Chegou resoluto, firme, e mal cumprimentou o funcionário do cerimonial a quem dedicava sempre tanta atenção. Já passava das 13h, e o ministro Adaucto Lúcio Cardoso, do STF, fez pouco dos homens em seu caminho e da artrose que carregava nas juntas. Iria julgar ação de suma gravidade. Em janeiro do ano anterior, o governo Médici tinha concebido um filho muito feio, o Decreto-Lei 1.077, que trouxe para o ordenamento brasileiro a censura prévia (determina, em seu art. 2º, fiscalização dos escritos pela Polícia Federal, “antes” da divulgação).
A oposição, o MDB (Movimento Democrático Brasileiro), se mexeu contra o absurdo. Depois de bater com a cara na porta do procurador-Geral da República, então, ingressou com uma reclamação no STF, pedindo que o PGR trouxesse ao Plenário o pedido de declaração de inconstitucionalidade destes artigos que carregavam a censura prévia.
Era esta reclamação (Rcl 849, Rel. Min. Adalício Nogueira, DJ de 10.03.1971) que Adaucto e seus pares julgariam naquela dara.
SEM CONVERSA – Assim como os outros ministros, não iria conversar com os deputados do MDB, que queriam convencê-lo da censura grave e total que trazia o Decreto-lei 1044/71. Era inócua a tentativa. Não iriam demover a maioria (existiu minoria que votou com o governo por convicção) do medo de desagradar o governo militar, que mandara inúmeros “recados” sobre sua posição pela aprovação da constitucionalidade do Decreto.
Não negava, também, que as ameaças veladas o deixaram em estado muito próximo do que costumamos chamar de fúria. Ele era livre. E sempre o seria, não importa o preço. O medo era um relativo desconhecido de Adaucto. Relativo porque o sentia, várias vezes, em seus pares, e, nestas ocasiões, mais de uma, sentia vontade de vomitar.
Eles – todos eles – não percebiam a magnitude do que estava para acontecer. Faltavam-lhes parâmetros. Faltava-lhes beca. Mas Adaucto sabia. Tinha um encontro com seu chefe de gabinete as 13h:30m, para repassar rapidamente a pauta. As 13h:45m tinha um encontro com São Francisco, para rezar. As 14h, com o início da sessão, então, tinha com seus pares. Mas este encontro não era com homens. Estava marcado com a história.
CABEÇAS BAIXAS – Andando em direção ao plenário, ao ver todas cabeças baixas, começou a sentir o peso da toga que usava. Não era o peso da pressão. Sentia o peso da vergonha. Cada centímetro daquele pano preto agora parecia podre a Adaucto. Pano indigno, que não merecia seus ombros.
Na sessão, após seus colegas, vários deles, se acovardarem diante dos militares e concordarem com eles como ovelhas, Adaucto resolve, num ato só, mostrar como um pano preto pode ensinar às gerações que vêm o quanto de armamento pode não ter o homem mais valente da República. O quanto de brio pode ser concentrado numa pedaço de seda largada. Deu o único voto vencido – retumbante – daquela tarde, e carimbou seu passaporte para a galeria dos heróis.
UM MANTO NEGRO – Nasceu, ali, um parâmetro invencível de juiz. O maior deles. Porque Adaucto Lúcio Cardoso, logo após votar, em quase delírio de indignação, agarra a toga por detrás da cabeça e, num gesto raivoso, a arranca, arremessando-a ao ar, à eternidade. Ato contínuo, abandona a sessão e o cargo de ministro do STF.
Vai, Adaucto, redimas, com sua fúria incontrolável, a vergonha de nosso medo palpável! Faças pouco de nossos temores servis, lançando aos ares a capa que, voando, esgota as ambições viris.
Uma capa ao vento, suspensa no ar, no território dos mitos. Um manto negro que voará para sempre, para além do que a lenda prediz, e simbolizará, para aqueles que calam, a honra daquele que sempre diz. (José Eduardo Leonel Ferreira é doutor em Direito pela USP, mestre em direito pela PUC/SP e juiz federal)
12 de maio de 2017
Eduardo Bresciani
O Globo
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