Francisco ganhou a batalha pela opinião pública. Com espírito desarmado, sorriso no rosto e ação conciliadora, em apenas nove meses, o papa recobrou a simpatia que a Igreja Católica perdeu nos anos de Bento XVI.
Adotou tom de maior tolerância com quem a doutrina vê como desviados e de mais respeito com outras religiões, além de promover reformas administrativas na Cúria Romana. Mas as mudanças anunciadas até agora são de forma, não de conteúdo. Nem de longe é possível considerar seu pontificado revolucionário, como analistas vêm fazendo apressadamente.
Não se trata de minimizar o que Francisco tem dito e feito, mas de dar o devido peso a suas palavras e seus atos. Bento XVI, seu antecessor, costumava apontar o dedo inquisitorial para identificar desvios de conduta, especialmente em outras confissões religiosas e no comportamento de homossexuais e divorciados ou em qualquer coisa que fugisse à ortodoxia católica. Francisco estendeu a mão ao outro, sob o argumento de que somos todos "pecadores". Para quem está do lado de cá dos portais das catedrais, certamente é melhor ser tratado de forma amena do que encarado como inimigo.
"Quem sou eu para julgar?", perguntou Francisco, e todos se encantaram com a demonstração de humildade. Nada de fundo se alterou, porém. Jorge Mario Bergoglio é tão conservador quanto Joseph Ratzinger em relação à doutrina, mas consegue embrulhá-la num papel mais suave.
O papa argentino, tal qual o alemão, acredita que manter relações sexuais com pessoas do mesmo sexo contraria as leis divinas e que, por isso, quem comete esse "pecado" e não se arrepende está condenado à danação eterna. Ambos concordam que mulheres são indignas de ordenação, que sacerdotes não podem ter vida sexual e que métodos contraceptivos devem ser proscritos.
O deslumbramento com o primeiro papa jesuíta e latino-americano é tamanho, não só no Brasil, que muitos nem se deram conta: a fórmula "quem sou eu para julgar" é pura condescendência, no pior sentido do termo. A recusa em sentenciar se dá de uma posição pretensamente superior, de quem acredita estar certo, mas trata quem discorda de maneira paternalista, passando-lhe a mão na cabeça.
Essa piedade papal dificilmente pode redundar em avanços na luta por direitos básicos de homossexuais, como o de casar, adotar crianças ou andar nas ruas sem temer ser alvo de violência gratuita.
Muitos dirão que a Igreja Católica nunca se modernizará, pois, se o fizer, deixará de ser uma referência sólida. Que mal faria modificar uma ideologia que exclui e marginaliza?
Se instituições e pessoas não evoluíssem, ainda seríamos caçadores nômades que conquistam mulheres pela força do porrete. As colunas da Basílica de São Pedro não se moveriam nem um milímetro caso o papa resolvesse anunciar que nada há de errado no amor entre duas pessoas do mesmo sexo ou numa relação que se segue a um matrimônio malsucedido. Tanto num quanto noutra, há apenas a busca da felicidade.
Os alicerces da civilização ocidental continuariam os mesmos se, porventura, o bispo de Roma afirmasse que filhos são muito bem-vindos, mas devem ser adiados até que os pais tenham condições psicológicas e materiais de os orientar.
Nenhum fiel se imolaria na Capela Sistina caso mulheres pudessem ser ordenadas, exercendo a vocação pastoral de forma plena, e se a padres e solteiros fosse permitido usufruir da dádiva do desejo. Abraçando as diferenças de forma sincera, não como quem lida com incapazes, a Igreja cresceria moralmente, pois estaria concretizando o mandamento do amor.
Quem usar o propalado discernimento jesuíta concluirá que Deus, retrato da suprema sabedoria e da infinita bondade, se existir, não estará preocupado com assuntos comportamentais como os condenados pela Igreja. É desnecessário estudar teologia para intuir isso. Basta consultar a própria consciência, na qual o certo e o errado estão gravados, e empregar o senso de proporção. Insistir numa postura que desconhece a complexidade dos seres humanos é mais do que lhes dar as costas, é deixar de reconhecer neles a centelha da divindade.
Francisco contribui para reduzir a tensão entre a Igreja e as pessoas que ainda lhe dão importância. Insistindo na volta à simplicidade, no conforto espiritual e na ajuda aos pobres, ele retorna à missão indevidamente abandonada. Pela via administrativa, combate a corrupção na Santa Sé e reduz os jogos de poder que minam a atuação pastoral.
O papa representou, até agora, novo estilo, mas não pode ser qualificado como progressista - muito menos como revolucionário. Sem tentar, ainda que de maneira gradual, viabilizar reformas substanciais e de fundo doutrinário, a personalidade do ano da revista Time será apenas mais um a ocupar o trono de Pedro.
