"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

domingo, 11 de setembro de 2016

11 DE SETEMBRO E OSAMA BIN LADEN: FATOS E MENTIRAS, 15 ANOS

11 de setembro e Osama bin Laden: fatos e mentiras, 15 anos depois

O século XXI se inicia há 15 anos, com o atentado de Osama bin Laden. Mas até hoje o Ocidente recusa-se a entender o islamismo.

Se Eric Hobsbawm chamou o século XX de “curto século”, por seus eventos importantes começarem na eclosão da Primeira Guerra Mundial, em 1914, e terminar com o esfacelamento da União Soviética, em 1991, o século XXI certamente começa mais cedo, no dia 11 de setembro de 2001. Há 15 anos, a maior parte do Ocidente teria seu primeiro contato menos exótico com o islamismo através do atentado terrorista no World Trade Center, assinado pela al Qaeda de Osama bin Laden.

É estranho viver em um mundo em que você diga “Prefiro George W. Bush a Osama bin Laden” e uma moça cheia de fotos de biquíni no álbum “VERÃO!!!” te olhe torto por isso. Mas tal refração ideológica tem explicação.

Há 15 anos, as aulas foram interrompidas para que se pudesse comemorar a destruição das torres gêmeas. No dia seguinte, os professores de História e Geografia faziam debates, prognósticos que deram com os burros n’água e explicações sobre os atentados que revisavam aulas sobre a política externa americana. É mais ou menos como explicar as motivações de Charles Manson observando a vida de suas vítimas – ou explicar a queda de um avião analisando a dureza do chão.

Era uma atitude compreensível, naqueles pré-históricos anos de 2001 em que nem 3% das pessoas que usavam internet no Brasil conheciam o Google. Quem não viveu essa época não sabe a dureza que era fazer trabalho copiado da internet sem Google, usando o Cadê (perguntem aos seus bisavós, se ainda vivos).

Nós sabíamos muito bem que nossos professores nunca tinham ouvido falar em al-Qaeda, em Osama bin Laden, que não sabiam qual era a capital do Afeganistão (se nós não sabemos hoje, 15 anos de doses cavalares de internet depois). Mas nós fingíamos que eles eram algo como curandeiros sabe-tudo, ou que o que eles imaginavam que sabiam valia a pena mesmo assim.

Só que aí nós crescemos, percebemos que em menos de 4 anos de faculdade já podemos dar a mesma aula que resume o mundo a um bandido e um mocinho. Uma aula em que todas as explicações estão prontas, antes dos fatos. Mas, algum dia, bate uma vontade de conhecer os tais fatos, essas minorias oprimidas.

Hoje, muitos atentados terroristas o suficiente para sabermos o que é o islamismo, dissipam-se no ar as desculpas para não entender o que aconteceu naquela tenebrosa manhã. Mas são raríssimas as pessoas que, por exemplo, sabem o que pensa a al Qaeda, ou que tem uma explicação menos superficial para o jihadismo wahhabita e salafista do que imaginar que o atentado foi um “bumerangue” da política externa americana.
Osama bin Laden: mais muçulmano do que outros

Osama bin Laden não é um maluco, é um jihadista islâmico. Não é um desvio da norma, uma voz solitária: sua interpretação do islam, felizmente não majoritária, ainda é uma interpretação “possível”. Se a jihad, a guerra santa muçulmana, pode ser interpretada como uma “guerra espiritual” individual, nada impede que também se interprete como uma luta de sangue derramado contra os não-muçulmanos.



Em 1998, 2 anos após uma declaração de guerra pública, bin Laden solta a fatwa “Frente islâmica Mundial Contra Judeus e Cruzados”, subscrita por autoridades teológicas capazes de definir o que é “legítimo” nas leis muçulmanas. Note-se: bin Laden fala em “Cruzados”, os cristãos que impediram o avanço islâmico na Europa e retomaram Jerusalém, a cidade mais importante do islamismo original, das mãos dos sarracenos. É um “simbolismo” que poucos ocidentais são capazes de compreender, mas claro como o meio-dia para a maioria dos muçulmanos.

O método não foi uma originalidade de bin Laden. A própria Arábia Saudita foi criada pelo chefe da tribo dominante em Dariyya, Muhammad ibn Saud (cujo sobrenome deu origem ao nome do país), unindo ao líder espiritual Mohammad Ibn Abd al-Wahhab, conseguindo dominar inclusive Meca e Medina, as duas “capitais” do islamismo.

A doutrina de Wahhab, o wahhabismo, uma versão mais “pura” e guerreira do islã, seria dominante em muitos países, sobretudo os mais pobres e incultos – como o Afeganistão e o Iêmen, onde meninas se casam aos 5 anos. O regime talibã afegão, que deu abrigo a al-Qaeda, conseguiu a façanha de brigar com os wahhabistas por estes serem muito tolerantes. Trata-se, portanto, de uma briga entre salafistas, a visão mais “original” do islamismo: ver quem segue mais o profeta Maomé, e não uma versão “deturpada”, como dizem os analistas ocidentais.
Os americanos não armaram a al-Qaeda

Apesar de ser adoravelmente fácil atribuir os atentados à política externa americana, bin Laden odiava tudo o que não seja o islamismo. Municiou milícias contra a União Soviética, e seus pronunciamentos só apontam os EUA como “inimigo” por serem “materialistas ateus” e sua política ajudar Israel, país que ficou com uma mesquita que é o terceiro lugar mais sagrado para Maomé. Suas declarações tratavam como inimigos quaisquer regimes “comerciais”, volvendo seus olhos para Rússia, Índia, China (se o Brasil encabeçasse a lista, formaria uma sigla bem utilizada hoje em dia). Aliás, com nosso samba e futebol, bin Laden fatalmente trataria o Brasil como inimigo.

