Escolha sua morte preferida:
(1) súbita, (2) longa, com demência, (3) longa, com idas e vindas no tratamento de um órgão doente, (4) câncer.
O médico inglês Richard Smith cravou câncer, e causou comoção, não só entre seus leitores, na edição digital do British Medical Journal, como mundo afora.
As quatro opções segundo Smith, que já dirigiu a revista em que hoje escreve na versão digital, esgotam, “essencialmente”, os modos de morrer. (“Suicídio, assistido ou de outra forma, é uma quinta, mas a deixo de lado por ora”, acrescentou em seu artigo.)
Dos quatro tipos de morte, a pior, para ele – e para todo mundo, presume-se –, é a precedida pela demência.
A da luta contra a degeneração de um órgão acaba contaminando outros órgãos, e compreende desesperadas tentativas de cura, muitos médicos, muitos hospitais, e arrastada agonia.
Já morrendo de câncer, com a ajuda de convenientes doses de “amor, morfina e uísque”, argumenta Smith, “você pode dizer adeus, refletir sobre sua vida, deixar últimas mensagens, talvez visitar lugares especiais pela última vez, ouvir as músicas favoritas, ler os poemas mais queridos e preparar, de acordo com suas crenças, o encontro com seu fabricante (maker, em inglês; ele é ateu) ou o gozo do eterno esquecimento”.
Richard Smith contraria o senso comum dos nossos tempos, segundo o qual é preferível a morte súbita, e recupera o charme, se é que se pode dizer assim, da morte à antiga, com o moribundo rodeado de entes queridos.
A morte súbita é identificada basicamente com o ataque cardíaco, e foi cantada por João Cabral de Melo Neto num poema inspirado pela morte do também poeta W.H. Auden, ocorrida enquanto dormia.
Auden, segundo João Cabral, teria sido premiado pela morte “com a guilhotina, fuzil limpo, do ataque cardíaco”.
Smith reconhece que a maioria das pessoas prefere a morte súbita. Ele costuma dizer-lhes: “Pode ser bom para você, mas pode ser muito duro para as pessoas à sua volta. Se você quer morrer de repente, viva cada dia como se fosse o último, assegurando-se de que os relacionamentos mais importantes estão em boa forma e os negócios estão em ordem”.
A morte com charme à antiga é a dos romances do século XIX, época em que se morria em casa, não no hospital, e dos filmes ambientados no mesmo século.
Se o moribundo for um aristocrata, ou grande burguês, morre entre coloridas almofadas, finos lençóis e, nos casos mais afortunados, cama com dossel.
Modelo muito mais antigo é a morte de Sócrates, rodeado de discípulos e gastando filosofias. O problema é que o fim de Sócrates foi por condenação à morte categoria não contemplada na tipologia de Smith. Ou seja: morreu no gozo da saúde.
Já no câncer morre-se depauperado e com dores, às vezes horrendas – motivo pelo qual leitores do médico inglês reagiram com indignação, relatando desesperados casos de familiares. Ainda mais indignados ficaram por Smith sugerir aos governos que gastem menos com pesquisas do câncer e mais com as da demência e das doenças mentais.
Em reforço à sua preferência, Smith cita o cineasta Luis Buñuel, que confessou ter de início flertado com a ideia da morte súbita, para depois mudar de opinião.
“Não tenho medo da morte“, escreveu. “Tenho medo de morrer sozinho num quarto de hotel, com minhas malas abertas e um roteiro de filme no criado-mudo Eu quero saber que dedos fecharão meus olhos.” (A propósito: a morte de Auden, cantada por João Cabral, foi num quarto de hotel, na Áustria.)
Buñuel, que morreu de câncer, em 1983, nos conduz ao centro da disjuntiva morte súbita versus morte anunciada.
A preferência pela morte súbita não é apenas pela ausência de dor; é também pelo desejo de poupar-se de encarar a fera olho no olho. Se a morte escapa da consciência, acredita-se, como que se escapa de morrer.
Também se escapa da terrível questão do comportamento que se terá na hora fatal.
Estarei pronto? Saberei encará-la com tranquilidade e serenidade?
Propor a escolha do tipo preferido de morte é um exercício fútil, claro.
Escreve João Cabral, no mencionado poema:
“Se morre da morte que ela quer. / É ela que escolhe seu estilo, / sem cogitar se a coisa que mata / rima com sua morte ou faz sentido”.
O artigo de Richard Smith tem, no entanto, o mérito de fazer pensar na morte. Nos dias que correm reina a convicção de que o melhor é não falar nela. Quanto menos se falar, mais sossegada ela ficará em seu canto.
Finge-se que ela não existe, na vã esperança de que ela resolva não existir mesmo.
09 de março de 2015
Roberto Pompeu de Toledo, Veja
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