"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

terça-feira, 8 de julho de 2014

O REI E O ESPORTE-REI

 
Futebol, comércio, poder e Coroa na Espanha
por GERMÁN LABRADOR MÉNDEZ
 

No dia em que a Espanha trocava de rei, a Copa do Mundo via a Coroa ficar órfã da pior maneira possível. Vencida por uma república rubra como o Chile e vítima de todo um compêndio de horrores, a seleção espanhola encerrou sua efêmera passagem pelo Brasil saindo pela porta dos fundos. (El Público, 19 de junho de 2014)
 
A campanha da seleção campeã do mundo de 2010 nos campos brasileiros foi fugaz: perdeu de 5 x 1 da Holanda e de 2 x 0 do Chile. A humilhante eliminação do time, ainda que inesperada, não deixou de ser coerente. Não com sua recente trajetória e seu jogo, mas com o lugar simbólico, político e mitológico que o futebol ocupou na sociedade espanhola nos últimos anos de crise, protestos e cortes de gastos.
Em 2012, a equipe nacional vencia as partidas enquanto o país aceitava o resgate econômico. Em 2014 – como observou a imprensa internacional –, La Roja propiciava outra importante sincronia em sua derrota contra o Chile, que coincidiu com a cerimônia de coroação de Felipe vi, novo rei da Espanha depois da abdicação de seu pai. Então a seleção também estava abdicando? Seu fim era também o fim de um reinado?

A abdicação de Juan Carlos I em 2 de junho pegou o país de surpresa. Mas será que se pode dizer o mesmo da derrota da Furia Roja, onze dias mais tarde? Olhos mais atentos haviam notado que, nos últimos dois anos, o futebol do F. C. Barcelona já não era o mesmo e que suas estrelas locais estavam envelhecendo.
A espinha dorsal da seleção era, em grande medida, a do Barça; seu modelo de jogo, uma transposição daquele que o técnico Pep Guardiola utilizou para ganhar todas as competições possíveis num só ano. Villa, Xavi, Piqué... e, como capitão, Casillas. Protagonistas de um western crepuscular, os convocados para o Brasil evocavam aqueles que ergueram a taça na África do Sul, mas agora na paradoxal condição de lendas vivas, que lhes roubava ferocidade. Habitantes prematuros do Olimpo, estavam, por isso mesmo, saciados antes da hora em banquetes de glória. “Não conseguimos manter a fome.
Nossa cota de alegria e sucesso estava completa, esgotada”, afirmou um Xabi Alonso em retirada, citando uma advertência que o técnico fizera antes do mundial: “Neste vestiário, só vejo uma pessoa que ainda tem fome nos olhos.”

Na realidade, de uma perspectiva simbólica, a derrota já havia ocorrido um ano antes. Em 30 de junho de 2013, a Armada Roja e a Seleção brasileira disputaram a final da Copa das Confederações no Maracanã. Ao redor do estádio, uma multidão protestava, contrapondo o vocabulário da política ao do futebol. Ali se expressavam, em antinomia, a democracia e o espetáculo, a lógica dos estádios à dos hospitais.
Alheia a tudo isso, porém, a seleção espanhola perdeu por 3 a 0, numa partida que a imprensa peninsular descreveu como um simulacro antecipador da final do mundial de 2014. Copa para quem? Se aqueles protestos seriam o início de outros protestos, aquela derrota resumia outras derrotas futuras, pois nela a seleção espanhola entregava o bastão de campeã à grande potência emergente, governante imaginária das essências mágicas do futebol.
O que a imprensa disse em 2013 foi confirmado pelo técnico Del Bosque em 2014: “Tocou-nos perder e temos de fazê-lo de cabeça erguida, cedendo a vez a outro campeão.” Descansando aliviada da responsabilidade de revalidar qualquer título, a seleção espanhola – último vestígio do êxito global de uma sociedade-mundo, da Espanha do início do milênio, da bolha imobiliária, da especulação e da autodenominada oitava economia mundial – sincronizava-se agora com o novo sinal dos tempos: crise, decadência e apatia.
 
Do boom à crise
 
Se os antropólogos culturais pensam que o espaço social se articula como um jogo, é porque também entendem os espaços de jogo como espaços que articulam o social. Neles, o que as coisas são poderia se reduzir àquilo que as coisas significam coletivamente num dado momento.

No ano transcorrido entre as duas derrotas da seleção, a sociedade espanhola esteve submetida a um constante e coletivo atrito com o real. Desde 2012, ela viveu um violento processo de reajuste no plano político e econômico, um tempo de conflituoso rearranjo das expectativas e crenças cidadãs a propósito da natureza e dos interesses do regime político, que pode ser resumido num grito popular: “Chamam isso de democracia, mas não é.”
A seleção espanhola não só não é estranha a essas mutações ideológicas, como também contribuiu – talvez como nenhuma outra instância cultural – para expressá-las e dar-lhes forma. No campo de signos que é o futebol, procuramos paralelismos rápidos – se um país vai bem, seu time deve ganhar; se vai mal, deve perder. Mas para analisar como o futebol contribuiu para a atualidade espanhola, para o entendimento de seu momento histórico, devemos recorrer a um modelo de leitura diferente.

