Ao que tudo indica, é a partir da região mais russa da Ucrânia que pode começar o colapso do Estado ucraniano.
O jornal russo “Vzgliad” tentou entender quais as chances de a Crimeia permanecer como parte do território ucraniano.
Até 1944, a Crimeia era considerada um território russo-tártaro. Nesse período foi, contudo, duas vezes conquistada pelos alemães (1918 e 1941-1944), mas no final a Crimeia acabou voltando para as mãos da Rússia soviética. O poder central apadrinhou os tártaros e a península recebeu o estatuto de república autônoma.
O problema é que, depois da ocupação alemã e do colaboracionismo tártaro, os soviéticos decidiram deportá-los para o leste. Em 1954, a Crimeia foi privada do estatuto de autonomia e anexada à Ucrânia.
A data coincidiu com o 300º aniversário da Rada Pereiaslavska (Conselho de Pereiaslav), que decretara a união da Ucrânia com a Rússia, mas a razão verdadeira para a mudança era o fato de ser mais fácil de governar Crimeia a partir de Kiev do que de Moscou.
Nos anos 1990, a Crimeia e os territórios em torno dela viveram em graves movimentos de descontentamento. A então já independente Ucrânia tentava “ucranizar” a Crimeia, o que viria a provocar a resistência da população local.
Depois de obterem o direito de voltar, os tártaros também intensificaram o seu movimento e tentarem usar o caos instalado para recuperar as terras e privilégios anteriormente perdidos. A gota d’água se tornou a disputa por Sevastopol, a base da Marinha soviética na Crimeia.
Como resultado, a Crimeia não se separou da Ucrânia, mas recebeu direitos especiais, tornando-se, assim, a única região do país a gozar do estatuto de república autônoma. Na prática, a Crimeia recebeu autorização de permanecer russa, tendo as autoridades centrais se limitado apenas a trocar as placas dos nomes de algumas ruas. Anos se passaram e tudo parecia estar resolvido – até eclodir a chamada “euromaidan”.
DIREITO À RESPOSTA
Em primeiro lugar, a situação deve ser analisado sob dois pontos de vista importantes. O primeiro é etnocultural, e o segundo, econômico.
A Crimeia é a região mais russa da Ucrânia: a população local é composta por 58% de russos, 24% de ucranianos e 12% de tártaros. Paralelamente, a língua russa é considerada nativa para três quartos dos naturais da região, e apenas um décimo da população fala ucraniano. De acordo com o Instituto Internacional de Sociologia de Kiev, 97% da população local usa o russo para comunicação.
Além disso, a Crimeia praticamente não tem uma elite econômica própria, já que, nos anos da independência da Ucrânia, ela acabou sendo dispersada. Na segunda metade da década de 1990, os oligarcas ucranianos se interessam pelos resorts da Crimeia, começaram a investir na região, mas o dinheiro injetado era de terceiros. Por isso, a elite da Crimeia não tem os mesmos freios que fazem a elite de Donetsk e de Dnepropetrovsk serem tão maleáveis quando a UE ou os EUA entram em jogo.
Devido a esses dois fatores, a Crimeia não pôde ficar indiferente ao que vem ocorrendo em Kiev. Primeiro veio a insatisfação, depois, a exigência para que a ordem fosse restaurada. Mas o agravamento da situação, que começou precisamente com o aniversário da Rada de Pereiaslavsk (360 anos) e a transferência da Crimeia para a Ucrânia (60 anos), causou uma resposta oficial.
SEPARAÇÃO
Na quarta-feira passada (19), o Conselho Supremo da República Autônoma da Crimeia (RAC) informou os deputados da Duma (câmara dos deputados na Rússia) que “a Crimeia iria considerar a questão de se separar da Ucrânia caso houvesse mudança da autoridade legítima”, apesar de ressalvar que, até o momento, a questão não estava ainda sendo discutida.
Mas fato é que as graves consequências econômicas da instabilidade nacional são latentes na região. Os moradores da Crimeia mostraram incômodo em relação aos nacionalistas ucranianos que “caíram de paraquedas”, bem como com o regresso dos policiais feridos na Praça da Independência.
Diante dos últimos desenvolvimentos no país, os observadores acreditam em dois desfechos para o território da Crimeia.
O primeiro deles é o aumento da autonomia da Crimeia, opção que será possível se houver alguma estabilidade entre o novo poder e os manifestantes – mas que depende de as partes concordarem com a federalização da Ucrânia.
Outra saída é a Crimeia deixar de fazer parte da Ucrânia e se tornar mais um “Estado não reconhecido” sob os auspícios da Rússia. Nesse caso, Kiev não conseguiria impedir o movimento por meio de força, pois, mesmo com um novo poder, a Ucrânia não tem suas próprias forças armadas nem alavancas econômicas devido à crise. Isso também resultaria em um novo conflito interno na península entre russos e tártaros.
(artigo enviado por Ricardo Sales)
26 de fevereiro de 2014
Iúri Guirenko
Do jornal Vzgliad
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