Darcy Ribeiro – O Vulcão de idéias, meu mestre, saudoso amigo, íntimo, sofria de insônia intelectual. Fui seu assessor e editor no Senado por mais de dois anos. Muitas vezes, chegava pela manhã ao Senado meio abatido, cansado e desabafava: “Marcelo, não dormi quase nada. Pensei a noite toda. Tanta coisa para fazer: projetos, a causa da Educação, a defesa dos índios, o Brasil dono do seu destino… Eu penso muito, dia e noite. Pensar cansa, Marcelo, cansa muito”.
O meditar não permitia que ele dormisse. Em outro ambiente e em outra hora, no mundanismo afetivo, Darcy se revoltava quando sabia que dois ou três amigos abriam uma garrafa de uísque, de vinho (suas bebidas preferidas) ou mesmo de cachaça, e não a secavam. Não se conformava: “Como abrir e não tomar tudo? Que não abrissem… Isto é um absurdo, inadmissível, insensatez.”
Johnny Alf – Fomos amigos. Trabalhei com ele no início dos anos 1970. Personalidade dificílima no trato. Para mim, pior que João Gilberto, João Donato e Edu Lobo, dos quais tantos reclamam. O seu biógrafo, João Carlos Rodrigues, me contou o fato. Depois publicou. Mas creio que pouca gente sabe as razões do fato.
Em 1964, Johnny gravou doze músicas, da Bossa Nova, todas em inglês, algumas vertidas por ele, para um LP, que seria lançado nos EUA, seu passaporte para uma ida àquele País: quatro do próprio Johnny, três de Newton Mendonça e Tom Jobim, duas do Tom, duas do Menescal e Bôscoli e uma do Sérgio Ricardo. Ella Fitzgerald e Sarah Vaughan o esperavam. O mundo do jazz norte-americano aguardava ansioso o menino negro de Vila Isabel, filho de uma empregada doméstica, que foi o primeiro compositor, o pioneiro da estética Bossa Nova.
O disco não foi lançado porque Johnny, na última hora, justificou-se: “O meu pai-de- santo ordena que o disco não seja prensado e que eu não deva viajar para os Estados Unidos”.
Eu tenho as gravações raríssimas, inéditas. Johnny fez carreira dirigida pelo seu pai-de- santo de plantão. E, por isto, não deslanchou como deveria. Desistiu de importantes convites, cancelou shows, alterou agendas. No Brasil, ninguém conhecia mais cultura norte-americana do que Johnny Alf, especialmente a língua inglesa falada nos EUA e as artes (música, cinema, teatro, dança, artes plásticas etc.)
Ziembinski – Zbigniew Ziembinski, ator e diretor que revolucionou o teatro brasileiro com Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues (1943), era abstêmio, não bebia nem cerveja. Mas, em 1968, ao filmar Brasil Ano 2000, do meu amigo Walter Lima Júnior, em Paraty, RJ, tomado pela beleza do lugar e pelo ambiente boêmio, tomou comigo e mais um amigo, dois porres de cachaça, cachaça pura, num bar flutuante sobre o Rio Perequeaçu.
Newton Mendonça – O maior compositor da Bossa Nova, primeiro e fundamental parceiro de Tom Jobim, pianista falecido aos 33 anos em 1960, do qual sou o único biógrafo, somente comia feijão com arroz, se este fosse uma ilha no prato, cercado pelo feijão. Uma mania adquirida na infância. Também só tocava música erudita – quase sempre Beethoven, Chopin, Liszt, Debussy e Rachmaninoff – na sala do apartamento, sozinho, no escuro, com luz apagada. As manias me foram comunicadas pela irmã de Newton, Norma Mendonça (1926-2007).
Hélio da Rocha Pitta – O famoso Professor Pitta, de Matemática, Física e Desenho, formou gerações no Colégio Naval, na Escola Naval e no IME, no Rio. Nascido em Araxá, MG, era filho de uma russa e de um negro. Possuía apenas o diploma de nível médio do Liceu de Artes de Ofícios do Rio de Janeiro. Não tinha formação superior, era autodidata. Mas podia lecionar em qualquer universidade do mundo, pois era portador de um certificado de “Notório saber”, do MEC. Como Zanine Caldas, que não tinha curso universitário, mas o título de “Arquiteto Honorário” do IAB.
Pitta foi um sábio, um gênio. Durante a Segunda Guerra, Hitler o convidou para produzir uma bomba atômica na Alemanha. Recusou. Depois, ainda da década de 1940, planejou uma viagem à Lua, projetou um foguete brasileiro para a viagem. O Governo não lhe deu apoio, o projeto frustrou-se, mas ele disse que o Homem chegaria à lua na década de 1960. E chegou. Conheci um dos tripulantes brasileiros da viagem que não houve.
Pitta era um homenzarrão, com voz de trovão, 1,90m de altura, um Hulk, lutava karatê, remava, jogava basquete e fazia ginástica diariamente. E uma pessoa gentil, doce, de fala mansa e baixa. Convivi com ele nas décadas de 1950 e 1960 em Angra dos Reis, e, depois, no final da vida no Rio, nos reencontramos, e bebemos cachaça juntos, sua única bebida. Aos 82 anos, fazia o supino com 120kg.
A última vez que nos vimos foi no lançamento do seu último livro, que demonstrava a existência de Deus através da Física. Perguntei-lhe: “Como é Deus?” Ele respondeu: “É sério, severo, ri pouco. Tem cara de bravo. Mas é justo, generoso”.
16 de agosto de 2016
Marcelo Câmara
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