O ciclo de vitórias da seleção espanhola, recém-interrompido, teve lugar majoritariamente não durante os anos de expansão e auge do mundo que a criou e lhe deu sentido, mas sim no período de seu colapso, anunciado logo depois da conquista da primeira Eurocopa, que coincidiu com o início da crise financeira global de 2008.
Mais tarde, a explosão da bolha imobiliária e a crise da dívida dos bancos espanhóis foram balizadas pela Copa de 2010. Mas seria apenas, e sobretudo, com o resgate financeiro (bailout) de 2012 – e sua simultaneidade com a conquista da terceira Eurocopa, a segunda em seguida – que se determinaria, no imaginário coletivo, o caráter contracíclico das vitórias de La Roja.
Se até a primavera de 2011 a crise fora excluída de representação midiática, fruto de um esforço para representar a normalidade; se as cifras macroeconômicas e a deterioração do tecido coeso do bem-estar se conjuravam como pausas necessárias do sonho de crescimento ilimitado em que todos seríamos milionários, a ocupação das praças em maio de 2011 (o movimento 15-M) mudou a linguagem da crise e a percepção coletiva da mesma, assim como seu horizonte político (“Não é uma crise, é uma fraude”).
Um ano mais tarde, nos meses que antecederam a Eurocopa de 2012, a crise, suas consequências, os modos de sair dela dominavam as representações do presente, os anúncios televisivos e as declarações do governo.

A vitória na Copa de 2010 continuava a responder a um desejo de totalidade, de completude. Era uma vitória que ainda podia ser pensada como definitiva, um triunfo que podia ser reivindicado em nome da nação. Foi o que sustentou, por um breve tempo, a fantasia de habitarmos um país normal, ao reunir, sob a sempre problemática bandeira aurirrubra, bascos, catalães, galegos, nacionalistas espanhóis, torcedores do Real Madrid e do Barcelona, nostálgicos do franquismo e jovens progressistas.
O título mundial de 2010 dizia respeito a todos e reafirmava o compromisso com a transcendência e com o crescimento constante que a crise interrompera e que forçosamente voltaria. Não foi bem assim.

Em 2012, o ano do resgate, qualquer vitória já era relativa – por oposição ou por compensação, mas sempre em relação à crise econômica e social que sublimava ou diluía. A fantasia da crise substituía a do coletivo que, no mesmo barco, esperava zarpar rumo a horizontes de riqueza. A crise foi o barco que foi a pique.
A esfera do real e a esfera do futebol se alinharam numa estranha equação simbólica – que podemos chamar de nacional-quixotismo – na qual era possível perder e ganhar ao mesmo tempo, extraindo significados diferentes de cada alternativa.
No verão de 2012, impressionado ao ver como tudo que era ar se desmanchava no sólido, expus algumas dessas ideias nas páginas da piauí_71 (agosto de 2012). Dois anos depois, elas ainda me inquietam.
 
Em junho de 2012, na véspera do dia em que o primeiro-ministro Mariano Rajoy solicitava ajuda internacional para refinanciar o sistema financeiro espanhol e anunciava cortes nos gastos públicos, começava a Eurocopa. Durante três semanas, ninguém no governo deu explicações sobre as causas e consequências, as formas e condições do resgate financeiro.
Na ausência dessas explicações, o treinador Del Bosque dava conselhos e declarações com claras ressonâncias políticas (“Passamos de pobres a ricos muito rapidamente”). E no entanto, apesar da indignação, do desconcerto, da raiva, os cidadãos se entregavam ao prazer de assistir à vitória da seleção, épica e cheia de emoção, depois de uma estreia nem um pouco brilhante.
Tratou-se de um grande processo de sublimação: as perdas materiais se transformavam em ganhos espirituais; a alienação da soberania econômica era compensada com o exercício da hegemonia esportiva; elogiava-se a condição sacrificada, cavalheiresca, emotiva da alma nacional, encarnada por sua seleção.
Como disse um jovem entrevistado a um jornalista no final do torneio: “Não podíamos ter negociado o resgate com a Alemanha? Não, porque os alemães são superiores na economia, então é melhor ganharmos a Eurocopa e deixar os caras mais putos, porque aí eles não podem fazer nada.” Era uma perfeita formulação do “quixotismo esférico”, transformado em senso comum da cidadania.

Dois anos depois, quando a imprensa espanhola leu a renúncia do rei por meio da derrota da seleção contra o Chile, os jornalistas assumiram o fim de um modelo de futebol-ficção e de suas formas de convocar o coletivo. O ocaso do quixotismo esférico coincidiu com o fim de um reinado, o de Juan Carlos I, e, com ele, de uma cultura política, a do regime de 1978, emanado da transição espanhola.

Suas fantasias unitárias foram sendo paulatinamente erodidas nesses dois últimos anos. Precisaram enfrentar a constante ameaça do real político: despejos, suicídios, desemprego, violência policial, pobreza infantil, ocupações, badernas, desocupação juvenil, manifestações, correntes humanas pró-independência, auditorias da dívida, marchas pela dignidade...

Ao longo desse último ano político, surgiram novas formas de protestos e greves que resultaram nas primeiras vitórias da cidadania. Nas eleições ao Parlamento Europeu de maio de 2014, os dois grandes partidos dinásticos – os liberais do governo (PP) e os sociais-democratas da oposição (PSOE) –, em queda livre, pela primeira vez ficaram em minoria diante do avanço de opções independentistas e forças de esquerda, entre as quais se destaca uma nova agremiação – Podemos –, uma frente cívica liderada por professores universitários e organizada segundo princípios de democracia direta e digital.

