“O Putin tem cara de Guerra Fria”, escreveu nesta sexta o humorista José Simão, na Folha de S. Paulo. A frase lembra a genial tirada de Woody Allen: “Toda vez que ouço Wagner tenho vontade de invadir a Polônia”. Há fisionomistas que discordam do diagnóstico: Putin teria mais semelhança com os sanguinários boiardos mostrados por Eisenstein em Ivan, o Terrível.
Quaisquer que sejam os paradigmas psicofaciais do czar russo, a verdade é que a imprensa ocidental não está ajudando a baixar as tensões numa zona de atrito historicamente classificada como barril de pólvora. A Ucrânia foi campo de batalha entre os impérios austro-húngaro e russo na Primeira Guerra (1914-1918); durante os confrontos que se seguiram à Revolução Comunista em 1917, nas suas estepes enfrentaram-se os exércitos vermelho e branco. E, quando Hitler invadiu o território russo em 1941, foi nesta mesma Ucrânia que a colaboração dos fascistas locais com os nazistas alemães foi mais intensa.
O passado encharcado de sangue resultou numa nação algo ambidestra e esquizofrênica. Mas também multiétnica, multicultural e multilíngue. Não muito diferente da Alsácia, entre a França e Alemanha, nos séculos 19 e 20. Um ponto de discórdia pode ser convertido em ponto de convergência: basta que as leis da dinâmica se sobreponham às do determinismo.
É compreensiva, legítima, a fascinação dos rebeldes ucranianos pela União Europeia. Mas não poderia ser exacerbada a ponto de converter o país numa trincheira antirrussa. Era essa a essência do acordo assumido entre negociadores europeus, rebeldes e o governo Yanukovich. Um cronograma foi estabelecido para antecipar eleições e distensionar o ambiente. Durou apenas 48 horas: um golpe legislativo levou tudo para a estaca zero e ainda radicalizou a exaltação nacionalista, levando alguns grupos a desafiar o domínio militar russo no Território Autônomo da Crimeia. Provocação pueril: equivaleria a validar uma tentativa cubana de desalojar os americanos de Guantánamo.
Ações políticas num mundo interdependente, globalizado, exigem um pouco mais de sangue frio, prudência. Sobretudo, atenção à realpolitik. Isto é: aos interesses contrariados. Não confundir com apaziguamento ou capitulação. Trazer de volta a postura covarde do premiê Chamberlain, curvando-se em 1938 ao diktat de Hitler, é recurso falacioso.
Vladimir Putin – qualquer que seja a nossa reação diante da sua imagem e currículo – já está suficientemente ameaçado na Síria. Encurralá-lo ainda mais na mesma região – o espaço mediterrâneo – é insensato. Não se pisa no mesmo calo da acompanhante na dança. Arrisca-se a receber uma canelada instintiva.
Henry Kissinger, em artigo reproduzido nesta mesma sexta, no Estadão, adverte para o perigo da demonização de Putin e lembra, de passagem, a Finlândia como exemplo bem-sucedido de racionalidade. Evitou o substantivo “finlandização”, inventado pelos alemães no pós-guerra com conotações pejorativas para os nacionalistas finlandeses e os exaltados de todos os quadrantes. Não lembrou que Harry Truman poderia ter evitado a Guerra da Coreia, em 1950, se a península fosse finlandizada. Acabará sendo, para a felicidade das suas partes.
Para a maioria dos brasileiros – exceto jogadores de futebol –, a Ucrânia é longe; a Finlândia, mais ainda. Mas a finlandização (como a trégua) pode esvaziar conflitos e preparar entendimentos.
Quaisquer que sejam os paradigmas psicofaciais do czar russo, a verdade é que a imprensa ocidental não está ajudando a baixar as tensões numa zona de atrito historicamente classificada como barril de pólvora. A Ucrânia foi campo de batalha entre os impérios austro-húngaro e russo na Primeira Guerra (1914-1918); durante os confrontos que se seguiram à Revolução Comunista em 1917, nas suas estepes enfrentaram-se os exércitos vermelho e branco. E, quando Hitler invadiu o território russo em 1941, foi nesta mesma Ucrânia que a colaboração dos fascistas locais com os nazistas alemães foi mais intensa.
O passado encharcado de sangue resultou numa nação algo ambidestra e esquizofrênica. Mas também multiétnica, multicultural e multilíngue. Não muito diferente da Alsácia, entre a França e Alemanha, nos séculos 19 e 20. Um ponto de discórdia pode ser convertido em ponto de convergência: basta que as leis da dinâmica se sobreponham às do determinismo.
É compreensiva, legítima, a fascinação dos rebeldes ucranianos pela União Europeia. Mas não poderia ser exacerbada a ponto de converter o país numa trincheira antirrussa. Era essa a essência do acordo assumido entre negociadores europeus, rebeldes e o governo Yanukovich. Um cronograma foi estabelecido para antecipar eleições e distensionar o ambiente. Durou apenas 48 horas: um golpe legislativo levou tudo para a estaca zero e ainda radicalizou a exaltação nacionalista, levando alguns grupos a desafiar o domínio militar russo no Território Autônomo da Crimeia. Provocação pueril: equivaleria a validar uma tentativa cubana de desalojar os americanos de Guantánamo.
Ações políticas num mundo interdependente, globalizado, exigem um pouco mais de sangue frio, prudência. Sobretudo, atenção à realpolitik. Isto é: aos interesses contrariados. Não confundir com apaziguamento ou capitulação. Trazer de volta a postura covarde do premiê Chamberlain, curvando-se em 1938 ao diktat de Hitler, é recurso falacioso.
Vladimir Putin – qualquer que seja a nossa reação diante da sua imagem e currículo – já está suficientemente ameaçado na Síria. Encurralá-lo ainda mais na mesma região – o espaço mediterrâneo – é insensato. Não se pisa no mesmo calo da acompanhante na dança. Arrisca-se a receber uma canelada instintiva.
Henry Kissinger, em artigo reproduzido nesta mesma sexta, no Estadão, adverte para o perigo da demonização de Putin e lembra, de passagem, a Finlândia como exemplo bem-sucedido de racionalidade. Evitou o substantivo “finlandização”, inventado pelos alemães no pós-guerra com conotações pejorativas para os nacionalistas finlandeses e os exaltados de todos os quadrantes. Não lembrou que Harry Truman poderia ter evitado a Guerra da Coreia, em 1950, se a península fosse finlandizada. Acabará sendo, para a felicidade das suas partes.
Para a maioria dos brasileiros – exceto jogadores de futebol –, a Ucrânia é longe; a Finlândia, mais ainda. Mas a finlandização (como a trégua) pode esvaziar conflitos e preparar entendimentos.
08 de março de 2014
Alberto Dines, Gazeta do Povo, PR
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