Navegar é preciso, viver não é preciso, teria insistido Fernando Pessoa, então se referindo à internet, possivelmente numa postagem do Twitter. Mesmo que não considerasse tuitar mais importante (ou necessário) que viver, Pessoa seria, desconfio, um adicto do Twitter. Não lhe faltavam vocação e embocadura, e seus avatares, diretos e indiretos (@casapessoa, @bookofdisquiet), corroboram diariamente essa predisposição, citando-lhe versos, confissões e aforismos.
Os poetas, sobretudo os concretistas, superam com mais facilidade a limitação dos 140 caracteres. "Irrita-me a felicidade de todos estes homens que não sabem que são infelizes" tem apenas 78 caracteres. E "Sou um doido que estranha a própria alma", quase a metade. Pincei ao acaso esses dois tuítes recentemente psicopostados por Pessoa. Não costumo acompanhar seus avatares, bastante úteis como divulgadores e perpetuadores da obra do poeta, mas sem maiores atrativos para quem o leu na fonte original. Mais curiosidade me despertariam os parodistas e parafrastas do poeta e seus heterônimos, tuitando coisas do tipo "Tuitar é preciso". Ou menos óbvia. "O sol por trás da torre faz a torre incandescente", por exemplo. No original, a lua ocupava o lugar do sol e a torre ficava apenas "diferente".
Tal forma de apropriação, se bem executada, é tiro e queda, desde que o parodiado ou parafraseado não seja um genial frasista como, digamos, Woody Allen ou Millôr. Seu espírito, sim, pode ser emulado, mas não o cerne do seu humor. Melhor encarnar numa figura circunspecta, tornando-a inesperadamente o seu avesso, ou seja, uma persona engraçada, gozadora. Já fizeram isso com Deus (@TweetofGod), a quem sigo sempre, e sempre às gargalhadas.
Esse avatar do Todo Poderoso é uma curtição, especialmente saborosa para agnósticos e ateus. Onipotente, mas confessadamente inseguro, o God do Twitter vive a desmoralizar a teodiceia, não se eximindo das desgraças do mundo e assumindo às escâncaras sua soberba misantropia. "Se cuidar dos outros é crime, eu clamo inocência", tuitou algum tempo atrás. Debochado, revelou só ter inventado a religião pra manter a humanidade longe dele, já definiu suas orações como spams e aconselhou os fiéis "a consultarem outros deuses". Dia desses, comunicou: "Continuo solteiro e adorando".
Meu tuiteiro favorito é um americano do Wisconsin que se passa por alemão e aderiu ao microblog há dois anos. Já postou mais de 30 mil tuítes e amealhou mais de 61 mil seguidores. Eric Jarosinski, professor assistente de alemão da Universidade da Pensilvânia, refugiou-se no Twitter para fugir de um livro sobre a transparência como metáfora na cultura alemã, que se comprometera escrever e não conseguia. Tomara enjoo da linguagem acadêmica, de suas "frases longas, complexas e densas de qualificativos", a ponto de suar em bicas sempre que se sentava diante do computador. Para distrair-se e superar o bloqueio, começou a tuitar a partir do smartphone e deixou o livro a mofar no laptop. Tomou gosto. Se pudesse, só falaria em, no máximo, 140 caracteres, confessou a Jason Fagone, blogueiro da revista The New Yorker.
É uma das vozes mais singulares da tuitolândia: límpida, alusiva, lacônica, irreverente. Verifique por si mesmo em Nein@NeinQuarterly. O trimestral (quarterly) é uma boutade. Jarosinski assume a editoria do que identifica como "um compêndio de negativismo utópico" (ou, quem sabe, de uma utopia negativa), de "circulação" diária. Nein quer dizer não, em alemão. Seu avatar é a caricatura de um tedesco weimariano, de olhar duro e monóculo; ninguém menos que Theodor W. Adorno, sumo pontífice da Escola de Frankfurt, cujas teorias Jarosinski, que às vezes também posta em alemão e em germenglish, conhece de cor e salteado. Por trás de sua ironia cáustica, percebo mais a lâmina do austríaco Karl Kraus.
