Crescem casos de violência coletiva, bruta e irracional, atualização urbana da Lei de Talião. O estado das coisas mostra que é hora de pensar no assunto
E eis que o linchamento se tornou o assunto do noticiário. Algumas vítimas ganharam o alto das páginas: Fabiane Maria de Jesus (Guarujá, SP); Mauro Rodrigues Muniz (Araraquara, SP); Hugo Neves Ferreira (Campo Grande, MS)... Houve casos em Goiânia (GO), Rio de Janeiro (RJ), Itajaí (SC), Teresina (PI), Natal (RN). O episódio do Guarujá, em particular, trouxe a explosiva mistura de boato, uso das redes sociais e acusação de magia negra. Não foi um ponto fora da curva. A lista de mortos em rituais cheios de som e fúria não para de crescer, colocando o país diante de mais de um de seus muitos problemas jogados para debaixo do tapete. Sim – o verbo “linchar” é conjugado por aqui faz mais tempo do que se pode imaginar. Não é tudo: algo sobre o Brasil ronda esse fato.
Para a turma que faz a ronda policial nos veículos de imprensa, o linchamento beira a banalidade. As ameaças de linchamentos e os ataques de fato aparecem com insistência nas apurações, mas são subnotificados. O motivo é difícil de explicar, mas se pode dizer que pesa sobre o linchamento um tabu semelhante ao que ronda o suicídio. Noticiar tende a ser pior do que não noticiar. Soa como estímulo, quando não um repasse para o leitor de um problema que escapa a ordem pública.
Nas Ciências Humanas, o assunto desperta pouco interesse. Os pesquisadores não se identificam com o assunto, talvez pelo caráter apolítico que carregam, talvez por escaparem ao que se entende por movimento social. Honrosa exceção, o sociólogo José de Souza Martins, professor de Sociologia do Cotidiano, na USP, desponta como a maior autoridade brasileira na questão. Merece destaque também a controvertida pesquisa A cabeça do brasileiro, do sociólogo carioca Alberto Carlos Almeida, publicada em 2007. Para surpresa geral, Almeida reservou um capítulo de sua obra para o linchamento. Na média, 40% dos entrevistados se mostraram favoráveis a alguma prática de justiça informal. Outra: ao contrário do que se esperava, levantamento mostrou haver pouca relação entre descrença na polícia ou na Justiça e apoio aos linchamentos.
Os dados são estimulantes o bastante para sugerir que mais estudos sobre linchamentos devam ser feitos – de modo a garimpar seus significados, apurar os dados e, como sugere o sociólogo José de Souza Martins, fugir da justificativa fácil de que o linchamento é proporcional à insatisfação de um grupo social com o “estado das coisas”. Os justiçamentos, e suas causas, precisam ser colocados em comum, de modo a entender que, na hora em que acontecem, já se deram, de mil e uma maneiras menos drásticas e mais sutis. Embora pouco explorado, o linchamento nas redes sociais figura entre as maiores evidências de que há uma sociedade capaz de punir, machucar, difamar, agir sem provas. E não causaria espanto se algum estudioso encontrasse uma linha direta entre essas manifestações. Se os meios são extensões do homem, como dizia Marshall MacLuhan, a internet tem mais a ver com o linchamento do que poderia prever a vã filosofia.
É questão cheia de labirintos, com especificidades regionais e grande desafio, como bem mostram os estudos de Martins. O sociólogo documentou mais de 2 mil casos, sendo 500 de forma sistemática. Ele estima que 500 mil brasileiros, nos últimos 50 anos, participaram de tentativas ou de linchamentos propriamente ditos. Em paralelo, oferece comparações entre os linchamentos verificados nos Estados Unidos – onde são mais raciais e rurais – e no Brasil, de modo a reforçar o que há de próprio em nosso território. O linchamento entre nós nasce da desagregação, das condições precárias da vida urbana e tem a ver com medo das mudanças. Habita o “lado mais oculto do nosso imaginário”, como diz o pesquisador, mostrando-se de forma confusa – é a afirmação de uma ordem por meio da desordem, da moralidade pela imoralidade, da regra pela autoridade bruta. É capaz de ser protagonizada por anônimos violentos, mas também por pacatos cidadãos, que em nada se aproximam do grito “lincha, tarado”, citando aqui o famoso livro de Dalton Trevisan.
Nos últimos tempos, o fenômeno corre em paralelo a outros, a exemplo do aumento de saques e quebras-quebras. Ganhou um aterrorizante caráter popular, mas com contornos de irracionalidade em escala industrial. Não pede que o crime seja punido, ou que haja mudanças. Antes, apregoa a vingança, a crueldade, como se com essas armas pudesse reconstruir moralmente a nação. Saídas? Para o professor Rodrigo Ghiringhelli, da PUC-RS, é preciso reduzir os virais que geram tanta confusão nas redes sociais e melhora nos sistemas de checagem policial. Outra estratégia seria a pronta administração de conflitos, via juizados especiais, promovendo a sociedade da paz.
