento levado ao extremo, além de qualquer limite da lei moral gravada na consciência humana. Se o nacional-socialismo tivesse prevalecido (e podia prevalecer), a Europa inteira e talvez o mundo estariam sob um único sistema, em que o ódio, a intolerância e o desprezo dominariam incontestes.
A doutrina da qual nasceram os campos é muito simples e por isso muito perigosa: todo estrangeiro é um inimigo e todo o inimigo deve ser suprimido. Qualquer um que seja visto como diferente, por língua, religião, costumes e idéias, é estrangeiro. Os primeiros ‘estrangeiros”, inimigos por definição do povo alemão, se encontravam na própria pátria. Já em 1933, meses depois de o marechal Hindenburg encarregar Adolf Hitler de compor o novo governo, havia na Alemanha cerca de 50 campos de concentração. Em 1939, o número de campos superava a centena. Avalia-se em 300 mil o número das vítimas nesse período, a maioria comunistas e social-democratas alemães, além de muitos judeus. Entendidos e, acima de tudo, temidos como instrumentos de terror, os campos de concentração ainda não haviam se tornado centros de massacre organizado.
O início da Segunda Guerra Mundial assinala uma guinada na história dos campos. Com a ocupação da Polônia, a Alemanha se “apodera” (são as palavras de Eichmann), das “origens biológicas do judaísmo”: 2,5 milhões de judeus, além de um número indeterminado de civis, resistentes e militares capturados por “ações especiais”. É um exército ilimitado de escravos e de vítimas predestinadas; a finalidade dos campos de concentração se desdobra. Eles não são mais instrumentos de repressão e tornam-se, ao mesmo tempo, sinistras máquinas de extermínio organizado e centros de trabalhos forçados, dos quais espera-se obter ajuda para o esforço bélico do país. Cada campo primogênito se multiplica: constituem-se novos “campos externos” (Aussenlager) pequenos e grandes, muitos dos quais, por sua vez, se tornaram campos de propagação, até cobrir com uma rede monstruosa o território metropolitano de todos os países que foram sendo ocupados e dominados.
Nasce, assim, no coração da Europa civilizada e em pleno Século XX, o mais brutal sistema escravocrata de toda história da humanidade. Da Noruega e da Ucrânia, da Grécia e da Holanda, da Itália e da Hungria, partem diariamente dezenas de trens abarrotados de “material humano”, homens, mulheres e crianças inocentes e indefesos, fechados por dias e semanas em vagões de carga, sem água e sem comida.
São judeus, homens de todos os credos políticos e religiosos, capturados aleatoriamente durante as batidas. Os trens convergem para os campos que estão espalhados pela Alemanha e pelos vários países ocupados, mas somente um quarto ou um quinto dos que chegam atravessam as cercas de arame farpado e são levados ao trabalho. Os demais, todas as crianças, idosos, doentes, incapacitados e a cota que excede a demanda da indústria alemã, são mortos com a mesma indiferença e com os mesmos métodos com que se eliminam insetos nocivos. A condição dos deportados que passam na seleção de entrada e se tornam prisioneiros (Häftlinge) é muito pior que a dos animais de carga.
O trabalho é extenuante. Trabalha-se no frio, debaixo de chuva e de neve, no gelo e no barro, à base de socos, pontapés e chicotadas. Não há dia de descanso. Não há a esperança de uma trégua. Quem adoece vai para a enfermaria, mas ela é a antecâmara da morte, e todos sabem disso. Um provérbio do campo de concentração diz que “um prisioneiro honesto não vive mais de três meses”.
Mesmo a fraternidade e a solidariedade, última força e esperança dos oprimidos, desaparecem nos campos de concentração. É uma luta de todos contra todos. O primeiro inimigo é o seu vizinho, que cobiça seu pão e seus sapatos, cuja mera presença lhe rouba um palmo de catre. É um estrangeiro que compartilha seus sofrimentos, mas está distante. O que você lê nos olhos dele não é amor, e sim inveja, se sofre mais, ou medo, se sofre menos que você. A lei do campo o transformou num lobo. E você precisa lutar para continuar homem.
Para esse novo horror foi preciso cunhar um novo nome: genocídio, que significa o extermínio em massa de populações inteiras. Mas não se chega facilmente a esse resultado… Para resolver o problema, a administração das SS, um verdadeiro Estado dentro do Estado, e a indústria alemã, tomam providências em conjunto.
Por volta do final de 1942, os técnicos já sabem qual é o melhor método de matar milhões de seres humanos indefesos, de maneira rápida, econômica e silenciosa. Utilizarão ácido cianídrico, numa forma já usada desde longa data para livrar os porões dos navios de ratos. Novas instalações serão construídas a toda pressa, mas com discrição, uma indústria jamais vista até então: a fábrica da morte. Os equipamentos e suas sinistras funções são exorcizados com vagos eufemismos no jargão oficial. Fala-se em “instalações especiais”, “tratamento particular”, “migração para os territórios orientais”.
Auschwitz é o campo piloto, onde as experiências feitas em outros lugares são reunidas, comparadas e aprimoradas. Em 1943, do campo central de Auschwitz dependem pelo menos 20 “campos externos”, mas um desses, Birkenau, está destinado a ficar famoso. Possui câmaras blindadas subterrâneas, onde podem ser amontoadas 3 mil pessoas. São as câmaras de gás, onde a morte por veneno sobrevém em poucos minutos. Mas como não é fácil dar fim aos cadáveres, em Birkenau há também a conclusão: uma colossal instalação de combustão, os fornos crematórios que depois seriam construídos em outros campos.
Nos meses de abril e maio de 1944 foram mortos em Auschwitz 60 mil seres humanos por dia! Foram mais de 5 milhões de mortos em 5 anos!
Quando, nos meses mais tristes de 1944. a abjeção moral e material em que os deportados eram mantidos dava a qualquer esperança de salvação um ar de insanidade, quanto a presença contínua da morte - na materialidade dos cadáveres que, a cada noite, se somavam ao lado de beliches de pinho, tão parecidos com caixões – já eliminara qualquer familiaridade com a vida, substituindo-a por uma estranha e resignada intimidade com a morte amiga e já certa, erguia-se uma advertência solene e imperiosa: lutar para sobreviver, pois era indispensável que pelo menos um ainda estivesse vivo no infalível dia da libertação, para gastar suas últimas forças numa missão que justificasse o sacrifício dos demais: levar ao mundo a consciência do terror de uma ideologia que ignorava a igualdade e a paridade de direitos entre os homens, de um método que desprezava as exigências primordiais da civilização cristã, aniquilando a dignidade do Homem e ameaçando estender a escravidão do campo de extermínio por todo o mundo.
PRIMO LEVI -1973
24 de fevereiro de 2016
Carlos I. S. Azambuja é Historiador.
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