Há dois casos de embustes pretensamente científicos que adoro contar e recontar. O primeiro até que não é grave, foi uma colossal barriga da maior revista nacional. O segundo já tem mais seriedade: foi publicado na mais prestigiosa revista científica britânica.
Em 1983, a Veja endossou como verdade científica uma brincadeira de 1º de abril, lançada pela revista inglesa New Science. Tratava-se de uma nova conquista científica, um fruto de carne, derivado da fusão da carne do boi e do tomate, que recebeu o nome de boimate. Se a editoria de ciências de Veja visse esta notícia num jornal brasileiro, evidentemente ficaria com um pé atrás. Para a revista, a experiência dos pesquisadores alemães permitia "sonhar com um tomate do qual já se colha algo parecido com um filé ao molho de tomate. E abre uma nova fronteira científica".
Isso que a New Science dava uma série de pistas para evidenciar a piada: os biólogos Barry McDonald e William Wimpey tinham esses nomes para lembrar as cadeias internacionais de alimentação McDonald´s e Wimpy´s. A Universidade de Hamburgo, palco do "grande fato", foi citada para que pudesse ser cotejada com hamburguer. Os alertas de nada adiantaram. Como se tratava de uma prestigiosa publicação européia, a Veja embarcou com entusiasmo na piada. Eurípedes Alcântara, o jornalista que redigiu a notícia, foi promovido a diretor de redação por seu feito.
Em 1988, foi a vez de uma prestigiosa revista científica de língua inglesa, a Nature, cair em barriga semelhante. Desta vez, a barriga não decorria de uma piada, mas de um embuste mesmo. Jacques Benveniste, doutor em medicina e diretor de pesquisas do Inserm, na França, criou a exótica teoria da memória da água. Isto é, a água conservaria na memória as moléculas de base com as quais havia sido colocada anteriormente em contato.
A quem interessava o crime? Aos homeopatas, que se regozijaram ao supor que finalmente tinham a prova indiscutível de que a homeopatia era ciência. A memória da água fez longa carreira, mobilizou prêmios Nobel e laboratórios na Europa toda. O sóbrio Le Monde caiu como um patinho recém-emplumado, concedendo várias páginas ao embuste.
Ou seja, basta citar um autor desconhecido, que escreva em língua pouco conhecida, e editor nenhum irá checar o autor. Caso recente comprova que tais recursos passam facilmente nas publicações científicas.
Leio nos jornais que, em artigo publicado nesta sexta-feira na Science Magazine, o americano John Bohannon mostra o que aconteceu quando ele enviou para 304 revistas científicas um artigo sem pé nem cabeça: 157 delas aceitaram.
O trabalho de Bohannon, assinado por um fictício autor de nome estapafúrdio - Ocorrafoo Cobange -, versava sobre uma molécula que, extraída de um líquen (simbiose de alga e um fungo como o cogumelo), teria o superpoder de combater o câncer. Não bastasse o autor ser inexistente, sua universidade também está para ser encontrada no mundo real: o Wassee Institute of Medicine, sediado em Asmara, é produto da imaginação de Bohannon.
- De um início modesto e idealista uma década atrás, revistas científicas de acesso aberto se expandiram a uma indústria global, movida por taxas para publicação em vez de inscrições tradicionais - afirma Bohannon.
Segundo o americano, era de se esperar que uma publicação como o Journal of Natural Pharmaceuticals, editado por professores de universidades do mundo inteiro, conduzisse revisões criteriosas. A revista é uma entre mais de 270 publicações sob o guarda-chuva da Medknow, empresa indiana que se anuncia como o nome por trás de mais de 2 milhões de artigos baixados a cada mês por pesquisadores. A Medknow, diz Bohannon, foi comprada em 2011 pela multinacional holandesa Wolters Kluwer. Ela pediu a Cobange apenas "mudanças superficiais" no artigo antes de publicá-lo.
O artigo foi aceito por instituições acadêmicas de prestígio como a Universidade de Kobe, no Japão, e até por revistas que sequer tratavam do tema, como o Journal of Experimental & Clinical Assisted Reproduction, pautado por estudos na área de reprodução assistida.
Bohannon afirma que apenas a revista da Biblioteca Pública de Ciências, a PLoS One, chamou atenção para os potenciais problemas éticos do artigo, como a falta de documentação sobre o tratamento a animais que teriam gerado células para o experimento de Cobange. A publicação foi uma das que rejeitou o artigo.
Confesso que, em escala menor, fiz brincadeira semelhante. Em meus dias de UFSC, em um ensaio sobre o zdanovismo, elaborado para concorrer à cadeira de Literatura Brasileira, decidi me divertir com a banca. Lá pelas tantas, para justificar minha bibliografia, tasquei: “Como dizia Kaysa Varg, man tager vad man haver”.
Isto é sueco antigo, erudito, o mesmo usado na Bíblia. Hoje em dia, se diria: man tar vad man har. Que significa, singelamente: a gente pega o que a gente tem.
Um dos membros do júri, demonstrando notável erudição, percebeu que se tratava de um teórico escandinavo. E mais não disse. Desonesto não fui. O autor – uma escritora, no caso – de fato existia. Como também havia escrito a frase. Só que Kaysa Varg era autora de livros de culinária. Enfim, apesar da autora, a citação não deixava de ser procedente.
Claro que não passei no concurso, apesar de ter lecionado Literatura Brasileira, por quatro anos, na graduação e pós-graduação. Sem falar que era candidato único. Mas não por minha piada, que passou batido. Ocorre que a vaga não era minha.
Quantos casos semelhantes ocorrerão nos milhares – senão milhões – de teses aprovadas por bancas universitárias e artigos publicados em revistas científicas? Remember affaire Sokal. Embuste na ciência virou algo corriqueiro.
