Desci no aeroporto de Portela de Sacavém, em Lisboa, contratado pela Editora Francisco Alves para escrever um livro sobre a “Revolução dos Cravos” de 25 de abril de 1974. Passei no hotel Phenix, na Rotonda do Marquês de Pombal, deixei a mala, telefonei para Marcio Moreira Alves, exilado lá, cuja casa era a embaixada dos brasileiros em Lisboa. Atende outro:
– Nery, aqui é o David Lehrer.
– O guerrilheiro africano? Estou indo para aí agora.
Dez minutos e o táxi me deixava na rua Sant’Ana em Lapa, onde ouvi a mais extraordinária historia de guerra e política vivida por um brasileiro no exílio. Fiquei comovido:
– David, vamos arranjar um gravador para escrever um livro.
Depois de quatro horas de gravação, David empacou: – Não dá mais, Nery. Mais para a frente a gente continua.
SEM GRAVAÇÕES – Não houve mais para a frente. Passei uma semana revendo os amigos, Marcito, Irineu Garcia, Moema Santiago e Domingos, Alfredo Sirkis, Mauricio Paiva, a colônia brasileira exilada, e perambulando com David pelas velhas ruas entre vinhos e bacalhaus, arrancando dele, sem gravador, pedaços de suas fantásticas historias. Logo David começou a dar aulas na Faculdade de Medicina de Lisboa, esperando o fim do exílio.
A aventura de David explica a multisecular tragédia da África e o fim do poder fascista do salazarismo português.
Paulista de 1937, filho de imigrantes poloneses, formado em 1961, em 62 era medico do Sindicato os Metalúrgicos de São Paulo e se elege vereador pelo Partido Socialista. No golpe de 64, preso durante dois meses numa cela com o historiador Caio Prado Junior, o físico Mario Shemberg e o medico Feruz Gicovati, presidente do PSB paulista. Sai e em 65 é vice de Franco Montoro, do PDC para a prefeitura de São Paulo. Perdem.
ESPANCAMENTO – Em 66, deputado federal pelo MDB. No AI-5 de 13 de dezembro de 68, é preso na madrugada de 17 de dezembro, barbaramente espancado, costelas e rosto quebrado. Em 31, é cassado na lista de Carlos Lacerda, 10 deputados e 2 juízes.
Solto, tem a prisão preventiva decretada. Atravessa clandestino a fronteira do Brasil com o Uruguai, exílio. Do Uruguai, pelo Chile, vai para o Peru. Governo do general “nacionalista” Alvarado. No sequestro do embaixador Elbrick, dos Estados Unidos, escreve um artigo sobre a resistência armada no Brasil, leva à revista “Oyga”, a melhor do pais, dizendo ao diretor Francisco Igartua que é jornalista, embora nem soubesse bater à maquina. Dois meses depois, já era o redator-chefe.
Em maio de 71, o maior terremoto da historia do Peru soterra varias cidades e mata 300 mil pessoas. Atravessando a pé dezenas de quilômetros, por dentro do frio andino, foi o primeiro jornalista a chegar à cordilheira. Nos Andes, reencontra a medicina, resolve urgências, cura feridos, engessa braços.
VAI PARA PARIS – Volta, critica os ministros militares. Tomam seu visto. Recebe da França uma bolsa para estagiar em um grande hospital de Paris. Durante três anos dedica-se à cirurgia e ao vinho. Sua atividade política limitava-se a conseguir tratamento médico para os exilados brasileiros sem direito à Previdência e a operar vitimas das torturas no Brasil.
Encontrei-o numa noite interminável de vinhos e ele me disse que ia largar tudo para entrar na primeira guerra de libertação que o aceitasse.
Amanhecia sobre o Quartier Latin e David, com os passos avinhados,caminhava para alguma turbulenta trincheira do mundo.
23 de janeiro de 2018
Sebastião Nery
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