O serviço de táxi é uma concessão pública, mas o Congresso e a presidente Dilma Rousseff acabam de transformá-lo em propriedade privada, afrontando a Constituição.
O Senado aprovou e Dilma sancionou o texto de uma medida provisória que permite a transmissão, por herança, de licenças de taxistas do titular para cônjuges e seus filhos. Isso significa que a concessão se tornou um bem particular, cuja exploração não depende de licitação e, sim, de relação familiar.
Algo tão despropositado só poderia ter sido aprovado como parte de uma medida provisória (MP) que, originalmente, nada tinha a ver com o tema. Trata-se da MP 615, editada por Dilma em 17 de maio para conceder subvenção a produtores de cana-de-açúcar prejudicados pela seca no Nordeste.
Diversos penduricalhos foram inseridos na MP pelos parlamentares, muitos com o aval de Dilma. Além da questão da exploração de serviço de táxi, entraram nesse bonde emendas para permitir que agentes penitenciários portem armas de fogo fora de serviço, para reabrir o prazo de renegociação de dívidas de empresas com a Receita e para regularizar terras ocupadas por templos no Distrito Federal, entre outros temas. Como disse o presidente da Câmara, Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), essa aberração "expôs o desvirtuamento do processo legislativo".
Algo com essa natureza só poderia resultar em um absurdo jurídico como a concessão hereditária de licença para operar táxis.
Em primeiro lugar, o serviço de táxi é assunto municipal, e não da União. Essa, aliás, foi a razão pela qual Dilma havia vetado iniciativas semelhantes apresentadas em outras duas ocasiões.
Agora, porém, a presidente não só mudou de ideia, como aproveitou o ensejo para transformar em ato de palanque a cerimônia em que sancionou a medida, em Brasília.
Diante de uma plateia de taxistas, que há tempos são considerados bons cabos eleitorais, a presidente exaltou o trabalho desses profissionais como se estivesse num comício: "Quantas crianças não nasceram num táxi neste país afora? Quantas pessoas não foram socorridas por um de vocês? Quantas mães não dependem de um taxista?".
Dilma tratou logo de dizer que "não é possível haver questionamento de nenhuma ordem" à medida sancionada, ainda que ela mesma tenha vetado tentativas anteriores de aprová-la justamente por causa de dúvidas legais.
Para a presidente, a hereditariedade da licença de táxi "não é uma transferência de permissão, é um direito de sucessão". Essa distorção está garantida no artigo da lei aprovada que prevê que o direito à exploração do serviço "será transferido a seus sucessores legítimos", segundo o direito das sucessões no Código Civil, em seu artigo 1.829.
Em setembro, quando a MP passou na Câmara, o deputado Francisco Escórcio (PMDB-MA), um dos principais articuladores de sua aprovação, disse que "as famílias dos taxistas terão mais tranquilidade, pois a concessão, da maneira que aprovamos, é quase que um bem familiar". A própria Dilma referiu-se à concessão como um "patrimônio" do taxista e de seus familiares.
A prevalecer tal interpretação, todo concessionário de serviço público poderá legar a permissão a seus descendentes, como se fosse um título de nobreza. Isso, é óbvio, colide com o artigo 175 da Constituição, que diz que a prestação de serviços públicos pode ser feita por meio de concessão, mas "sempre através de licitação".
Para um governo que vem se habituando a maquiar suas contas e a contornar obrigações legais, tais ressalvas são irrelevantes. O que importa é faturar politicamente em cima de uma antiga reivindicação dos taxistas, algo a que a presidente se referiu em seu discurso ao mencionar a "insegurança" das famílias dos motoristas quando estes falecem - como se essa insegurança fosse uma exclusividade das famílias dos taxistas.
Mais uma vez, o governo e o Congresso, movidos por demagogia, confundem o público e o privado, criando privilégios inaceitáveis.
15 de outubro de 2013
Editorial do Estadão
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