Cuba é um teste para os intelectuais de esquerda. No Brasil, com exceções, eles foram reprovados
"Não queríamos nos apropriar do nome de Cuba para usá-lo como nossa marca e, no seu lugar, escolhemos o mais universal dos códigos: os números." Yoani Sánchez cumpriu a promessa que anunciou em sua visita ao Brasil e lançou, dias atrás, o jornal eletrônico 14ymedio. O nome inspira-se em referências temporais (2014) e espaciais (o andar do apartamento de Yoani, onde funciona a Redação), bem como na ideia de comunicação ("medio": veículo), e inclui um atestado de origem: o Y, referência a seu blog, "Generación Y". Num gesto de respeito à diversidade política, "Cuba" ficou de fora: 14ymedio está dizendo que Cuba é a pátria de todos os cubanos, não uma propriedade ideológica. É por isso que, horas depois da inauguração, o site do jornal foi bloqueado pelos servidores da Cuba castrista.
"Queremos produzir um jornal que não pretende ser anti-Castro, comprometido com a verdade e a realidade cotidiana dos cubanos", explicou o editor Reinaldo Escobar, demitido da publicação oficial "Juventud Rebelde" em 1988 e proibido de exercer sua profissão. 14ymedio evitará usar "palavras carregadas" como "ditadura" e "regime", preferindo expressões como "o chefe de Estado" ou "o presidente general Raúl Castro", completou Escobar. Não são iniciativas destinadas a obter uma (impossível) tolerância do regime, mas a demarcar o terreno: o veículo não é um jornal partidário, militante, mas apenas um jornal. É isso que o torna insuportável aos olhos da ditadura castrista.
"Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados." A célebre definição de Millôr Fernandes não representa um elogio da imprensa militante, mas uma constatação básica, cuja relevância aumenta na razão direta do crescimento dos gastos publicitários governamentais: o jornalismo independente sempre dirá aquilo que não interessa ao poder de turno. O caminho da moderação escolhido por 14ymedio não o torna menos oposicionista, especialmente num país onde discordar do governo é oficialmente classificado como trair a pátria. Em Cuba, os internautas que tentam acessar o novo jornal são redirecionados a uma página consagrada à difamação de Yoani Sánchez. A espúria identificação entre o governo e a pátria é um pilar essencial do regime castrista.
"Deem-me a liberdade de conhecer, de pronunciar e de debater livremente, de acordo com minha consciência, acima de todas as liberdades", escreveu John Milton em 1644 no "Areopagitica", que solicitava ao Parlamento inglês a anulação da exigência de licença oficial para imprimir. O panfleto de Milton está na origem da liberdade de imprensa e da aventura histórica do jornalismo. Seu argumento é que, ao longo do tempo, a obra coletiva de incontáveis autores individuais produziria um saber valioso, muito superior ao saber circunstancial dos censores a serviço do governo. Esse tema, tão antigo, conserva evidente atualidade na nossa era digital. O lançamento de 14ymedio reativa a polêmica deflagrada em meio à Guerra Civil Inglesa do século 17: a liberdade do jornal produzido no 14º andar de um edifício do centro de Havana não é um mero "problema cubano".
"Estou preso e sou feliz, pois me sinto mais livre que muitos que estão nas ruas ou na União de Escritores e Artistas de Cuba", respondeu Ángel Santiesteban, em entrevista publicada na edição inaugural de 14ymedio. Santiesteban já foi agraciado com o Prêmio Casa das Américas, principal distinção literária concedida pelo regime cubano. Há 13 meses cumpre pena por delito de opinião. Cuba é um teste político e moral para os intelectuais de esquerda. No Brasil, até agora e com honrosas exceções, eles foram reprovados. Não se viu um manifesto pela libertação de Santiesteban. Duvido que solicitem a liberdade para o 14ymedio. Eles acham que a liberdade deve ser um privilégio de usufruto restrito aos que concordam com eles.
