"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

quinta-feira, 29 de setembro de 2016

VIÉS NOS TEMPOS DA CÓLERA

Qual seria o cenário para a economia global de um Trump presidente?

Raiva, descontrole, fúria. Adjetivos que caracterizam o debate político dentro e fora das redes sociais, dentro e fora do Brasil. A exaltação é a marca dos defensores e opositores de Temer, de Dilma, de Trump, de Hillary. A cólera se alastra desidratando o pensamento e expondo o viés que habita dentro de qualquer pessoa.

Viés. Em 2012, a renomada bióloga Jo Handelsman, professora da Universidade de Yale, publicou estudo em que expôs o viés que existe na comunidade científica em relação à contratação de mulheres. O experimento randomizado com 127 cientistas e professores universitários apresentou a cada um dois currículos idênticos: em um deles, o candidato à vaga chamava-se John; no outro, o nome era Jennifer. Os currículos nada tinham de excepcional. Contudo, o fictício John foi não só o candidato que os cientistas se mostraram mais propensos a contratar, mas aquele cujo salário todos julgaram justo ser cerca de 10% mais elevado do que o oferecido a Jennifer. Desde então, o mesmo experimento foi usado em diversos ambientes profissionais para conscientizar as pessoas do viés que carregam dentro de si. Homens e mulheres.

Se o viés inconsciente é algo perturbador, o viés inconsciente nos tempos da cólera é um perigo. Deixando de lado o gosto e o desgosto pelos candidatos à presidência dos EUA, o fato concreto é que Hillary, goste-se ou não dela, tem propostas concretas, conhece os dados, tem substância. Trump, por mais que seja o homem anti-establishment, exibe conduta irascível, desconhece os assuntos de que fala, insiste na ladainha protecionista e destruidora de empregos que abordei na semana passada, e nada apresenta de concreto para a classe média americana. Contudo, expõe com eficácia assustadora todo tipo de viés inconsciente.

Se ele responde com falta de compostura, é porque é “autêntico”. Se ele ataca Clinton pelo escândalo dos e-mails quando era Secretária de Estado, a expõe como mentirosa, enquanto ele próprio, que mente e omite, é visto como aquele que tem a coragem de tirar a máscara dos políticos convencionais. Quando ele revela sua mal escondida misoginia ou seu desprezo por imigrantes, é elogiado por não ser politicamente correto. Quando ele diz que reduzirá impostos “como nem Reagan foi capaz de fazer”, é aplaudido pela audácia, sem que tenha dito como pretende que essa política evite o aumento da dívida que ele próprio chama de “insustentável”. Há pouco tempo, Trump fez alusões a não pagar a dívida dos EUA, deixando claro que não tem a menor noção do impacto que isso teria sobre a economia global.

Qual seria o cenário para a economia global de um Trump presidente? Supondo que suas reduções de impostos não sejam tão fáceis de implementar – haja vista que terão de passar pelo Congresso e pelo crivo de democratas que discordam veementemente de mais cortes de impostos para os ricos – é razoável esperar uma forte reação negativa dos mercados, tanto nos EUA quanto no resto do mundo. Ao referir-se à atual presidente do Fed como “aquela Janet Yellen”, o candidato insinuou não apenas que não respeita a dirigente do Fed, como que estaria disposto a removê-la de suas funções, provocando onda ainda maior de incertezas no mundo.

O peso mexicano é barômetro desse porvir. Quando Trump sobe nas pesquisas, o valor do peso cai. Quando Hillary parece ter conquistado alguma vantagem, o peso sobe. É impossível exagerar o tamanho da incerteza de um governo trumpista. O que aconteceria com o petróleo, por exemplo? Pela retórica beligerante em relação ao Oriente Médio, o petróleo deveria subir pelo risco geopolítico. Pela retórica protecionista ao extremo, o preço da matéria-prima deveria cair ante o impacto negativo sobre as empresas americanas, o comércio mundial, e a economia global de maneira mais geral. A resposta? É difícil dizer para que lado iria o preço do petróleo, o que é, em si, um fator de incerteza e de volatilidade.

Quando li O Amor nos Tempos do Cólera lembro-me da sensação de asfixia, do calor opressivo provocado pelas descrições pulsantes de Gabriel García Marquez. A mesma opressão sinto ao observar a disseminação descontrolada do viés nesses tempos de cólera.


29 de setembro de 2016
Monica de Bolle, Estadão
*Economista, pesquisadora do Peterson Institute For Internacional Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University

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