Essa formação anticapitalista bebe das experiências bolivarianas e dos foros altermundistas (“Um outro mundo possível”), e se associa a outras agremiações anticrise surgidas no sul da Europa (Syriza, na Grécia), que reclamam o perdão da dívida e o desenvolvimento de uma “Europa dos cidadãos”. Diante do risco de que esses resultados possam se repetir nas eleições municipais ou legislativas de 2015, gerando potencialmente maiorias republicanas nas câmaras, o processo de sucessão ao trono real precisou ser acelerado.
 
A energia de La Roja
 
A articulação do mito quixotesco proclama o triunfo imaterial da nação graças a sua capacidade de, por meio de fluxos imateriais, compensar a súbita escassez no plano material. Esse desenho adquire sua maior complexidade na Eurocopa de 2012; graças ao rendimento então demonstrado pela seleção, toda cena coletiva destes dois últimos anos, incluindo a preparação para a Copa do Mundo, ficará contaminada por esse quixotismo.
A incapacidade de continuar oferecendo uma mediação com o real durante as jornadas brasileiras contrasta com o enorme investimento em publicidade e em propaganda que o manteve vivo nos últimos meses. As instituições espanholas e seus representantes corporativos, bem como os meios de comunicação nacionais, queriam uma seleção mais comprometida do que nunca com as necessidades simbólicas do Estado-nação. Tudo estava preparado para uma nova explosão de alegria. No lugar dela, assistimos à ruína temporal de um modelo de nacionalismo esportivo.

Desde o início do seu mandato, Rajoy associou sua imagem a um modo de entender o esporte como sublimação das narrativas nacionais e espetáculo exemplar e disciplinador do mesmo corpo social que sofria agressivas políticas de austeridade. O projeto conservador poderia ser resumido na seguinte máxima: assim como os atletas penam para conquistar bens imateriais, assim devem fazer os cidadãos enquanto membros de uma nação comum.

Em fevereiro de 2012, o ciclista Alberto Contador foi condenado por doping no Tour de France, e logo se deflagrou a chamada “crise dos fantoches”, depois que a televisão francesa Canal + transmitiu um esquete com bonecos de atletas espanhóis que, no lugar de canetas, assinavam com seringas um documento de apoio ao ciclista.
Numa reação característica do nacionalismo quixotesco, enquanto parte dos meios de comunicação atribuía a brincadeira ao despeito francês pelas vitórias de ciclistas e tenistas espanhóis, o governo convocou um ato de desagravo ao esporte nacional. Rajoy fez um discurso programático em termos de filosofia política, verdadeira pedra de Roseta do quixotismo esportivo.
Ele declarou ao El País que “a Espanha é uma grande nação, e é feita pelos espanhóis, entre eles seus atletas, que levam nosso estandarte pelo mundo todo. Por trás disso há muito trabalho, muito esforço e muito sacrifício. São valores que incidem em todos os aspectos da vida. Vivemos uma crise econômica da qual será muito difícil sair. É muito importante retomarmos esse esforço, sacrifício e trabalho”.

Tal paralelismo atingia seu ápice quando o assunto eram as vitórias do futebol. Historicamente, os indigentes resultados obtidos pela equipe nacional sempre foram interpretados como sintoma de uma normalização pendente, de uma anormalidade nacional que impedia a todos de vibrar e se identificar com os símbolos aurirrubros. Desde 2008, porém, no ritmo crescente de vitórias da Furia Roja, começava a celebrar-se o contrário: a capacidade de a equipe encarnar o melhor espírito da nação.
A seleção de futebol, desde então, ofereceria uma imagem exemplar do que poderia ser a comunidade nacional, por vezes uma tradução direta dos valores de uma nação de classe média (“Somos pessoas simples, pessoas normais”, disse o goleiro Casillas na vitória de 2012), por vezes uma espécie de vanguarda inspiradora de trabalhadores heroicos e sacrificados, capaz de antecipar o “homem novo” da Espanha da globalização pós-crise.

Assim, o futebol iria se mostrar como espelho da Espanha, mas um espelho mágico de Branca de Neve, no qual uma sociedade pessimista e desmoralizada sempre poderia se redescobrir capaz de singulares proezas ao ativar valores de cooperação, esforço e trabalho. Não por acaso esses valores também coincidem com a linguagem moral com que se profetiza a saída da crise: austeridade, sacrifício, responsabilidade e cortes.
 
Essa fantasia coletiva no contexto dos grandes encontros futebolísticos teria sido densa e previamente preparada em campanhas publicitárias, em marketing de Estado e em discursos políticos. A Energia deLa Roja, por exemplo, foi uma exposição itinerante que contou com o apoio de instituições públicas, organizada pela multinacional energética Iberdrola. A mostra “exalta os valores da seleção espanhola de futebol [...] e conta com a presença da Taça do Mundo”.
Conforme podemos ler no jornal La Crónica de León, “seus responsáveis apelaram ao esforço e à unidade para atingir objetivos como o da superação da crise, ressaltando que esses mesmos valores levaram a seleção a um objetivo que nunca fora alcançado”.
Vale lembrar que não há nada de singularmente espanhol nesse uso ideológico, pois ele responde a um modelo global, articulado em torno da Fifa, que governa as relações entre esporte, economia, publicidade e Estados nacionais. Do mesmo modo, desde que o esporte existe como espetáculo, ele serviu para expressar a superioridade de certos valores.