07 de outubro de 2013
janer cristaldo
Em 1983, a Veja endossou como verdade científica uma brincadeira de 1º de abril, lançada pela revista inglesa New Science. Tratava-se de uma nova conquista científica, um fruto de carne, derivado da fusão da carne do boi e do tomate, que recebeu o nome de boimate. Se a editoria de ciências de Veja visse esta notícia num jornal brasileiro, evidentemente ficaria com um pé atrás. Para a revista, a experiência dos pesquisadores alemães permitia "sonhar com um tomate do qual já se colha algo parecido com um filé ao molho de tomate. E abre uma nova fronteira científica".
Isso que a New Science dava uma série de pistas para evidenciar a piada: os biólogos Barry McDonald e William Wimpey tinham esses nomes para lembrar as cadeias internacionais de alimentação McDonald´s e Wimpy´s. A Universidade de Hamburgo, palco do "grande fato", foi citada para que pudesse ser cotejada com hamburguer. Os alertas de nada adiantaram. Como se tratava de uma prestigiosa publicação européia, a Veja embarcou com entusiasmo na piada. Eurípedes Alcântara, o jornalista que redigiu a notícia, foi promovido a diretor de redação por seu feito.
Em 1988, foi a vez de uma prestigiosa revista científica de língua inglesa, a Nature, cair em barriga semelhante. Desta vez, a barriga não decorria de uma piada, mas de um embuste mesmo. Jacques Benveniste, doutor em medicina e diretor de pesquisas do Inserm, na França, criou a exótica teoria da memória da água. Isto é, a água conservaria na memória as moléculas de base com as quais havia sido colocada anteriormente em contato.
A quem interessava o crime? Aos homeopatas, que se regozijaram ao supor que finalmente tinham a prova indiscutível de que a homeopatia era ciência. A memória da água fez longa carreira, mobilizou prêmios Nobel e laboratórios na Europa toda. O sóbrio Le Monde caiu como um patinho recém-emplumado, concedendo várias páginas ao embuste.
Ou seja, basta citar um autor desconhecido, que escreva em língua pouco conhecida, e editor nenhum irá checar o autor. Caso recente comprova que tais recursos passam facilmente nas publicações científicas.
Leio nos jornais que, em artigo publicado nesta sexta-feira na Science Magazine, o americano John Bohannon mostra o que aconteceu quando ele enviou para 304 revistas científicas um artigo sem pé nem cabeça: 157 delas aceitaram.
O trabalho de Bohannon, assinado por um fictício autor de nome estapafúrdio - Ocorrafoo Cobange -, versava sobre uma molécula que, extraída de um líquen (simbiose de alga e um fungo como o cogumelo), teria o superpoder de combater o câncer. Não bastasse o autor ser inexistente, sua universidade também está para ser encontrada no mundo real: o Wassee Institute of Medicine, sediado em Asmara, é produto da imaginação de Bohannon.
- De um início modesto e idealista uma década atrás, revistas científicas de acesso aberto se expandiram a uma indústria global, movida por taxas para publicação em vez de inscrições tradicionais - afirma Bohannon.
Segundo o americano, era de se esperar que uma publicação como o Journal of Natural Pharmaceuticals, editado por professores de universidades do mundo inteiro, conduzisse revisões criteriosas. A revista é uma entre mais de 270 publicações sob o guarda-chuva da Medknow, empresa indiana que se anuncia como o nome por trás de mais de 2 milhões de artigos baixados a cada mês por pesquisadores. A Medknow, diz Bohannon, foi comprada em 2011 pela multinacional holandesa Wolters Kluwer. Ela pediu a Cobange apenas "mudanças superficiais" no artigo antes de publicá-lo.
O artigo foi aceito por instituições acadêmicas de prestígio como a Universidade de Kobe, no Japão, e até por revistas que sequer tratavam do tema, como o Journal of Experimental & Clinical Assisted Reproduction, pautado por estudos na área de reprodução assistida.
Bohannon afirma que apenas a revista da Biblioteca Pública de Ciências, a PLoS One, chamou atenção para os potenciais problemas éticos do artigo, como a falta de documentação sobre o tratamento a animais que teriam gerado células para o experimento de Cobange. A publicação foi uma das que rejeitou o artigo.
Confesso que, em escala menor, fiz brincadeira semelhante. Em meus dias de UFSC, em um ensaio sobre o zdanovismo, elaborado para concorrer à cadeira de Literatura Brasileira, decidi me divertir com a banca. Lá pelas tantas, para justificar minha bibliografia, tasquei: “Como dizia Kaysa Varg, man tager vad man haver”.
Isto é sueco antigo, erudito, o mesmo usado na Bíblia. Hoje em dia, se diria: man tar vad man har. Que significa, singelamente: a gente pega o que a gente tem.
Um dos membros do júri, demonstrando notável erudição, percebeu que se tratava de um teórico escandinavo. E mais não disse. Desonesto não fui. O autor – uma escritora, no caso – de fato existia. Como também havia escrito a frase. Só que Kaysa Varg era autora de livros de culinária. Enfim, apesar da autora, a citação não deixava de ser procedente.
Claro que não passei no concurso, apesar de ter lecionado Literatura Brasileira, por quatro anos, na graduação e pós-graduação. Sem falar que era candidato único. Mas não por minha piada, que passou batido. Ocorre que a vaga não era minha.
Quantos casos semelhantes ocorrerão nos milhares – senão milhões – de teses aprovadas por bancas universitárias e artigos publicados em revistas científicas? Remember affaire Sokal. Embuste na ciência virou algo corriqueiro.
07 de outubro de 2013
janer cristaldo
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