Doença antipolítica que infecciona a vida pública tem algumas origens recentes: a supervalorização da primeira instância judicial em oposição às cortes superiores
‘Ah, eu não gosto da Cristiane Brasil. É filha do Roberto Jefferson. Tem uma condenação trabalhista. É desprovida de estatura moral para ser ministra.” Ok. Concordo. Quando você for presidente, não a nomeie. Se você for juiz, porém, nada há a fazer. Se faz: é ativismo judicial. Tão simples quanto isso. Existem regras objetivas em função das quais alguém pode ter impedida a posse num ministério. Quando um magistrado se desvia dos códigos para criar, a arte que esculpe é autoritarismo.
Esse movimento da toga imperiosa é facilitado pela ideia fascista de que a atividade política consiste num mal em si, do que deriva a compreensão de que toda nomeação de natureza política se ampara numa intenção bandida, e a de que indicar alguém a alguma coisa como parte do jogo político por meio do qual se conquista apoio no Parlamento é ato delinquente.
Essa doença antipolítica que infecciona a vida pública tem algumas origens recentes: a supervalorização da primeira instância judicial em oposição às cortes superiores, como se a celeridade de Sergio Moro fosse exemplar do que é a Justiça país adentro; a ajuda do Supremo Tribunal Federal a essa percepção, ao ser matriz da insegurança jurídica no Brasil, conforme mostram decisões bárbaras como aquela que permitiu — a respeito da Ficha Limpa — que a lei retroagisse para punir o réu, e ao se comportar como servente da agenda do Ministério Público, subserviência sintetizada na homologação irresponsável do acordo de delação de Joesley Batista etc.; e a ascensão de exércitos de ressentidos como o do integralismo bolsonaro-afetivo, cuja noção de pureza afiou a guilhotina em que, afinal, auxílio-moradia, funcionário fantasma e patrimônio imobiliário podem bastar a que a cabeça do “mito” role sem que a de Lula nem sequer balance. Parabéns.
A prática judicial militante, de essência discricionária, está na fundação de todo justiçamento e é, no caso brasileiro corrente, desembaraçada pela vitória da igualdade segundo Rodrigo Janot, aquela por meio da qual todos os homens públicos investigados (não raro ainda apenas suspeitos) são da mesma forma criminosos, ignorada qualquer nuance, esvaziado qualquer senso de proporção. Donde se pôde logo chegar ao prêmio eleitoral que esse jacobinismo PowerPoint deu ao lulismo, um serviço que a caça às bruxas moralista sempre prestará ao desfocamento: ao nivelar o caixa 2 praticado por deputadozinho qualquer ao projeto estrutural de assalto ao Estado promovido pelo PT para financiar a permanência do partido no poder, condenou-se, com a mesma pena, a atividade política, criminalizada como um todo, cuspida à lama onde detalhes perdem feição, e a profundidade inexiste; lá onde Lula se serve dela como medicina e desde onde, de carta fora do baralho em 2016, ora se ergue como líder das pesquisas, redimido pelos falsos iguais, discursando como Jesus Cristo, lá de onde, da mesma vala, Fernando Collor se sente à vontade para se lançar candidato à Presidência.
Sejamos óbvios. Muito mais grave do que a especulada (e superestimada) conflagração (episódica) de rua decorrente do julgamento de Lula em segunda instância é a permanente mobilização ativista de setores organizados do Judiciário e do Ministério Público para engessar o país. Pacote de ações togadas cujos efeitos políticos a ninguém mais e melhor beneficiam do que ao ex-presidente; mas ele, claro, é a vítima.
Pouca coisa há de mais grave ora em curso no Brasil do que a janotização da atividade judicial: termo por meio do qual defino a glória da politização dos processos; o triunfo das práticas em decorrência das quais já não há mais investigado, indiciado, denunciado ou mesmo réu; o êxito do assassinato seletivo de reputações que fabrica condenados pela palavra exclusiva de um delator antes mesmo de haver ação formal na Justiça. Janotizar — dicionarizemos o verbo: desprezar a técnica, a investigação, a perícia, o sigilo, o rito, o direito à defesa, a Constituição Federal; agir, valendo-se da estrutura pública e dos instrumentos funcionais, com motivação político-partidária e/ou em defesa de interesses de classe; disparar flechas difusas contra inimigos, mas acertar o peito da República; acusar, acusar, acusar.
Mas criminosa é a política, né? Parabéns. É mesmo inacreditável que tão banalmente os bem-intencionados tenham enterrado a classe política — eleita — e servido de escada para que em seu lugar ascendesse o coletivo de corporações mais poderoso e menos votado do Brasil. É o espírito do tempo, o do Direito voluntarioso, esse em que um juiz se sente à vontade para suspender — por meio de liminar redigida conforme estatuto de DCE — o processo de privatização de uma excrecência como a Eletrobras, uma das superfícies sob a qual a corrupção se alastra; mas que deve ser preservada em nome dos interesses nacionais, ou melhor: dos interesses do funcionalismo público nacional. E o que é um juiz?
Não tenho dúvida sobre a motivação dessas blitzes contra os planos da administração federal tanto quanto estou certo de que só se multiplicarão doravante — ano eleitoral que é: paralisar a agenda reformista, de redução do Estado, posta em prática pelo governo; notadamente, inviabilizar a reforma da Previdência, cujo avanço representaria um baque no conjunto de privilégios da mais alta elite do funcionalismo público, lá onde estão, no topo, magistrados e procuradores. Mas Lula é a vítima, né?