Essas características do caso peninsular não são, portanto, exclusivas dele. Mas ainda assim chama a atenção que aqui se tenha formulado, nos últimos anos, um particular discurso celebratório das vitórias esportivas como superação imaterial de uma situação de colapso social e econômico.
A recorrência desse tipo de dispositivos histéricos (mais exacerbados quanto maior é a distância entre o imaterial que celebram e o material que sublimam) convida a pensá-los dentro do modelo do nacionalismo quixotesco, mas poderíamos trabalhar com outros modelos semelhantes para os casos português, grego ou argentino, em que a ideia de descompensação organiza a simbolização esportiva.

Nas jornadas da Eurocopa de junho de 2012, esse modelo de nacionalismo-esportivo-especular obteria uma nova articulação institucional, o Alto Comissariado para a Marca Espanha – um órgão patrocinado e comandado pelas multinacionais do Ibex 35 (Iberia Index, principal índice da Bolsa espanhola), destinado à promoção exterior de uma imagem de “marca-país”.

O esporte, especialmente o futebol, teria um papel privilegiado como “o melhor testemunho dos grandes valores que devem prevalecer na sociedade”, conforme declarou Mariano Rajoy. A esse conglomerado midiático-político-moral-corporativo também se associaria a Casa Real, que tem entre seus membros alguns que, no passado, foram representantes olímpicos. Assim, se por um lado o rei Juan Carlos I haveria de outorgar o título nobiliário de marquês Del Bosque ao técnico de La Roja como recompensa por seus serviços imateriais, por outro lado sua filha, a infanta Cristina, e sobretudo seu genro, Urdangarin, estão sendo processados judicialmente por um desvio de recursos públicos que usava como fachada uma sociedade sem fins lucrativos dedicada... ao “fomento social do esporte” e às “sinergias entre turismo e esporte”.

Paralelamente, os movimentos sociais redundaram em protestos que questionam essas relações entre cidadania e esporte, como as bicicríticas ou as maratonas alternativas, que resgatam o formato lúdico perdido. Realizaram-se ações que denunciaram as tentativas de desvirtuar o esporte e outros bens comuns imateriais (como o patrimônio arquitetônico e cultural, a gastronomia, a música, as línguas ou as paisagens...), espetacularizados a serviço de um nacionalismo corporativo do tipo Marca Espanha.

 O que fazer diante de tudo isso? Como se emocionar com as vitórias de uma seleção que, se nos representa, o faz à custa de se subordinar a um esquema que pretende nos convencer de que essa alegria compensa o sofrimento ou a dor do cotidiano? Por outro lado, como vibrar com suas derrotas, se ainda nos reconhecemos na memória coletiva de alegrias anteriores, alegrias potencialmente de todos, de uma felicidade comum? Seria possível pulsar com um duplo coração?

Lembrei-me da preguiça com que alguns de nós começamos a assistir a Eurocopa de 2012, como quem não tem a menor vontade de festejar, e a alegria com que terminamos o campeonato, transportados, apesar de nós mesmos, pela lógica da festa e do seu excesso. Mas agora, na Copa do Mundo, nem sequer houve tempo para especulações ou resistências, porque afinal não houve nenhuma tentação: tudo acabou antes que pudéssemos nos dar conta.
O coração de La Roja
 
Não sei se o destino da seleção na Copa de 2014 era previsível, mas era possível conceituá-lo com a régua do nacionalismo quixotesco. Políticos, atletas e diretores de marketing nos prometiam mais do mesmo: emoção, sacrifício e orgulho, impérios do espírito e do ar. Evocando a derrota do Maracanã em 2013, Del Bosque conclamava um êxtase guerreiro capaz de fundir num só coração a torcida e os jogadores: “A motivação e a emoção são imprescindíveis. Com elas, nosso jogo vai se realizar. Caso contrário, nada feito.”

De todos os fenômenos gerados em torno dessa intoxicação afetiva, cabe lembrar, pela densidade significativa e penetração de seus símbolos, a campanha “Empresta-nos teu coração”, impulsionada pela marca de cerveja Cruzcampo (Heineken). Sob esse slogan, a agência McCann Erickson pôs em prática uma série de ações que incluíam marketing interativo pelo Twitter, anúncios gigantes em locais estratégicos de centros urbanos, presença nos jogos e spots televisivos.

Ao longo do processo de edição deste texto, assisti a um vídeo brasileiro que ilustra o aspecto global das operações simbólicas que configuram nossa relação com o futebol – o anúncio “Batucada”, do banco Itaú, divulgado às vésperas da Copa do Mundo.
Emissários do banco percorreram o país munidos de uma bola equipada com eletrocardiógrafos que captavam os batimentos cardíacos dos torcedores. Lentamente, esses batimentos eram transformados na percussão com que a torcida animava a Seleção Brasileira, dentro e fora dos campos. Uma pluralidade multirrítmica de pulsações substitui a melodia do hino nacional bem no início do torneio, e é isso o que os jogadores escutam: os tambores-corações de seu povo, a verdadeira música da nação.

O vídeo que abre a campanha da Cruzcampo não tem a mesma poesia, mas a fantasia que o anima é igualmente inquietante. Começa confrontando-nos com a preocupação dos jogadores espanhóis, tanto pelo pouco entusiasmo popular em relação à Copa do Mundo, como pelo fato (econômico) de que poucos torcedores poderão arcar com o custo dos ingressos e da viagem para assistir aos jogos. Esse último certamente não é novo, deve ter ocorrido na Copa da África do Sul, mas a novidade é que agora os excluídos ocupam um lugar central: a Copa do Brasil é negada aos torcedores.

