Há um estranho distanciamento entre os temas debatidos na campanha que desaguará na eleição de amanhã e o que de fato está em jogo na escolha que ela decidirá.
Para além dos ataques pessoais que dominaram a cena e das diferenças inerentes ao tema da corrupção, tudo se passou como se não houvesse escolha mais arriscada em jogo para o Brasil do que optar entre dosagens ligeiramente diferentes de intervenção na economia por cima de políticas sociais rigorosamente idênticas, dentro de um ambiente institucional perfeitamente consolidado.
Só que isso não corresponde à realidade. Na verdade, tudo está em aberto. Nem mesmo os itens básicos da Declaração Universal dos Direitos do Homem são incondicionalmente acatados pelo atual governo do País, que há 30 anos clamava em uníssono por "Diretas Já" e nos pede mais quatro anos de mandato.
Em plena revolução tecnológica não há "verdade absoluta" que tenha ficado em pé. A dúvida, cada vez mais, é senhora, e essa ausência de certezas é o pressuposto da liberdade que é, antes de mais nada, a liberdade de dissentir.
Há muito tempo já que não há mais enganos perdoáveis a esse respeito. Não há como não repudiar, de boa-fé, as afirmações categóricas do passado, o apriorismo político e as concepções tendentes a deformar as sociedades humanas e o indivíduo segundo modelos preconcebidos.
A flexibilidade política deixou de ser uma opção para se transformar num imperativo de sobrevivência.
Não obstante o que o PT trata de fazer o Brasil tragar por baixo de um discurso que nunca penetra claramente nessas profundidades, é de impedir o País de navegar conforme a onda que venha e o vento que sopre, livre para mudar de rumo e mudar de prumo; é de fechar a porta de saída - ou, no mínimo, antepor a ela um labirinto virtualmente intransponível - depois de ter aceito o convite para passar pela de entrada.
Os fatos são os fatos.
No plano internacional, o governo do PT alinha-se automaticamente com todas as ditaduras e com os mais notórios violadores dos direitos humanos deste e de outros continentes, muitas das quais, ao arrepio da lei, financia com dinheiro público em contas dadas como "secretas". Chegou até ao extremo de exigir que a ONU desse mais tempo e largueza aos degoladores do Estado Islâmico.
No plano nacional, o partido manipula os números que medem o desempenho da economia, censura as instituições públicas encarregadas dessa medição quando os dados lhe são adversos, financia com dinheiro público uma vasta rede de difamadores assalariados para promover o linchamento moral nas redes sociais de quem quer que divulgue fatos que considere prejudiciais às suas pretensões eleitorais ou manifeste opiniões diferentes das suas e promete solenemente, em caso de vitória, passar a "controlar" o que os brasileiros poderão ver, ouvir ou dizer daqui por diante também na "mídia tradicional".
Num plano mais concreto e efetivo, a própria candidata que pede votos aos brasileiros dentro do sistema ainda em vigor assina o Decreto n.º 8.243 da Presidência da República que revoga a exclusividade do poder de legislar dos representantes eleitos por todos os brasileiros e transfere parte dele a grupos de militantes do seu partido com os quais se reuniu cerimonialmente na sede do governo às vésperas do 1.º turno para reiterar oficialmente seu compromisso de, à revelia do Congresso Nacional e contra a eventual resistência dele, submeter a plebiscito a continuação ou não do regime de democracia representativa eleita pelo voto universal.
Para a massa dos eleitores o volume e a intensidade com que são divulgadas as "mordidas" e os "assopros" da proposta petista são monitorados com o mesmo ajuste fino de modulação com que, na sua sempre reveladora obsessão com os falsos silogismos, contaminam com meias-verdades ou mentiras inteiras as ações e declarações dos adversários, sempre de modo a poder afirmar mais adiante que, seja o adversário, seja o eleitor, disse o que não disse ou votou no que não votou.
Todas essas manobras se dão sob a regência pessoal de um Luiz Inácio Lula da Silva que, à medida que avança a campanha eleitoral, vem recrudescendo seus votos de ódio e suas ameaças de vinganças "inimagináveis" contra quem ousar resistir-lhes, e seguem à risca o roteiro por ele pessoalmente prescrito ao Foro de São Paulo, a entidade que ele próprio criou e congrega em torno desse mesmo esquema tático todos os ditadores em projeto ou já instalados no poder na América do Sul e no Caribe, com a expressa recomendação de que "não permitam recuos" após cada "conquista".
Não obstante tudo isso, acuada pela máquina de mentiras e intrigas que vem semeando a cizânia e empurrando um povo que já foi definido por sua cordialidade para a beira da conflagração, a candidatura de Aécio Neves escolheu trabalhar exclusivamente os temas que menos a diferenciam da blitz lulista, deixando fora do debate a única diferença de fato irreconciliável entre o PSDB e o PT, que é o compromisso de um com a democracia e o compromisso do outro contra a democracia ou pelo menos contra a democracia desadjetivada, o que parece ter desmobilizado uma parcela daquele eleitorado que, sentindo instintivamente o perigo que continua no ar, se aliou no 1.º turno, por cima de suas diferenças, no voto antipetista e a favor da democracia.
Afinal, se as diferenças não passam de nuances, segundo os próprios interessados em ressaltá-las, por que arriscar os incômodos todos de uma troca de governo?
Seria um trágico engano. Acreditar nisso é ignorar o que se passa à nossa volta no continente sul-americano, descrer de tudo quanto o PT afirma sobre si mesmo e suas intenções, relevar o ambiente de violência moral - quase física - em que transcorreu a campanha eleitoral e arriscar-se a descer até à profundidade a partir da qual não há mais retorno nos sistemas de socialização da corrupção e seleção negativa dos parasitas no controle deles em que, década após década numa espiral sem fim, vêm dando voltas, soçobrados, tantos dos países vizinhos do Brasil.
25 de outubro de 2014
Fernão Lara Mesquita, O estado de S.Paulo
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