Para muita gente, brama aos céus que aquilo que diz Brahma aos seus não convence mais, a não ser aos fieis mais crédulos. Tenho minhas dúvidas. É inesgotável a capacidade de persuasão de Lula, mesmo reduzido a pregar apenas aos convertidos, um gênio em utilizar a linguagem que for mais eficiente para lubrificar qualquer versão. Já combateu o Plano Real afirmando que ele deixaria o país à beira do caos porque “estabilidade monetária causa instabilidade social”. E quando se discutia a conveniência de privatizar alguns setores da economia, foi garimpar um termo delicioso da linguagem popular, reintroduzindo-o no léxico contemporâneo, ao afirmar que sentia um cheiro de maracutaia no ar.
É sempre admirável o que pode esta língua, já lembrou o poeta. Há poucos dias, vendo no youtube o documentário “Capibaribes: da nascente à foz", de Canario Caliari e outros, ouvi o diagnóstico sucinto de um sertanejo, ao explicar por que a população depende do rio mas apesar disso o polui até matá-lo: “Sem educação, a gente tá lascado”. Na mosca.
Na sensação de que estamos todos nos lascando, talvez se constate que, se a riqueza da linguagem falada brasileira nos sintetiza, por outro lado as simplificações rasteiras dos slogans e frases feitas já não dão conta da realidade, bem mais complexa do que os clichês que tentam apresentá-la como reflexo da crise internacional, culpa da zelite, da mídia golpista ou complô da direita. A oposição, por sua vez, ao apelar para uma retórica de bazófia e partir para a bravata de votar contra a nação para desconstruir o governo, revela sua irresponsabilidade. E se tudo faz água, é hora de esquecer as metáforas hídricas a falar de marolinha e volume morto, bem como os delírios megalômanos de autossuficiência enquanto um dinheirão sumia pelo ralo em direção a contas no exterior ou campanhas eleitorais.
O jargão de analistas políticos e econômicos pode ajudar a explicar quando fala em descontrole fiscal, falta de planejamento, ineficiência gerencial e malversação de fundos. Sublinha que a alocação de recursos através de redes de relações pessoais virou uma prática tão disseminada que se passou a estabelecer políticas públicas nelas baseadas. Lembra que numa conjuntura internacional desfavorável, somada à baixa produtividade nacional, as contas públicas já vinham apresentando índices negativos preocupantes há bastante tempo e que isso foi escamoteado por manobras de ocultamento e engano, disfarçadas sob termos como pedaladas ou contabilidade criativa. Manobras tão graves que estão a exigir explicação convincente ao Tribunal de Contas da União, com prazo correndo, a anunciar nova fase da crise para as próximas semanas.
Foi essa realidade que o discurso populista, as palavras oficiais e o marketing eleitoral tentaram negar.
Que mentira, que lorota boa... — cantaria a marchinha de carnaval. E entre lorotas e petas, truques e mutretas, fraudes e falcatruas, trapaças e tramoias, o eleitor se sente enganado, traído. Embrulhado e esbulhado. Em uma palavra, engambelado. Daí a perda de confiança nos políticos, e a falta de credibilidade do governo. Mentiram, nos passaram a perna, caímos na conversa de espertalhões — essa é a sensação que ajuda a explicar a raiva e os altos índices de rejeição. Nem precisa chamar de estelionato eleitoral. E muitos eleitores se sentem especialmente desrespeitados ao constatar que a sagrada instituição do voto democrático se contamina e se suja no momento em que o crime tenta fazer do Judiciário seu cúmplice, engambelando-o também, e passa a usar o Tribunal Superior Eleitoral como lavanderia para dar fachada de legalidade ao dinheiro desviado da Petrobras, por meio de um jogo que envolve superfaturamento, sonegação fiscal e evasão de divisas — além de fortes suspeitas de extorsão, formação de cartel e outros ilícitos.
A essa altura, ainda surgem detalhes que falam por si, nos depoimentos de colaboração premiada. Não apenas Lula era chamado de Brahma, sintoma debochado de sua desmoralização. Mas o ritual da entrega do dinheiro vivo também remetia a uma chopada entre amigos: a senha era tulipa, e a contrassenha, caneco. Facílimo de entender. E ainda rimando com um neologismo surgido no bojo de tudo para se referir à grana da propina, a ser incorporado às próximas edições dos dicionários: pixuleco, talvez primo da merreca. Quase um diminutivo afetivo de âmbito familiar, a conotar a cervejinha e consagrar a intimidade carinhosa com o faz-me-rir.