É aí que os jogadores concebem a seguinte ideia: se a torcida não pode estar nos estádios, ela pode ser representada corporativamente, isto é, por meio de um órgão de representação. A metáfora escolhida para essa mediação corporal carece da sofisticação tecnológica do banco Itaú: trata-se, aqui, de um macrocoração de vários metros, feito de retalhos de tecido, com o qual o país pulsará em uníssono (#AsiLateEspaña).
Para confeccioná-lo, os jogadores propõem aos torcedores que recortem os escudos de suas próprias camisetas da seleção (preço oficial em torno de 45 euros). Esses escudos devem ser expedidos a uma espécie de ateliê das fadas, onde costureiras e outros trabalhadores fabricam “voluntariamente” o megacoração, cujo múltiplo palpitar resume e reunifica a pulsação de todos os torcedores e de todos os espanhóis (“Quarenta e seis milhões de batimentos”). Tremendo objeto foi realizado, materialmente, e foi realmente entregue à seleção num amistoso às vésperas da Copa, em Sevilha, com o propósito de que fosse exibido nos gramados brasileiros.

No anúncio, as imagens são inquietantes: os jogadores perseguem os torcedores e pedem que lhes deixem extrair seu coração. Não é um problema de simpatias esportivas: as vítimas aparecem totalmente identificadas com a seleção – bandeiras, cachecóis, cores –, mas resistem ao transplante forçado, chegando a se defender com violência. Acabam por consentir, sujeitando à “causa” de La Roja seus amores, suas amizades, todo valor que nasce dos laços comuns com os outros.
Desprovidos de coração, sua própria sobrevivência como pessoas deixa de ser uma questão que lhes diga respeito. Tudo isso é aceito, sem mais. Há somente um torcedor que faz uma pergunta política: “Mas o que eu ganho em troca?” A resposta confirma que se trata de um investimento de alto risco, tipicamente quixotesco, pois o coração – real – fica em jogo, no presente, em troca da promessa futura de um ganho imaterial: “Prometemos dar tudo, para devolver teu coração com mais uma estrela.”
 
Essa mitologia cardíaca está associada ao mundo do futebol. Contudo, sua implementação aqui remete ao discurso do nacionalismo quixotesco, sempre destacando que, apesar de sua dívida externa, a Espanha continua sendo líder mundial em transplantes de órgãos e em doação de sangue. Numa manchete do El Mundo, lê-se “A Organização de Transplantes, embaixatriz da Marca Espanha”. Ao associar os transplantes à política do governo e aos interesses publicitários das multinacionais, desviam-se para o nacionalismo corporativo elementos que até agora eram concebidos como parte de uma riqueza comum, a famosa “qualidade de vida” espanhola em que os cidadãos acreditam, apesar da crise.

Como mostra o filme Tudo sobre Minha Mãe, de Pedro Almodóvar, a abundância de transplantes cardíacos faz parte dessa boa vida, é um sintoma de saúde moral da sociedade espanhola. No entanto, o número de transplantes tem respaldo não só num programa médico exemplar, que cresceu nos anos 80 ao amparo do sistema público de saúde, como numa rede de poderosos laços de solidariedade entre uma população disposta a oferecer os órgãos de seus mortos em troca de manter esse intercâmbio a salvo do dinheiro, como quem diz: Com nossos corpos, salvamos a vida de estranhos, porque os outros são como nós, e porque realmente acreditamos nisso; podemos produzir, todos juntos, um valor que ninguém pode nos tirar.

A doação de órgãos e de sangue é um elemento básico de uma solidariedade horizontal inscrita no campo biológico. Nosso corpo não é nosso, e sim das circunstâncias biopolíticas que permitem ou não sua sobrevivência, dos laços coletivos que o fazem viver, ou morrer, num dado momento, em dada sociedade.
Os órgãos doados, o sangue entregue de graça, transformam-se assim em poderosos símbolos mobilizadores da chamada Maré Branca – movimento nascido em 2012 em defesa do sistema público de saúde, que no final de 2013 impediu a privatização dos hospitais madrilenhos. Dentro dessa mesma lógica da interdependência, a imagem do coração incorporou-se às linguagens de protesto como órgão da imaginação política.
Assim, em maio de 2011, os indignados proclamaram que “a revolução que agora corre livre pelas ruas já estava no nosso coração”. Hoje as vidraças das lojas que sofreram despejo são cobertas de corações para devolvê-las ao espaço urbano do comum.

Interdependência, laços de solidariedade e privatização das instituições necessárias para a sobrevivência comum: é esse o campo político em que os jogadores de La Rojapedem que arranquemos nosso coração. Esse pedido não está solto no ar: ao longo de 2013, movimentos sociais se opuseram a investidas que buscavam tirar proveito de vínculos entre os cidadãos, como a privatização de bancos de sangue.
O anúncio da Cruzcampo implica, no plano simbólico, uma ameaça análoga: pretende converter o valor que nasce dos laços coletivos (amores, sentimentos...) num fundo de investimentos; pretende com eles gerar um capital que a seleção usará para especular (a estrela).
No interior da nação-bola-coração se transferem e espetacularizam as emoções e, com elas, a soberania política emanada do entusiasmo horizontal. Esses atletas propõem que entreguemos nossos corações como na democracia liberal se entregam os votos: até as próximas eleições.
 