A proverbial falta de humor dos alemães é um de seus cães malhadiços. Idem o romantismo e as tolices do mundo moderno. Adora gozar Magritte e até a mídia social que lhe deu fama: "Antes do twitter tínhamos a impressão de que estávamos sós. Agora temos certeza". Bom de jogos de palavras e neologismos bilíngues, é dele a expressão "flâneurd", que é como, millorianamente, identifica um sem-teto com Ph.D. em informática.
A seguir, algumas pérolas do negativista Jarosinski:
Faço meus pedidos no Starbucks com o nome de Godot. E vou embora.
A primavera se aproxima. Por favor, não digam nada aos poetas.
A História está chegando ao fim. De novo.
Assim falou Zaratustra com um desconhecido. No ônibus. O cara mudou de assento.
Muitos escritores bebem à beça. Na Alemanha, são os leitores.
Aproveite este belo dia pra pôr sua alienação pra trabalhar.
Arrumando meus livros. Pelos que destruíram minha visão, pelos que destruíram meu futuro e pelos que destruíram minha visão do futuro.
Quanto mais aprendemos sobre política, menos queremos saber. Quanto mais aprendemos sobre ideologia, menos queremos acreditar.
Alguns chamam de decadência cultural. Outros, de tradição.
Vou aproveitar este fim de semana pra terminar aquela palavra em alemão que me gritaram na semana passada.
Twitter e Facebook entram num bar. Facebook vê um amigo e com ele troca uma foto de gato. Twitter sai à cata de um seguidor.
Só pra lembrar que qualquer coisa que você diga sobre Walter Benjamin foi provavelmente melhor dito por Walter Benjamin.
A falta de significado é mais difícil do que se pensa.
Teoria: 50 tons de Marx.
Dialética entra num bar. História sai de fininho. Luta de classes pede mais um chope.
Gin entra num bar. De ressaca. Pede uma tônica.
Magritte entra num cachimbo. Pede um bar.
Às vezes sonho com Roland Barthes. Comemos bife com fritas, vamos a uma luta livre ou a um strip-tease, ficamos apreciando os detergentes. (Este tuíte só é inteligível para quem leu Mitologias, de Barthes)
Hemingway, Joyce, Dorothy Parker, Faulkner e Bukowski entram num bar. Sobra pro Kafka pagar a conta.
Preciso sentar e ler um tuíte do começo ao fim. Dizem que às vezes vale a pena.
Os poetas, sobretudo os concretistas, superam com mais facilidade a limitação dos 140 caracteres. "Irrita-me a felicidade de todos estes homens que não sabem que são infelizes" tem apenas 78 caracteres. E "Sou um doido que estranha a própria alma", quase a metade. Pincei ao acaso esses dois tuítes recentemente psicopostados por Pessoa. Não costumo acompanhar seus avatares, bastante úteis como divulgadores e perpetuadores da obra do poeta, mas sem maiores atrativos para quem o leu na fonte original. Mais curiosidade me despertariam os parodistas e parafrastas do poeta e seus heterônimos, tuitando coisas do tipo "Tuitar é preciso". Ou menos óbvia. "O sol por trás da torre faz a torre incandescente", por exemplo. No original, a lua ocupava o lugar do sol e a torre ficava apenas "diferente".
Tal forma de apropriação, se bem executada, é tiro e queda, desde que o parodiado ou parafraseado não seja um genial frasista como, digamos, Woody Allen ou Millôr. Seu espírito, sim, pode ser emulado, mas não o cerne do seu humor. Melhor encarnar numa figura circunspecta, tornando-a inesperadamente o seu avesso, ou seja, uma persona engraçada, gozadora. Já fizeram isso com Deus (@TweetofGod), a quem sigo sempre, e sempre às gargalhadas.
Esse avatar do Todo Poderoso é uma curtição, especialmente saborosa para agnósticos e ateus. Onipotente, mas confessadamente inseguro, o God do Twitter vive a desmoralizar a teodiceia, não se eximindo das desgraças do mundo e assumindo às escâncaras sua soberba misantropia. "Se cuidar dos outros é crime, eu clamo inocência", tuitou algum tempo atrás. Debochado, revelou só ter inventado a religião pra manter a humanidade longe dele, já definiu suas orações como spams e aconselhou os fiéis "a consultarem outros deuses". Dia desses, comunicou: "Continuo solteiro e adorando".
