"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

VIGÍLIA PARA O ANO NOVO

A maioria dos turistas são apenas compradores; eles só tem uma experiência: a de comprar

O edifício principal da biblioteca pública de Nova York está na Quinta Avenida, entre as ruas 40 e 42.

É uma construção imponente, no estilo Beaux-Arts, como a Grand Central Station, e a sala de leitura é majestosa, como o átrio de Grand Central: o Beaux-Arts gosta de espaços enormes, altos e sem colunas de sustentação.

Não é um estilo pelo qual eu tenha uma paixão. Sempre achei um pouco pomposo, como tudo o que foi concebido e feito na época de Napoleão 3º e, logo depois, na Terceira República da França --a começar pela Ópera de Paris, que sempre me pareceu imitar um bolo de noiva.

Enfim, o fato é que os turistas, onipresentes em Nova York nestes dias, sobem a escada externa, tiram uma foto de lembrança com aqueles dois leões de mármore, que aparecem em tantos filmes, e penetram no edifício. Eles param para outra foto no átrio (onde se ergue uma grande árvore de Natal) e continuam pela escada interna; quando chegam ao segundo andar, atravessam a sala dos computadores públicos e encontram o espaço que lhes é reservado na entrada da sala de consulta ao catálogo.

Quanto ao acesso à sala de leitura, ele é protegido: os turistas ficam na porta, olhando, e um cartaz avisa que é bom manter o silêncio.

Estou em Nova York para ler algumas (ao menos) fontes primárias (do século 15, 16 e 17) sobre possessão diabólica --isso porque Carlo Antonini, protagonista de minhas ficções, encontrará um exorcista e um endemoninhado num futuro próximo. Restabeleci minha carta de leitor (que não usava há tempos) e minha autorização de acesso à divisão dos livros raros, a sala 328, que é um lugar fechado (é preciso bater à porta), pouco frequentado (sobretudo durante as férias) e com regras estritas: por exemplo, não se entra com sobretudo, pasta ou caneta (a sala fornece papel e lápis).

Estou lendo o relato do exorcismo de Nicole Obry (publicado pouco tempo depois dos fatos, em 1578), o "Flagellum Daemonum" (o flagelo dos demônios), de Gerônimo Menghe, que é um manual de exorcismo bem conhecido na época (1599), e "A Candle in the Dark" (uma vela no escuro), de Thomas Ady, que é um compendio das opiniões (já numerosas na época --1659) dos que acreditavam que não havia possessos, mas apenas enfermos.

Voltarei a escrever sobre exorcistas e endemoninhados. Hoje, o que me importa é a estranha experiência de ler na divisão dos livros raros da biblioteca pública de Nova York, neste fim de 2013.

A sala 328 se situa no fim da grande sala de leitura, longe dos turistas, mas, inevitavelmente, eu os cruzo quando chego e quando volto à sala do catálogo.

Turista sempre foi um termo pejorativo. Chamava-se assim quem viajava por diversão e, inevitavelmente, conseguia uma experiência superficial e chocha do lugar visitado. Hoje, aqui em Nova York, isso parece ser o de menos. A maioria dos turistas são apenas "shoppers", compradores; eles só tem uma experiência: a de comprar. Os que visitam a biblioteca pública entre uma loja e outra devem ser a nata da categoria; mesmo assim, adultos e crianças, quase escondidos atrás das sacolas que carregam, eles olham para mim como se eu habitasse uma outra dimensão. Talvez, eles encarem a biblioteca como um aquário, onde é possível observar uma espécie em via de extinção.

Não resisto à tentação de comparar os "shoppers" aos autores que estou lendo, para quem o mundo era um lugar complexo e interessantíssimo, em que cada opção comportava um risco radical, para a alma e para o corpo.

Sinto tristeza --pelo mundo transformado em bazar, pela miséria da experiência do "shopper" (para quem nem os objetos adquiridos tem relevância, só a estupidez do comprar) e por uma perda que afetará gerações, compradores produzindo compradores.

Entre 1 e 2 de janeiro, começarei o ano na vigília de poesia que acontece a cada ano, na igreja de Saint Mark. Pessoas ficarão na fila noite adentro, com uma temperatura prevista de 15 negativos, para conseguir um assento e passar a noite escutando 140 poetas.

No passado, na hora das catástrofes que ameaçavam a sobrevivência de uma comunidade (peste, invasões, fome), as pessoas se instalavam nas igrejas, em vigília, e pediam a ajuda de Deus contra a barbárie que estava às portas. A noite de poesia de St Mark é meu equivalente laico daquelas vigílias.

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