Está muito longe de ser mera coincidência o fato de o governo federal ter acertado com o Congresso uma fórmula para aliviar a dívida de Estados e de municípios no momento em que o prefeito paulistano, Fernando Haddad, precisa urgentemente de recursos financeiros. Só com mais dinheiro Haddad, que é do mesmo partido da presidente Dilma Rousseff, poderá mostrar alguma realização no próximo ano - quando, não custa recordar, haverá eleição de presidente da República e de governadores.
O alívio dos pagamentos das dívidas estaduais negociadas pela União em 1997 e das prefeituras negociadas a partir de 2001 vinha sendo reivindicado há muito tempo por governadores e prefeitos. Mas, nas condições acertadas, o grande beneficiado será Haddad.
A mudança do indexador das dívidas negociadas pela União com os Estados e municípios - do Índice Geral de Preços - Disponibilidade Interna (IGP-DI), da Fundação Getúlio Vargas, para o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), do IBGE - foi proposta pelo governo no fim do ano passado, por meio de projeto de lei complementar que também continha mudanças destinadas a acabar com a guerra fiscal entre os Estados.
Como justificou o ministro da Fazenda, Guido Mantega, ao propor à presidente Dilma Rousseff o envio do projeto de lei complementar ao Congresso, os critérios financeiros estabelecidos nos contratos de renegociação das dívidas de Estados e municípios, com a correção pelo IGP-DI, "refletiam condições macroeconômicas completamente distintas das que imperam para a economia brasileira atualmente".
Por pressão de governadores, prefeitos e parlamentares, o governo concordou também em mudar a forma de cálculo do saldo devedor, desde a assinatura do contrato até o dia 1.º de janeiro de 2013, o que implicará a concessão de desconto.
Em alguns casos, como o da Prefeitura paulistana, o desconto será bilionário. Calculado pelos critérios atualmente em vigor, o saldo devedor fica em torno de R$ 54 bilhões; pelas regras acertadas, cairá para cerca de R$ 30 bilhões.
Isso ocorrerá porque a variação acumulada do IGP-DI, acrescido dos encargos normais e os adicionais da dívida em que a Prefeitura incorreu entre 1999 e 2012, alcançou mais de 800%. Já a taxa Selic (que passará a ser o teto do novo encargo, caso a proposta seja aprovada e sancionada) teve variação acumulada de 493%.
A Prefeitura paulistana terá ainda outro ganho substancial. Por não ter amortizado R$ 3 bilhões de sua dívida em 2002, quando o PT governava a cidade (e Fernando Haddad fazia parte da equipe da então prefeita Marta Suplicy), a Prefeitura de São Paulo perdeu o direito ao pagamento de juros reais menores, de 6%, e passou a pagar juros reais de 9% ao ano, o que elevou suas despesas anuais e fez crescer mais rapidamente o saldo devedor. A mudança em tramitação no Congresso reduz também o valor das prestações que a Prefeitura terá de pagar, o que abre espaço financeiro para mais gastos a partir de 1.º de janeiro de 2014.
Tudo isso, por enquanto, está no papel. A Comissão de Finanças e Tributação aprovou na madrugada de quarta-feira (9/10) as alterações acertadas na véspera. O projeto ainda depende de apreciação da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania antes de ser submetido ao plenário da Câmara. Depois, terá de passar pelo Senado.
Resta saber como essas mudanças poderão ser feitas sem violentar a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Em vigor desde 2000, a LRF foi e tem sido essencial para assegurar gestão mais responsável do dinheiro do contribuinte.
Em seu artigo 35, a lei é clara ao estabelecer que é vedada a realização de operação de crédito entre um ente da Federação e outro, "ainda que sob a forma de novação, refinanciamento ou postergação da dívida contraída anteriormente". O que é a troca do indexador, que modifica o cálculo do saldo devedor e das prestações, senão um refinanciamento?
Mudar esse dispositivo da LRF implicará tirar-lhe um de seus elementos essenciais. Seria um gigantesco retrocesso institucional, que a Nação não perdoaria.
11 de outubro de 2013
Editorial do Estadão
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