A lógica de representação do macrocoração de La Roja é a mesma da relíquia católica: transfere, combinando, o material no espiritual. Encarna (compartilha a matéria) na medida em que representa (convoca os espíritos). Pode ainda evocar a memória de outros Sagrados Corações que encerram esse mesmo sentido de representação, expropriação e disciplina: aqueles de que o nacional-catolicismo espanhol se serviu desde o início do século passado, ou os que o fascismo se apropriou durante a guerra civil.

Como possibilidade formal, como estranha criatura, esse coração gigante dialoga com outros órgãos monstruosos que, há dois anos, cobrem as paredes do Centro de Madri. São os corações brutalistas pintados pelo Rei da Ruína, um dos grafiteiros que hoje registra a estética da crise com spray. “Reino é ruína ao contrário”, diz, e é por isso que ele assina suas obras com uma coroa invertida ao lado do nome.
O centro das estruturas brancas e avermelhadas que ele pinta, de 1 ou 2 metros, em forma de coração, é cheio de slogans ligados à crise (“27% de desemprego, e não para de crescer”, “Problemas para todos”, “This was your town”, “Aproveite a crise”, “Trabalhar é coisa de pobre, seja um bom rei”).

Os oráculos desses macrocorações envolvem seu leitor: extraídos do labirinto de artérias onde deveriam pulsar, sua exposição pública – de coração aberto – fala da nossa interdependência como cidadãos e de uma vida em comum que está se perdendo, de uns órgãos que hoje já não têm corpo coletivo, porque dele foram extraídos. Em tempos de crise, os emblemas do Rei da Ruína representam “o coração da cidade”.
 
Para alguns teóricos da monarquia absoluta, o rei tinha dois corpos: seu próprio corpo físico e um corpo político que representava simbolicamente os corpos de todos os seus súditos. Essa representação se realizava por meio de uma instituição imaginária intermediária, um corpo místico (único, eterno, imaterial, indivisível), a nação com a salvaguarda divina.
O caudilhismo de Estado implementa essa tradição religiosa, e foi o que fez o franquismo e seu “Estado autoritário e corporativo”, em que o corpo do ditador encarnaria os corpos de todos os espanhóis, ambos unidos misticamente na ideia da Espanha.

A coroação de Juan Carlos I cumpriu ritualmente com essa tradição, sendo o corpo político do soberano morto (nesse caso, o ditador Franco) transferido ao corpo do herdeiro por meio de um rito. Na democracia pós-franquista, devido à natureza do processo de transição, desde bem cedo o corpo do rei se subtraiu da órbita teológica do nacional-catolicismo. Ele ofereceu uma versão secularizada desse mesmo culto, identificado misticamente com a democracia e com o texto constitucional de 1978, numa estratégia de dissimulação útil perante uma população majoritariamente antifranquista.

Desde então, a monarquia como instituição só conseguirá incorporar-se à nação por meio de instâncias simbólicas interpostas, sendo a seleção de futebol a mais notória. Por isso não é de se estranhar que, durante a sucessão dinástica atual, La Roja se apresentasse como um espaço natural de transferências. Em seu interior, Felipe VI poderia herdar o corpo político que seu pai encarnava.

Porque, já é hora de dizer, o coração que os jogadores de La Roja pedem que arranquemos do peito corresponde exatamente ao brasão monárquico da camiseta oficial da seleção. Não é uma metáfora, é uma relíquia: a parte do tecido que cobre o coração dos jogadores traz o emblema oficial da coroa da Espanha, tal como estabelecido pela Constituição. Graças ao futebol, nosso coração é do rei.
 
Abdicar do real
 
A crer nos organizadores da campanha da cerveja, cerca de 100 mil torcedores participaram dela. A estrutura de pulsações em torno da seleção não parece ter ativado grandes energias nacionais, mesmo que fosse apenas pela breve passagem de La Roja pelas terras brasileiras. Mas não foi só por isso: como já disse, essa estrutura de sentimentos vem sendo, há dois anos, constantemente erodida pelo realde uma época histórica (a crise) marcada pelo aumento da pobreza, da tristeza e da morte. Mas seria um erro pensar que a derrota da seleção representa o fim da máquina nacional-quixotesca, quando a Holanda, terra dos moinhos, teria enfim lançado por terra o gigantismo negacionista da Marca Espanha.
Quem dera fosse assim. Hoje, graças a Lacan, sabemos que, no terreno do fantástico, aquilo que na aparência nega a fantasia é justamente o que mais a confirma – e gigantes e moinhos são mutuamente necessários como parte de um cosmos articulado pelos mesmos desejos de sucesso e de fracasso.

Desse modo, a derrota da seleção não significa apenas o fim desse nacionalismo voluntarista, de transmutação irresponsável do material no imaterial, que nos pede o coração real com que vivemos e com o qual amamos, para que o cedamos gratuitamente sem fazer muitas perguntas em troca de fantásticas estrelas a conquistar. É tambémo momentode outra de suas fases cíclicas, a da experiência da derrocada nacional, narrativa que conta com um teatro histórico e uma coleção de mitos que, desde julho de 2013, os jornalistas já haviam preparado para sacar na primeira oportunidade. A oportunidade, afinal, chegou.

Assim, alguns jornalistas se imaginavam acompanhando a nação no transe de seu luto, ouvindo as últimas palavras, como se pôde ler no El Mundo: “É difícil se perguntar de que serve um ‘Eu te amo’ no leito de morte. Para esta Espanha que nos deixa desconsolados, é só um modo de recordar o que foi, uma miragem de sua grandeza, o brilho do olhar que o tempo não apaga.” Outros se apressavam a argumentar a favor de um novo consenso.

