Se não formos capazes de superar conquistas do Real, vamos começar a perder até o terreno conquistado
Três impressões me deixaram os comentários sobre os 20 anos do lançamento da moeda: a durabilidade da memória, a ausência de prejudicados e as interpretações equivocadas.
Nenhuma outra medida econômica brasileira continua a ser lembrada uma geração depois. Só isso prova que o Real deu certo. No momento em que o Supremo julga queixas de vítimas de todos os outros planos, o Real é o único que não está em causa, pois não provocou mortos ou feridos. Sinal de que a transparência teve a capacidade de evitar choques lesivos de direitos.
Por outro lado, fala-se do Real no presente como se ele ainda durasse e fosse plano detalhado de desenvolvimento. Trata-se de equívoco, que mostra como faz falta um projeto estratégico de país, coisa que o Real nunca foi.
O Real teve a natureza de iniciativa limitada no tempo e com objetivo bem definido: impedir que o Brasil caísse na hiperinflação. Isso ele conseguiu de imediato. Duas décadas mais tarde, ninguém leva a sério tal perigo. Visava também restituir ao país um mínimo de estabilidade que permitisse prever e planejar, ter crédito de longo prazo para comprar carro e casa própria, o que igualmente virou rotina.
Era o que eu tinha em mente na época quando insistia em que a estabilidade trazida pelo Real não passava do patamar do monumento a ser edificado. Esse sim é que deveria constituir o projeto para o Brasil. As comemorações indicaram que não se põe em dúvida a solidez da base; o que se discute é se o monumento construído sobre essas fundações pode ser considerado perfeito e acabado.
A resposta óbvia é não. Apesar de frágil, a democracia de 1994 teve sucesso em resolver os desafios mortais que os militares nos legaram: o risco de hiperinflação e a crise da dívida externa. Avançamos em qualidade de moeda, responsabilidade nos gastos, eliminação de mostrengos como bancos estaduais, esqueletos no armário, estatais irrecuperáveis. Finalmente começamos a reduzir a miséria, a pobreza e a desigualdade.
Os êxitos, no entanto, ficaram truncados: ainda há indexação, estamos longe de ter orçamento de verdade, a febre inflacionária baixou, mas o foco infeccioso permanece latente. O exagero dos gastos com benefícios da previdência e das transferências de renda suprimiu a capacidade do setor público de investir em infraestrutura. Não logramos conciliar aumento de emprego e salário com inflação baixa, crescimento e melhora da produtividade. Acima de tudo, chegamos a um ponto em que, se não formos capazes de superar as conquistas do Real, vamos começar a perder até o terreno conquistado.
O debate do 20º aniversário revelou maturidade acerca do que falta fazer. Mas o consenso sobre objetivos não se estende a meios, conforme se vê na discussão do desempenho do governo. Passadas as eleições, o exemplo a seguir é o do pacto em favor do país celebrado pelos maiores partidos do México para aprovar no Congresso o necessário. A alternativa do confronto traz de volta o fantasma de outros aniversários trágicos do ano: o suicídio de Getúlio e o golpe de 1964.
Três impressões me deixaram os comentários sobre os 20 anos do lançamento da moeda: a durabilidade da memória, a ausência de prejudicados e as interpretações equivocadas.
Nenhuma outra medida econômica brasileira continua a ser lembrada uma geração depois. Só isso prova que o Real deu certo. No momento em que o Supremo julga queixas de vítimas de todos os outros planos, o Real é o único que não está em causa, pois não provocou mortos ou feridos. Sinal de que a transparência teve a capacidade de evitar choques lesivos de direitos.
Por outro lado, fala-se do Real no presente como se ele ainda durasse e fosse plano detalhado de desenvolvimento. Trata-se de equívoco, que mostra como faz falta um projeto estratégico de país, coisa que o Real nunca foi.
O Real teve a natureza de iniciativa limitada no tempo e com objetivo bem definido: impedir que o Brasil caísse na hiperinflação. Isso ele conseguiu de imediato. Duas décadas mais tarde, ninguém leva a sério tal perigo. Visava também restituir ao país um mínimo de estabilidade que permitisse prever e planejar, ter crédito de longo prazo para comprar carro e casa própria, o que igualmente virou rotina.
Era o que eu tinha em mente na época quando insistia em que a estabilidade trazida pelo Real não passava do patamar do monumento a ser edificado. Esse sim é que deveria constituir o projeto para o Brasil. As comemorações indicaram que não se põe em dúvida a solidez da base; o que se discute é se o monumento construído sobre essas fundações pode ser considerado perfeito e acabado.
A resposta óbvia é não. Apesar de frágil, a democracia de 1994 teve sucesso em resolver os desafios mortais que os militares nos legaram: o risco de hiperinflação e a crise da dívida externa. Avançamos em qualidade de moeda, responsabilidade nos gastos, eliminação de mostrengos como bancos estaduais, esqueletos no armário, estatais irrecuperáveis. Finalmente começamos a reduzir a miséria, a pobreza e a desigualdade.
Os êxitos, no entanto, ficaram truncados: ainda há indexação, estamos longe de ter orçamento de verdade, a febre inflacionária baixou, mas o foco infeccioso permanece latente. O exagero dos gastos com benefícios da previdência e das transferências de renda suprimiu a capacidade do setor público de investir em infraestrutura. Não logramos conciliar aumento de emprego e salário com inflação baixa, crescimento e melhora da produtividade. Acima de tudo, chegamos a um ponto em que, se não formos capazes de superar as conquistas do Real, vamos começar a perder até o terreno conquistado.
O debate do 20º aniversário revelou maturidade acerca do que falta fazer. Mas o consenso sobre objetivos não se estende a meios, conforme se vê na discussão do desempenho do governo. Passadas as eleições, o exemplo a seguir é o do pacto em favor do país celebrado pelos maiores partidos do México para aprovar no Congresso o necessário. A alternativa do confronto traz de volta o fantasma de outros aniversários trágicos do ano: o suicídio de Getúlio e o golpe de 1964.
08 de julho de 2014
Rubens Ricupero, Folha de SP
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