Enfim, a língua não perdoa. Revela, sempre. Como entreouvido outro dia num botequim carioca, perto de um ponto final de ônibus. Comentando a viagem da presidente, um motorista achou que ela queria se escafeder, dar no pé, por causa dos últimos depoimentos, que estariam chegando perto demais. Outro achou que não adianta nada, a casa está caindo mesmo. E concluiu:
— Já degringolou tudo. Está desmilinguindo.
Dois verbos expressivos. Será mesmo? Qual define melhor? Você decide.
11 de julho de 2015
Ana Maria Machado
É sempre admirável o que pode esta língua, já lembrou o poeta. Há poucos dias, vendo no youtube o documentário “Capibaribes: da nascente à foz", de Canario Caliari e outros, ouvi o diagnóstico sucinto de um sertanejo, ao explicar por que a população depende do rio mas apesar disso o polui até matá-lo: “Sem educação, a gente tá lascado”. Na mosca.
Na sensação de que estamos todos nos lascando, talvez se constate que, se a riqueza da linguagem falada brasileira nos sintetiza, por outro lado as simplificações rasteiras dos slogans e frases feitas já não dão conta da realidade, bem mais complexa do que os clichês que tentam apresentá-la como reflexo da crise internacional, culpa da zelite, da mídia golpista ou complô da direita. A oposição, por sua vez, ao apelar para uma retórica de bazófia e partir para a bravata de votar contra a nação para desconstruir o governo, revela sua irresponsabilidade. E se tudo faz água, é hora de esquecer as metáforas hídricas a falar de marolinha e volume morto, bem como os delírios megalômanos de autossuficiência enquanto um dinheirão sumia pelo ralo em direção a contas no exterior ou campanhas eleitorais.
O jargão de analistas políticos e econômicos pode ajudar a explicar quando fala em descontrole fiscal, falta de planejamento, ineficiência gerencial e malversação de fundos. Sublinha que a alocação de recursos através de redes de relações pessoais virou uma prática tão disseminada que se passou a estabelecer políticas públicas nelas baseadas. Lembra que numa conjuntura internacional desfavorável, somada à baixa produtividade nacional, as contas públicas já vinham apresentando índices negativos preocupantes há bastante tempo e que isso foi escamoteado por manobras de ocultamento e engano, disfarçadas sob termos como pedaladas ou contabilidade criativa. Manobras tão graves que estão a exigir explicação convincente ao Tribunal de Contas da União, com prazo correndo, a anunciar nova fase da crise para as próximas semanas.
Foi essa realidade que o discurso populista, as palavras oficiais e o marketing eleitoral tentaram negar.
Que mentira, que lorota boa... — cantaria a marchinha de carnaval. E entre lorotas e petas, truques e mutretas, fraudes e falcatruas, trapaças e tramoias, o eleitor se sente enganado, traído. Embrulhado e esbulhado. Em uma palavra, engambelado. Daí a perda de confiança nos políticos, e a falta de credibilidade do governo. Mentiram, nos passaram a perna, caímos na conversa de espertalhões — essa é a sensação que ajuda a explicar a raiva e os altos índices de rejeição. Nem precisa chamar de estelionato eleitoral. E muitos eleitores se sentem especialmente desrespeitados ao constatar que a sagrada instituição do voto democrático se contamina e se suja no momento em que o crime tenta fazer do Judiciário seu cúmplice, engambelando-o também, e passa a usar o Tribunal Superior Eleitoral como lavanderia para dar fachada de legalidade ao dinheiro desviado da Petrobras, por meio de um jogo que envolve superfaturamento, sonegação fiscal e evasão de divisas — além de fortes suspeitas de extorsão, formação de cartel e outros ilícitos.
A essa altura, ainda surgem detalhes que falam por si, nos depoimentos de colaboração premiada. Não apenas Lula era chamado de Brahma, sintoma debochado de sua desmoralização. Mas o ritual da entrega do dinheiro vivo também remetia a uma chopada entre amigos: a senha era tulipa, e a contrassenha, caneco. Facílimo de entender. E ainda rimando com um neologismo surgido no bojo de tudo para se referir à grana da propina, a ser incorporado às próximas edições dos dicionários: pixuleco, talvez primo da merreca. Quase um diminutivo afetivo de âmbito familiar, a conotar a cervejinha e consagrar a intimidade carinhosa com o faz-me-rir.
Enfim, a língua não perdoa. Revela, sempre. Como entreouvido outro dia num botequim carioca, perto de um ponto final de ônibus. Comentando a viagem da presidente, um motorista achou que ela queria se escafeder, dar no pé, por causa dos últimos depoimentos, que estariam chegando perto demais. Outro achou que não adianta nada, a casa está caindo mesmo. E concluiu:
— Já degringolou tudo. Está desmilinguindo.
Dois verbos expressivos. Será mesmo? Qual define melhor? Você decide.
11 de julho de 2015
Ana Maria Machado
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