26 de maio de 2014
Demétrio Magnoli, Folha de SP
"Não queríamos nos apropriar do nome de Cuba para usá-lo como nossa marca e, no seu lugar, escolhemos o mais universal dos códigos: os números." Yoani Sánchez cumpriu a promessa que anunciou em sua visita ao Brasil e lançou, dias atrás, o jornal eletrônico 14ymedio. O nome inspira-se em referências temporais (2014) e espaciais (o andar do apartamento de Yoani, onde funciona a Redação), bem como na ideia de comunicação ("medio": veículo), e inclui um atestado de origem: o Y, referência a seu blog, "Generación Y". Num gesto de respeito à diversidade política, "Cuba" ficou de fora: 14ymedio está dizendo que Cuba é a pátria de todos os cubanos, não uma propriedade ideológica. É por isso que, horas depois da inauguração, o site do jornal foi bloqueado pelos servidores da Cuba castrista.
"Queremos produzir um jornal que não pretende ser anti-Castro, comprometido com a verdade e a realidade cotidiana dos cubanos", explicou o editor Reinaldo Escobar, demitido da publicação oficial "Juventud Rebelde" em 1988 e proibido de exercer sua profissão. 14ymedio evitará usar "palavras carregadas" como "ditadura" e "regime", preferindo expressões como "o chefe de Estado" ou "o presidente general Raúl Castro", completou Escobar. Não são iniciativas destinadas a obter uma (impossível) tolerância do regime, mas a demarcar o terreno: o veículo não é um jornal partidário, militante, mas apenas um jornal. É isso que o torna insuportável aos olhos da ditadura castrista.
"Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados." A célebre definição de Millôr Fernandes não representa um elogio da imprensa militante, mas uma constatação básica, cuja relevância aumenta na razão direta do crescimento dos gastos publicitários governamentais: o jornalismo independente sempre dirá aquilo que não interessa ao poder de turno. O caminho da moderação escolhido por 14ymedio não o torna menos oposicionista, especialmente num país onde discordar do governo é oficialmente classificado como trair a pátria. Em Cuba, os internautas que tentam acessar o novo jornal são redirecionados a uma página consagrada à difamação de Yoani Sánchez. A espúria identificação entre o governo e a pátria é um pilar essencial do regime castrista.
"Deem-me a liberdade de conhecer, de pronunciar e de debater livremente, de acordo com minha consciência, acima de todas as liberdades", escreveu John Milton em 1644 no "Areopagitica", que solicitava ao Parlamento inglês a anulação da exigência de licença oficial para imprimir. O panfleto de Milton está na origem da liberdade de imprensa e da aventura histórica do jornalismo. Seu argumento é que, ao longo do tempo, a obra coletiva de incontáveis autores individuais produziria um saber valioso, muito superior ao saber circunstancial dos censores a serviço do governo. Esse tema, tão antigo, conserva evidente atualidade na nossa era digital. O lançamento de 14ymedio reativa a polêmica deflagrada em meio à Guerra Civil Inglesa do século 17: a liberdade do jornal produzido no 14º andar de um edifício do centro de Havana não é um mero "problema cubano".
"Estou preso e sou feliz, pois me sinto mais livre que muitos que estão nas ruas ou na União de Escritores e Artistas de Cuba", respondeu Ángel Santiesteban, em entrevista publicada na edição inaugural de 14ymedio. Santiesteban já foi agraciado com o Prêmio Casa das Américas, principal distinção literária concedida pelo regime cubano. Há 13 meses cumpre pena por delito de opinião. Cuba é um teste político e moral para os intelectuais de esquerda. No Brasil, até agora e com honrosas exceções, eles foram reprovados. Não se viu um manifesto pela libertação de Santiesteban. Duvido que solicitem a liberdade para o 14ymedio. Eles acham que a liberdade deve ser um privilégio de usufruto restrito aos que concordam com eles.
26 de maio de 2014
Demétrio Magnoli, Folha de SP
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