E eis que o linchamento se tornou o assunto do noticiário. Algumas vítimas ganharam o alto das páginas: Fabiane Maria de Jesus (Guarujá, SP); Mauro Rodrigues Muniz (Araraquara, SP); Hugo Neves Ferreira (Campo Grande, MS)... Houve casos em Goiânia (GO), Rio de Janeiro (RJ), Itajaí (SC), Teresina (PI), Natal (RN). O episódio do Guarujá, em particular, trouxe a explosiva mistura de boato, uso das redes sociais e acusação de magia negra. Não foi um ponto fora da curva. A lista de mortos em rituais cheios de som e fúria não para de crescer, colocando o país diante de mais de um de seus muitos problemas jogados para debaixo do tapete. Sim – o verbo “linchar” é conjugado por aqui faz mais tempo do que se pode imaginar. Não é tudo: algo sobre o Brasil ronda esse fato.
Para a turma que faz a ronda policial nos veículos de imprensa, o linchamento beira a banalidade. As ameaças de linchamentos e os ataques de fato aparecem com insistência nas apurações, mas são subnotificados. O motivo é difícil de explicar, mas se pode dizer que pesa sobre o linchamento um tabu semelhante ao que ronda o suicídio. Noticiar tende a ser pior do que não noticiar. Soa como estímulo, quando não um repasse para o leitor de um problema que escapa a ordem pública.
Nas Ciências Humanas, o assunto desperta pouco interesse. Os pesquisadores não se identificam com o assunto, talvez pelo caráter apolítico que carregam, talvez por escaparem ao que se entende por movimento social. Honrosa exceção, o sociólogo José de Souza Martins, professor de Sociologia do Cotidiano, na USP, desponta como a maior autoridade brasileira na questão. Merece destaque também a controvertida pesquisa A cabeça do brasileiro, do sociólogo carioca Alberto Carlos Almeida, publicada em 2007. Para surpresa geral, Almeida reservou um capítulo de sua obra para o linchamento. Na média, 40% dos entrevistados se mostraram favoráveis a alguma prática de justiça informal. Outra: ao contrário do que se esperava, levantamento mostrou haver pouca relação entre descrença na polícia ou na Justiça e apoio aos linchamentos.
Os dados são estimulantes o bastante para sugerir que mais estudos sobre linchamentos devam ser feitos – de modo a garimpar seus significados, apurar os dados e, como sugere o sociólogo José de Souza Martins, fugir da justificativa fácil de que o linchamento é proporcional à insatisfação de um grupo social com o “estado das coisas”. Os justiçamentos, e suas causas, precisam ser colocados em comum, de modo a entender que, na hora em que acontecem, já se deram, de mil e uma maneiras menos drásticas e mais sutis. Embora pouco explorado, o linchamento nas redes sociais figura entre as maiores evidências de que há uma sociedade capaz de punir, machucar, difamar, agir sem provas. E não causaria espanto se algum estudioso encontrasse uma linha direta entre essas manifestações. Se os meios são extensões do homem, como dizia Marshall MacLuhan, a internet tem mais a ver com o linchamento do que poderia prever a vã filosofia.
É questão cheia de labirintos, com especificidades regionais e grande desafio, como bem mostram os estudos de Martins. O sociólogo documentou mais de 2 mil casos, sendo 500 de forma sistemática. Ele estima que 500 mil brasileiros, nos últimos 50 anos, participaram de tentativas ou de linchamentos propriamente ditos. Em paralelo, oferece comparações entre os linchamentos verificados nos Estados Unidos – onde são mais raciais e rurais – e no Brasil, de modo a reforçar o que há de próprio em nosso território. O linchamento entre nós nasce da desagregação, das condições precárias da vida urbana e tem a ver com medo das mudanças. Habita o “lado mais oculto do nosso imaginário”, como diz o pesquisador, mostrando-se de forma confusa – é a afirmação de uma ordem por meio da desordem, da moralidade pela imoralidade, da regra pela autoridade bruta. É capaz de ser protagonizada por anônimos violentos, mas também por pacatos cidadãos, que em nada se aproximam do grito “lincha, tarado”, citando aqui o famoso livro de Dalton Trevisan.
Nos últimos tempos, o fenômeno corre em paralelo a outros, a exemplo do aumento de saques e quebras-quebras. Ganhou um aterrorizante caráter popular, mas com contornos de irracionalidade em escala industrial. Não pede que o crime seja punido, ou que haja mudanças. Antes, apregoa a vingança, a crueldade, como se com essas armas pudesse reconstruir moralmente a nação. Saídas? Para o professor Rodrigo Ghiringhelli, da PUC-RS, é preciso reduzir os virais que geram tanta confusão nas redes sociais e melhora nos sistemas de checagem policial. Outra estratégia seria a pronta administração de conflitos, via juizados especiais, promovendo a sociedade da paz.
26 de maio de 2014
Editorial Gazeta do Povo, PR
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