"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

sábado, 11 de julho de 2015

DEGRINGOLA OU DESMILINGUE?

Para muita gente, brama aos céus que aquilo que diz Brahma aos seus não convence mais, a não ser aos fieis mais crédulos. Tenho minhas dúvidas. É inesgotável a capacidade de persuasão de Lula, mesmo reduzido a pregar apenas aos convertidos, um gênio em utilizar a linguagem que for mais eficiente para lubrificar qualquer versão. Já combateu o Plano Real afirmando que ele deixaria o país à beira do caos porque “estabilidade monetária causa instabilidade social”. E quando se discutia a conveniência de privatizar alguns setores da economia, foi garimpar um termo delicioso da linguagem popular, reintroduzindo-o no léxico contemporâneo, ao afirmar que sentia um cheiro de maracutaia no ar.

É sempre admirável o que pode esta língua, já lembrou o poeta. Há poucos dias, vendo no youtube o documentário “Capibaribes: da nascente à foz", de Canario Caliari e outros, ouvi o diagnóstico sucinto de um sertanejo, ao explicar por que a população depende do rio mas apesar disso o polui até matá-lo: “Sem educação, a gente tá lascado”. Na mosca.

Na sensação de que estamos todos nos lascando, talvez se constate que, se a riqueza da linguagem falada brasileira nos sintetiza, por outro lado as simplificações rasteiras dos slogans e frases feitas já não dão conta da realidade, bem mais complexa do que os clichês que tentam apresentá-la como reflexo da crise internacional, culpa da zelite, da mídia golpista ou complô da direita. A oposição, por sua vez, ao apelar para uma retórica de bazófia e partir para a bravata de votar contra a nação para desconstruir o governo, revela sua irresponsabilidade. E se tudo faz água, é hora de esquecer as metáforas hídricas a falar de marolinha e volume morto, bem como os delírios megalômanos de autossuficiência enquanto um dinheirão sumia pelo ralo em direção a contas no exterior ou campanhas eleitorais.

O jargão de analistas políticos e econômicos pode ajudar a explicar quando fala em descontrole fiscal, falta de planejamento, ineficiência gerencial e malversação de fundos. Sublinha que a alocação de recursos através de redes de relações pessoais virou uma prática tão disseminada que se passou a estabelecer políticas públicas nelas baseadas. Lembra que numa conjuntura internacional desfavorável, somada à baixa produtividade nacional, as contas públicas já vinham apresentando índices negativos preocupantes há bastante tempo e que isso foi escamoteado por manobras de ocultamento e engano, disfarçadas sob termos como pedaladas ou contabilidade criativa. Manobras tão graves que estão a exigir explicação convincente ao Tribunal de Contas da União, com prazo correndo, a anunciar nova fase da crise para as próximas semanas.

Foi essa realidade que o discurso populista, as palavras oficiais e o marketing eleitoral tentaram negar.

Que mentira, que lorota boa... — cantaria a marchinha de carnaval. E entre lorotas e petas, truques e mutretas, fraudes e falcatruas, trapaças e tramoias, o eleitor se sente enganado, traído. Embrulhado e esbulhado. Em uma palavra, engambelado. Daí a perda de confiança nos políticos, e a falta de credibilidade do governo. Mentiram, nos passaram a perna, caímos na conversa de espertalhões — essa é a sensação que ajuda a explicar a raiva e os altos índices de rejeição. Nem precisa chamar de estelionato eleitoral. E muitos eleitores se sentem especialmente desrespeitados ao constatar que a sagrada instituição do voto democrático se contamina e se suja no momento em que o crime tenta fazer do Judiciário seu cúmplice, engambelando-o também, e passa a usar o Tribunal Superior Eleitoral como lavanderia para dar fachada de legalidade ao dinheiro desviado da Petrobras, por meio de um jogo que envolve superfaturamento, sonegação fiscal e evasão de divisas — além de fortes suspeitas de extorsão, formação de cartel e outros ilícitos.

A essa altura, ainda surgem detalhes que falam por si, nos depoimentos de colaboração premiada. Não apenas Lula era chamado de Brahma, sintoma debochado de sua desmoralização. Mas o ritual da entrega do dinheiro vivo também remetia a uma chopada entre amigos: a senha era tulipa, e a contrassenha, caneco. Facílimo de entender. E ainda rimando com um neologismo surgido no bojo de tudo para se referir à grana da propina, a ser incorporado às próximas edições dos dicionários: pixuleco, talvez primo da merreca. Quase um diminutivo afetivo de âmbito familiar, a conotar a cervejinha e consagrar a intimidade carinhosa com o faz-me-rir.

Enfim, a língua não perdoa. Revela, sempre. Como entreouvido outro dia num botequim carioca, perto de um ponto final de ônibus. Comentando a viagem da presidente, um motorista achou que ela queria se escafeder, dar no pé, por causa dos últimos depoimentos, que estariam chegando perto demais. Outro achou que não adianta nada, a casa está caindo mesmo. E concluiu:

— Já degringolou tudo. Está desmilinguindo.

Dois verbos expressivos. Será mesmo? Qual define melhor? Você decide.

11 de julho de 2015
Ana Maria Machado

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