"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

É A MÃE!

Chegou o ano da Copa e das eleições. Oba, regozijam os malcriados. É um bom pretexto para eles xingarem mais ainda

Chegou o ano da Copa e das eleições. Oba, regozijam os malcriados. É um bom pretexto para eles xingarem mais ainda. O técnico do time, o candidato, o adversário, o comentarista, o juiz e o colunista entrarão num corredor polonês verbal. Os delicados acham o vagalhão de impropérios um mau sinal: os argumentos soçobram, o discurso público afunda, a boçalidade se alastra como óleo no mar. Talvez estejam errados.

O insulto está em alta. Atribui-se a responsabilidade à internet. Mas a rede mundial apenas propiciou que mais e mais gente partisse para cima dos outros, lançando adjetivos em vez de mísseis. Como palavras machucam menos do que drones, a agressão retórica é melhor que a real. Raros têm coragem de ofender alguém, face a face e friamente, a propósito de generalidades que não lhes dizem respeito de maneira direta. Correm o risco de levar uma bordoada de verdade.

É possível não ser contaminado pelo pandemônio virtual. Ninguém é obrigado a frequentar blogs raivosos, a ler as eructações da área de comentários, e mesmo a acompanhar mesas-redondas e debates eleitorais. O computador pode ser desligado. A página de ultraje não é de leitura obrigatória. A conversa civilizada e a quietude são preferíveis aos apupos.

A contaminação, no entanto, existe. Há pouco tempo, considerava-se que o injuriador anônimo era moralmente inferior ao indivíduo que assinava embaixo o vitupério. O primeiro era tido por covarde e o outro, por corajoso. Não mais. Os pusilânimes venceram quando organizações respeitadas, mormente jornalísticas, passaram a aceitar o anonimato.

Não adianta considerar os seus donos e chefes como responsáveis pelas ofensas inominadas: agora, quem assume os ataques refocila na baixaria. Como a Justiça não funciona, fica-se por isso mesmo. Ainda há, contudo, quem resista ao vale-tudo.

Eles aparentam ser poucos porque quem berra, rubro de raiva, é mais escutado do que aquele que pondera racionalmente. O título “É a mãe!” atrai mais leitores do que “Considerações acerca da retórica da cólera”, ou coisa que o valha. Inicia-se assim a dinâmica do grito. Fala-se cada vez mais alto para angariar atenção.
Da interjeição genérica (“É uma ladroeira!”) se passa à acusação (“Ladrão!”) e daí ao incitamento (“Pega ladrão!”) e ao linchamento (“Mata!”). Isso é feito sem que se analise no que consistiu o roubo. Ou se houve mesmo crime. Ou se não haveria outras injustiças a serem coibidas antes. E não se esqueça de que o bramido começou porque um pobre diabo quis aumentar a audiência. Como a obteve, agora ele é um rico diabo, seguido por pobres diabos que lhe fazem coro.

A oratória da ofensa vem então para o primeiro plano. Essa operação tem cabimento em determinadas ocasiões. Num estádio, cabe esgoelar barbaridades. O futebol existe para divertir. Já a política tem como substância a melhoria da vida de pessoas, estamentos e classes. Como há interesses opostos entre elas, a polarização é benfazeja.

Mas mesmo no enfrentamento de forças reais, a afronta escrita é acessória. Na revolução francesa, Maria Antonieta, austríaca, foi chamada num sem-número de panfletos de putain autrichienne.
As palavras serviam para incitar o ataque à monarquia. Reduzir a revolução ao calão, ou mesmo atribuir-lhe importância, é ingenuidade — o que contava era a guilhotina, a energia da gente que cortava cabeças. No Brasil de hoje, a desimportância do xingatório é evidente. A plateia pouco influi no resultado dos jogos. O palavrório ofensivo na rede não granjeia novos adeptos, só convence os convertidos.

Seria o caso, pois, de caprichar nos impropérios, espelhar-se em Shakespeare. Em “Ricardo III”, a rainha Margaret, destronada, amaldiçoa o Duque de Gloucester. Xinga-o cara a cara, antes que ele vire rei, em versos contundentes, traduzidos a seguir.

“Aguenta aí, cão, e me escuta bem.

Se o céu tem pragas mais abjetas

Do que as que te rogo, que ele aguarde

Até que os teus pecados apodreçam,

Para então te vomitar ainda mais ódio,

Algoz da paz do pobre mundo!

Que o verme do remorso te roa a alma,

Que penses que os teus amigos te traem

E os troque por traidores vis de verdade.

Que o sono só te cerre os olhos funestos

Para tombares num nefando pesadelo

Onde uma legião de demônios te trucide.

Tu, turvo espírito da treva, porco, aborto,

Tu, filho do inferno, entrevado de nascença!

Tu, fruto podre do ventre de tua mãe,

Tu, obra atroz do esperma de teu pai!”
 
02 de janeiro de 2014
Mario Sérgio Conti, O Globo

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