Os comentaristas da derrota – com um olho nas redes do Maracanã e outro no plenário do Congresso, onde na manhã do dia seguinte o novo rei jurava fidelidade à Constituição de 1978 – se empenharam em oferecer o cadáver ainda quente do time como símbolo do difícil transe da nação na hora da abdicação real. Não hesitaram em convocar os fantasmas da guerra civil (“Na Espanha das malditas

Duas Espanhas, quase nada costuma ser o bastante”), o louvor às virtudes da transição para a democracia e a condenação dos críticos do atual sistema (“E uma das Duas Espanhas só olhou para a transição bem-sucedida para procurar seus ‘defeitos’. Este fim de ciclo, esta eliminação, é o momento de glória dessa gente”) – comentários veiculados pelo sensacionalista Marca, fortemente conservador. Essa gente podem ser independentistas bascos ou catalães, republicanos madrilenhos, ativistas do 15-M, ou qualquer desafeto da seleção de futebol.

Assim, paulatinamente surgia entre os comentaristas uma equação exata entre o bom torcedor e o bom espanhol, ambos comprometidos com o bom desenrolar da sucessão monárquica. A transição do franquismo para a democracia, defendida como o maior dos méritos do monarca abdicante, era vinculada às glórias esportivas de La Roja. Mais analogias impossíveis: criticar a seleção por sua derrota é tão injusto como criticar a monarquia por seus escândalos, posturas que reabrem velhas feridas da guerra civil:

“Ante o risco de outra Espanha fraturada, ninguém está a salvo, nem mesmo aqueles que levaram a Espanha a um pedestal, que tampouco terão um adeus em paz. Para sua desgraça e do futebol espanhol, até o legado está sob sério risco. Desfeito o idílio com os artilheiros, surgem as suspeitas. Como o futebol é amnésico, os cainitas se armam até os dentes. [...] La Roja tornou-se durante algum tempo um símbolo ‘vertebrador’. Seis anos de glórias talvez não tenham bastado para erradicar as arcaicas pragas espanholas. Os oportunistas resistiam à espreita e, como simples espectadores de resultados, agora se armam de razões para abrir velhas feridas.”

Nesse comentário do El País, “velhas feridas” e ódio “cainita” – referência ao fratricídio de Caim – são termos claramente associados à Guerra Civil Espanhola e com frequência empregados na última década contra as tentativas de convocar para a esfera pública as memórias da Segunda República derrotada.

No contexto da abdicação de Juan Carlos I, “antiespanhóis” são todos aqueles que se negam a cerrar fileiras com a trajetória do monarca e do treinador, como se fossem um mesmo sujeito. E de fato monarca e treinador foram confundidos com muita facilidade pelos comentaristas esportivos nos últimos dias: “Abdica o marquês Vicente del Bosque” (El Público), “O futuro está salvo, seja qual for o treinador” (Del Bosque), “O rei aposta em seu próprio time” (El País). As loas à figura do monarca abdicante e a seu senso de Estado se confundem com a celebração dos troféus esportivos.

A confiança na nova investidura também serve para falar do futuro de La Roja, expressando um entusiasmo que não economiza nas tintas dramáticas: “Agora a coroa é de espinhos. As feridas, profundas, vão custar a cicatrizar. A mudança se quer necessária. E a renovação, profunda”, como saiu em El Público. Mas, afinal, do que estamos falando? Da monarquia, da seleção de futebol ou das duas? Tanto faz: diante de ambas, cidadãos e espectadores parecem experimentar forte ceticismo. Se, por um lado, aceitam que devam existir, como fatos naturais do mundo, já não acreditam que nem uma nem outra possam ter grande impacto sobre suas próprias vidas.
 
Retornos do real
 
As dinâmicas políticas do último ano reduziram a margem de ação das fantasias nacionalistas. Nos dois últimos anos, proliferaram nas praças as guilhotinas de brinquedo (com funcionamento real e lâminas de mentira); nas televisões, multiplicaram-se os programas com chefs da culinária de vanguarda. Enquanto umas simulam a eclosão de uma revolução republicana, os outros conjuram a fome que aumenta entre a população espanhola. As paredes se cobrem de murais que reproduzem Saturno Devorando um Filho, de Goya, e nos protestos vemos fantasias de zumbis, ídolos de porcos, réstias de chorizos (palavra que designa tanto a linguiça como também os corruptos), além da distribuição de comida promovida pelas cozinhas populares. A crise se inscreve no campo biológico, e sua lógica gastropolítica deixa pouco espaço para as especulações a respeito de macrocorações que pulsam consoante a uma razão coletiva situada longe, muito longe de nós.

Umas semanas antes da Copa do Mundo, a Adidas lançou uma campanha com elementos semelhantes aos da cervejaria Cruzcampo, mas com um inconsciente (geo)político mais afinado com a realidade que hoje vivemos globalmente. Jogadores representativos de diversos países apareciam contra um fundo escuro enquanto em primeiro plano se mostrava um coração de boi – e isso é central – ensanguentado, com a legenda: During the World Cup, I will give my heart to the cause – Durante a Copa do Mundo, darei meu coração pela causa.
Então tudo se esclarecia: se os jogadores espanhóis pediam aos torcedores que lhes emprestassem seu coração, era para não levarem o próprio! A pressão das associações de defesa dos animais, chocadas com a visão de um coração de boi, fez a campanha evaporar.
 