Meu tuiteiro favorito é um americano do Wisconsin que se passa por alemão e aderiu ao microblog há dois anos. Já postou mais de 30 mil tuítes e amealhou mais de 61 mil seguidores. Eric Jarosinski, professor assistente de alemão da Universidade da Pensilvânia, refugiou-se no Twitter para fugir de um livro sobre a transparência como metáfora na cultura alemã, que se comprometera escrever e não conseguia. Tomara enjoo da linguagem acadêmica, de suas "frases longas, complexas e densas de qualificativos", a ponto de suar em bicas sempre que se sentava diante do computador. Para distrair-se e superar o bloqueio, começou a tuitar a partir do smartphone e deixou o livro a mofar no laptop. Tomou gosto. Se pudesse, só falaria em, no máximo, 140 caracteres, confessou a Jason Fagone, blogueiro da revista The New Yorker.
É uma das vozes mais singulares da tuitolândia: límpida, alusiva, lacônica, irreverente. Verifique por si mesmo em Nein@NeinQuarterly. O trimestral (quarterly) é uma boutade. Jarosinski assume a editoria do que identifica como "um compêndio de negativismo utópico" (ou, quem sabe, de uma utopia negativa), de "circulação" diária. Nein quer dizer não, em alemão. Seu avatar é a caricatura de um tedesco weimariano, de olhar duro e monóculo; ninguém menos que Theodor W. Adorno, sumo pontífice da Escola de Frankfurt, cujas teorias Jarosinski, que às vezes também posta em alemão e em germenglish, conhece de cor e salteado. Por trás de sua ironia cáustica, percebo mais a lâmina do austríaco Karl Kraus.
A proverbial falta de humor dos alemães é um de seus cães malhadiços. Idem o romantismo e as tolices do mundo moderno. Adora gozar Magritte e até a mídia social que lhe deu fama: "Antes do twitter tínhamos a impressão de que estávamos sós. Agora temos certeza". Bom de jogos de palavras e neologismos bilíngues, é dele a expressão "flâneurd", que é como, millorianamente, identifica um sem-teto com Ph.D. em informática.
A seguir, algumas pérolas do negativista Jarosinski:
Faço meus pedidos no Starbucks com o nome de Godot. E vou embora.
A primavera se aproxima. Por favor, não digam nada aos poetas.
A História está chegando ao fim. De novo.
Assim falou Zaratustra com um desconhecido. No ônibus. O cara mudou de assento.
Muitos escritores bebem à beça. Na Alemanha, são os leitores.
Aproveite este belo dia pra pôr sua alienação pra trabalhar.
Arrumando meus livros. Pelos que destruíram minha visão, pelos que destruíram meu futuro e pelos que destruíram minha visão do futuro.
Quanto mais aprendemos sobre política, menos queremos saber. Quanto mais aprendemos sobre ideologia, menos queremos acreditar.
Alguns chamam de decadência cultural. Outros, de tradição.
Vou aproveitar este fim de semana pra terminar aquela palavra em alemão que me gritaram na semana passada.
Twitter e Facebook entram num bar. Facebook vê um amigo e com ele troca uma foto de gato. Twitter sai à cata de um seguidor.
Só pra lembrar que qualquer coisa que você diga sobre Walter Benjamin foi provavelmente melhor dito por Walter Benjamin.
A falta de significado é mais difícil do que se pensa.
Teoria: 50 tons de Marx.
Dialética entra num bar. História sai de fininho. Luta de classes pede mais um chope.
Gin entra num bar. De ressaca. Pede uma tônica.
Magritte entra num cachimbo. Pede um bar.
Às vezes sonho com Roland Barthes. Comemos bife com fritas, vamos a uma luta livre ou a um strip-tease, ficamos apreciando os detergentes. (Este tuíte só é inteligível para quem leu Mitologias, de Barthes)
Hemingway, Joyce, Dorothy Parker, Faulkner e Bukowski entram num bar. Sobra pro Kafka pagar a conta.
Preciso sentar e ler um tuíte do começo ao fim. Dizem que às vezes vale a pena.
08 de março de 2014
Sérgio Augusto, O Estado de S. Paulo
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