02 de janeiro de 2013
Ricardo Medeiros, Correio Braziliense
Adotou tom de maior tolerância com quem a doutrina vê como desviados e de mais respeito com outras religiões, além de promover reformas administrativas na Cúria Romana. Mas as mudanças anunciadas até agora são de forma, não de conteúdo. Nem de longe é possível considerar seu pontificado revolucionário, como analistas vêm fazendo apressadamente.
Não se trata de minimizar o que Francisco tem dito e feito, mas de dar o devido peso a suas palavras e seus atos. Bento XVI, seu antecessor, costumava apontar o dedo inquisitorial para identificar desvios de conduta, especialmente em outras confissões religiosas e no comportamento de homossexuais e divorciados ou em qualquer coisa que fugisse à ortodoxia católica. Francisco estendeu a mão ao outro, sob o argumento de que somos todos "pecadores". Para quem está do lado de cá dos portais das catedrais, certamente é melhor ser tratado de forma amena do que encarado como inimigo.
"Quem sou eu para julgar?", perguntou Francisco, e todos se encantaram com a demonstração de humildade. Nada de fundo se alterou, porém. Jorge Mario Bergoglio é tão conservador quanto Joseph Ratzinger em relação à doutrina, mas consegue embrulhá-la num papel mais suave.
O papa argentino, tal qual o alemão, acredita que manter relações sexuais com pessoas do mesmo sexo contraria as leis divinas e que, por isso, quem comete esse "pecado" e não se arrepende está condenado à danação eterna. Ambos concordam que mulheres são indignas de ordenação, que sacerdotes não podem ter vida sexual e que métodos contraceptivos devem ser proscritos.
O deslumbramento com o primeiro papa jesuíta e latino-americano é tamanho, não só no Brasil, que muitos nem se deram conta: a fórmula "quem sou eu para julgar" é pura condescendência, no pior sentido do termo. A recusa em sentenciar se dá de uma posição pretensamente superior, de quem acredita estar certo, mas trata quem discorda de maneira paternalista, passando-lhe a mão na cabeça.
Essa piedade papal dificilmente pode redundar em avanços na luta por direitos básicos de homossexuais, como o de casar, adotar crianças ou andar nas ruas sem temer ser alvo de violência gratuita.
Muitos dirão que a Igreja Católica nunca se modernizará, pois, se o fizer, deixará de ser uma referência sólida. Que mal faria modificar uma ideologia que exclui e marginaliza?
Se instituições e pessoas não evoluíssem, ainda seríamos caçadores nômades que conquistam mulheres pela força do porrete. As colunas da Basílica de São Pedro não se moveriam nem um milímetro caso o papa resolvesse anunciar que nada há de errado no amor entre duas pessoas do mesmo sexo ou numa relação que se segue a um matrimônio malsucedido. Tanto num quanto noutra, há apenas a busca da felicidade.
Os alicerces da civilização ocidental continuariam os mesmos se, porventura, o bispo de Roma afirmasse que filhos são muito bem-vindos, mas devem ser adiados até que os pais tenham condições psicológicas e materiais de os orientar.
Nenhum fiel se imolaria na Capela Sistina caso mulheres pudessem ser ordenadas, exercendo a vocação pastoral de forma plena, e se a padres e solteiros fosse permitido usufruir da dádiva do desejo. Abraçando as diferenças de forma sincera, não como quem lida com incapazes, a Igreja cresceria moralmente, pois estaria concretizando o mandamento do amor.
Quem usar o propalado discernimento jesuíta concluirá que Deus, retrato da suprema sabedoria e da infinita bondade, se existir, não estará preocupado com assuntos comportamentais como os condenados pela Igreja. É desnecessário estudar teologia para intuir isso. Basta consultar a própria consciência, na qual o certo e o errado estão gravados, e empregar o senso de proporção. Insistir numa postura que desconhece a complexidade dos seres humanos é mais do que lhes dar as costas, é deixar de reconhecer neles a centelha da divindade.
Francisco contribui para reduzir a tensão entre a Igreja e as pessoas que ainda lhe dão importância. Insistindo na volta à simplicidade, no conforto espiritual e na ajuda aos pobres, ele retorna à missão indevidamente abandonada. Pela via administrativa, combate a corrupção na Santa Sé e reduz os jogos de poder que minam a atuação pastoral.
O papa representou, até agora, novo estilo, mas não pode ser qualificado como progressista - muito menos como revolucionário. Sem tentar, ainda que de maneira gradual, viabilizar reformas substanciais e de fundo doutrinário, a personalidade do ano da revista Time será apenas mais um a ocupar o trono de Pedro.
02 de janeiro de 2013
Ricardo Medeiros, Correio Braziliense
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