23 de janeiro de 2018
Carlos Andreazza, O Globo
‘Ah, eu não gosto da Cristiane Brasil. É filha do Roberto Jefferson. Tem uma condenação trabalhista. É desprovida de estatura moral para ser ministra.” Ok. Concordo. Quando você for presidente, não a nomeie. Se você for juiz, porém, nada há a fazer. Se faz: é ativismo judicial. Tão simples quanto isso. Existem regras objetivas em função das quais alguém pode ter impedida a posse num ministério. Quando um magistrado se desvia dos códigos para criar, a arte que esculpe é autoritarismo.
Esse movimento da toga imperiosa é facilitado pela ideia fascista de que a atividade política consiste num mal em si, do que deriva a compreensão de que toda nomeação de natureza política se ampara numa intenção bandida, e a de que indicar alguém a alguma coisa como parte do jogo político por meio do qual se conquista apoio no Parlamento é ato delinquente.
Essa doença antipolítica que infecciona a vida pública tem algumas origens recentes: a supervalorização da primeira instância judicial em oposição às cortes superiores, como se a celeridade de Sergio Moro fosse exemplar do que é a Justiça país adentro; a ajuda do Supremo Tribunal Federal a essa percepção, ao ser matriz da insegurança jurídica no Brasil, conforme mostram decisões bárbaras como aquela que permitiu — a respeito da Ficha Limpa — que a lei retroagisse para punir o réu, e ao se comportar como servente da agenda do Ministério Público, subserviência sintetizada na homologação irresponsável do acordo de delação de Joesley Batista etc.; e a ascensão de exércitos de ressentidos como o do integralismo bolsonaro-afetivo, cuja noção de pureza afiou a guilhotina em que, afinal, auxílio-moradia, funcionário fantasma e patrimônio imobiliário podem bastar a que a cabeça do “mito” role sem que a de Lula nem sequer balance. Parabéns.
A prática judicial militante, de essência discricionária, está na fundação de todo justiçamento e é, no caso brasileiro corrente, desembaraçada pela vitória da igualdade segundo Rodrigo Janot, aquela por meio da qual todos os homens públicos investigados (não raro ainda apenas suspeitos) são da mesma forma criminosos, ignorada qualquer nuance, esvaziado qualquer senso de proporção. Donde se pôde logo chegar ao prêmio eleitoral que esse jacobinismo PowerPoint deu ao lulismo, um serviço que a caça às bruxas moralista sempre prestará ao desfocamento: ao nivelar o caixa 2 praticado por deputadozinho qualquer ao projeto estrutural de assalto ao Estado promovido pelo PT para financiar a permanência do partido no poder, condenou-se, com a mesma pena, a atividade política, criminalizada como um todo, cuspida à lama onde detalhes perdem feição, e a profundidade inexiste; lá onde Lula se serve dela como medicina e desde onde, de carta fora do baralho em 2016, ora se ergue como líder das pesquisas, redimido pelos falsos iguais, discursando como Jesus Cristo, lá de onde, da mesma vala, Fernando Collor se sente à vontade para se lançar candidato à Presidência.
Sejamos óbvios. Muito mais grave do que a especulada (e superestimada) conflagração (episódica) de rua decorrente do julgamento de Lula em segunda instância é a permanente mobilização ativista de setores organizados do Judiciário e do Ministério Público para engessar o país. Pacote de ações togadas cujos efeitos políticos a ninguém mais e melhor beneficiam do que ao ex-presidente; mas ele, claro, é a vítima.
Pouca coisa há de mais grave ora em curso no Brasil do que a janotização da atividade judicial: termo por meio do qual defino a glória da politização dos processos; o triunfo das práticas em decorrência das quais já não há mais investigado, indiciado, denunciado ou mesmo réu; o êxito do assassinato seletivo de reputações que fabrica condenados pela palavra exclusiva de um delator antes mesmo de haver ação formal na Justiça. Janotizar — dicionarizemos o verbo: desprezar a técnica, a investigação, a perícia, o sigilo, o rito, o direito à defesa, a Constituição Federal; agir, valendo-se da estrutura pública e dos instrumentos funcionais, com motivação político-partidária e/ou em defesa de interesses de classe; disparar flechas difusas contra inimigos, mas acertar o peito da República; acusar, acusar, acusar.
Mas criminosa é a política, né? Parabéns. É mesmo inacreditável que tão banalmente os bem-intencionados tenham enterrado a classe política — eleita — e servido de escada para que em seu lugar ascendesse o coletivo de corporações mais poderoso e menos votado do Brasil. É o espírito do tempo, o do Direito voluntarioso, esse em que um juiz se sente à vontade para suspender — por meio de liminar redigida conforme estatuto de DCE — o processo de privatização de uma excrecência como a Eletrobras, uma das superfícies sob a qual a corrupção se alastra; mas que deve ser preservada em nome dos interesses nacionais, ou melhor: dos interesses do funcionalismo público nacional. E o que é um juiz?
Não tenho dúvida sobre a motivação dessas blitzes contra os planos da administração federal tanto quanto estou certo de que só se multiplicarão doravante — ano eleitoral que é: paralisar a agenda reformista, de redução do Estado, posta em prática pelo governo; notadamente, inviabilizar a reforma da Previdência, cujo avanço representaria um baque no conjunto de privilégios da mais alta elite do funcionalismo público, lá onde estão, no topo, magistrados e procuradores. Mas Lula é a vítima, né?
23 de janeiro de 2018
Carlos Andreazza, O Globo
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