No espaço do futebol como jogo, assim como nas eleições parlamentares, a incerteza ainda é a única grandeza que segue variável nas macronarrativas a que servem suas representações. Por isso, a pressão se volta mais e mais para o controle físico do espaço onde ambos os jogos ainda podem se dar de um modo novo, e onde ainda podem representar o conflito derivado da existência daquilo cujo nome usurpam (chame-se vontade popular, cidadania ou corpos do povo).

Os idealizadores do desfile triunfal do novo monarca haviam imaginado o dia 19 de junho de outro modo. Na primeira parte do ritual, decalque da cerimônia franquista, o monarca saudaria na Plaza de Oriente uma multidão com bandeiras aurirrubras e passearia pelas ruas de Madri num Rolls-Royce aberto, escoltado pela guarda a cavalo, até chegar ao Congresso. Ali seria aclamado rei pelas cortes.

À tarde, multidões monárquicas se juntariam à rapaziada em êxtase pela presumível vitória de La Roja no dia anterior; os afetos devidos ao novo monarca se fundiriam com a pulsação coletiva plebeia celebrando a seleção. Preparou-se um retrato gigante dos novos reis na Plaza Puerta del Sol, que no entanto permaneceu deserta. A onda de nacionalismo quixotesco não chegou à praia.

Em Madri, assim como no Maracanã, batalhões antimotim e diversas barreiras policiais controlavam o acesso dos cidadãos ao espaço da representação. A multidão era previamente selecionada para poder mostrar sua correta adesão, no espaço público, ao ritual que ali se representava.
Os espectadores não tinham o direito de discordar do espetáculo, não tinham o direito de ter seu próprio coração, e assim as manifestações republicanas foram reprimidas e a polícia deteve e neutralizou aqueles que tentaram mostrar as bandeiras republicanas tricolores (com o vermelho, o amarelo e o roxo).
As imagens aéreas transmitidas pela televisão pública deixavam bem à vista o fracasso dessa estratégia: as ruas meio vazias do Centro de Madri e o público escasso. A coroação era um ato pensado e desenhado no teatro urbano da Madri monárquica e pós-franquista, e como tal foi apreciado pelos turistas. Mas longe de transbordar de seu próprio espaço, os habitantes monárquicos ficaram confinados no perímetro de segurança, delimitado, de um lado, pelas forças da ordem pública e, do outro, pelo espaço vazio reservado a uma cidadania que nunca chegou a estar no seu lugar.

O relativo vazio de Puerta del Sol na tarde do dia 19 contrastava com sua absoluta ocupação no dia 2 de junho, quando cheguei dos Estados Unidos para passar o verão na velha Europa. Naquele dia a convocação tinha sido espontânea e simultânea em diversas cidades. Multidões comemoravam a abdicação do rei e pediam um referendo para decidir sobre sua sucessão (“Los Borbones, a las elecciones”). Contraposta à massa disciplinada, disposta em fileiras, que via desfilar seu rei no dia 19, dezessete dias antes uma multidão sem forma nem centro ocupara a praça até transbordá-la.

Não havia estrado, balcão ou palco. Não havia separação entre observadores e representantes: era uma massa contínua que, perante o vermelho e o amarelo, proclamava a vitória do roxo. As pessoas e suas bandeiras tomavam as principais perspectivas da praça; algumas, escalando postes, tentavam repetir instantâneos mitológicos da iconografia do país, correspondentes a 14 de abril de 1931 – o dia da proclamação da Segunda República, mito popular que tomou o imaginário político de muitos, oferecendo-lhes um capital democrático substitutivo para a crise da democracia representativa.

Havia também muitos jovens vestidos com camisetas da seleção de futebol, mas de uma ainda por inventar, pois aquelas camisas esportivas exibiam as cores republicanas. Havia muita gente sem bandeira, pessoas envolvidas no mundo ativista do 15-M, que fez da renúncia aos símbolos políticos explícitos um gesto diferencial de suas novas identidades. Havia bandeiras apócrifas (uma tricolor reduzida à escala de cinzas, por exemplo). E até havia gente com a bandeira aurirrubra, a bandeira oficial da monarquia parlamentar, que sem dúvida havia sido preparada para a Copa do Mundo que se aproximava...

Vi apenas dois sujeitos com a bandeira monarquista, e me chamaram tanto a atenção que até tirei uma foto deles. O que eles estavam fazendo ali? Tinham levado a sério o anúncio da Cruzcampo: arrancaram o coração monárquico de suas bandeiras, e através do orifício do pano podiam-se ver as pessoas chegando pela rua Montera, até transbordar a praça. O brasão constitucional recortado e devolvido era o sinal da devolução de um empréstimo anterior, o coração que a monarquia orgânica, herdada do franquismo, implantara em cada cidadão criado na democracia.

Com essa escassa adesão, alguns cidadãos e torcedores renunciavam a um coração monárquico cuja pulsação não sentiam como própria, por mais que, sem saber, durante anos a tivessem confundido com o pulsar do próprio coração. Desse modo, extirpavam a prótese futebolística, monárquica, nacional que, sem que eles percebessem, se apropriara do seu sentir. Resignavam-se a viver sem ela, em meio às devastadas paisagens de um reino onde a dor e a esperança se organizavam de forma incessante.

08 de julho de 2014
Revista Piauí

Nenhum comentário:

Postar um comentário