No entanto, ter um “inimigo comum” fez com que a estranhíssima agenda de bin Laden ganhasse simpatizantes mundo afora. Simpatizantes que o próprio Osama não iria querer vivos. Geralmente essas pessoas acham que o terrorismo é melhor do que a “desigualdade social” da política americana.



O que leva a um ponto importante: bin Laden, filho rico, ganhou grande destaque na sociedade islâmica enquanto a Casa Branca ainda não sabia o que era al-Qaeda, ainda no governo Clinton: afinal, largou sua casa abastada e foi defender sua fé (ainda que por meios questionáveis na sociedade islâmica) nas inóspitas montanhas afegãs. Numa sociedade profundamente ligada à tribo, que trata até as mulheres como posse (sequer há palavra distinta para “marido” e “dono” em árabe), não seria o “neoliberalismo” americano ou o colonialismo europeu que irritariam bin Laden – basta ver as fotos de sua residência.

Não deixa de ser curioso, portanto, que os maiores críticos ocidentais dos EUA e que mais defendem as “razões sociais” do extremismo islâmico sejam ateus ligados à esquerda.

Sua primeira contribuição como guerreiro em fins dos anos 70 foi reunindo recursos para os mujahedinafegãos lutando contra os soviéticos. Assim surge o primeiro mito, de que a al-Qaeda seria “criação da CIA”. Mas se os EUA contribuíram para expulsar os soviéticos do Afeganistão, foi por um acordo com a Arábia Saudita, que financiava outro montante idêntico.


O ideólogo saudita que assim planejou foi, na verdade, Abdullah Yusuf Azzam, com quem bin Laden estudou e, posteriormente, fundou a al-Qaeda (os dois romperiam apenas em 86, e Azzam seria morto em um atentado inexplicado em 89, possivelmente a mando do próprio bin Laden). Por sinal, o dinheiro americano não era distribuído diretamente aos sete grupos que compunham o movimento mujahedin, ficando a distribuição a cargo de autoridades sauditas e paquistanesas.

Trata-se de um princípio básico de diplomacia, sempre ignorado quando se diz, por exemplo, que “os Estados Unidos apoiaram a ditadura militar” ou algum outro regime cruel mundo afora: a diplomacia deve sempre apoiar o mal menor, ou intervir militarmente. Caso não se queira uma intervenção militar americana, por exemplo, no Brasil da ditadura, é natural, correto e óbvio que se deve apoiar quem, digamos, “mata menos”.

Basta ver como os ditadores observados por Washington no Oriente Médio eram corruptos e assassinos, mas assim que caíram na Primavera Árabe, foram substituídos pelas mais brutais teocracias que promoveram genocídios horrendos sobre todos que não eram cristãos, no Egito (Irmandade Muçulmana), Síria (Estado Islâmico) e quejandos.

O próprio bin Laden, rico, financiou os mujahedin, além de captar recursos no Golfo Pérsico. Assim, se algum dinheiro americano acabou indo parar nas mãos de alguém que posteriormente fez parte da al-Qaeda, esse alguém teve de virar de lado para adentrar no grupo.

Osama e Azzam estabelecem o MAK – Bureau de Serviços Afegão – e estabelecem uma rede mundial de apoio a jihad, tendo 52 “escritórios” só nos EUA. O que a al-Qaeda trouxe de mais novo ao fundamentalismo islâmico foi ser uma rede global de extremistas, mesmo começando em 88, antes da internet. Terrorismo global em um mundo globalizado.


Seu objetivo era restabelecer a grandeza do islamismo através da jihad moderna, visão incompatível com a modernidade, a individualidade, o materialismo e a liberalidade ocidentais. Azzam, assim como um dos pensadores islâmicos mais influentes do século, Sayyd Qutb, via nos EUA o cúmulo da modernidade – e não de uma “injustiça social” promovida por sua política externa.

Osama bin Laden, portanto, escolheu bem o Afeganistão como palco da al-Qaeda, após rachar com os wahhabistas da Arábia Saudita: tal qual o Iêmen, um país pobre e inculto, em que, depois de 10 anos e 225 mil mortes, 92% da população desconhece o 11/9.

A verdadeira “opressão colonial” promovida pelos EUA, para Osama bin Laden, foi Israel ter ficado com a mesquita de al Aqsa, a que deveria ser a mais importante para o islamismo, em Jerusalém. Relatos dizem, inclusive, que Maomé e seus seguidores, no início da pregação muçulmana, rezavam orientados para Jerusalém, e não para Meca: de fato, mesquitas antigas na Arábia Saudita estão voltadas para aquela cidade. Novamente, um dado que o Ocidente ignora por completo ao fazer suas análises.
A guerra ao terror deu certo (até Obama)

Um dos motivos da crença de Osama em poder derrotar o Ocidente ateu e imoral foi a retirada das tropas soviéticas do Afeganistão por Gorbachev: para guerreiros tribais, um sinal de fraqueza moral e covardia. Extremistas, de qualquer matiz de pensamento, preferem sempre lutar até as últimas forças.

A al-Qaeda não conseguiu realizar mais nenhum atentado em solo americano. Como bem lembrou Guilherme Fiuza, sequer o “pânico” seria descrito assim por alguém que não freqüente uma faculdade de Humanas – as pessoas vão trabalhar e fazem marchas pelos seus direitos sexuais sem nem lembrar do terrorismo.


Pior: nem as revoltas muçulmanas seguem o modelo de bin Laden. Afinal, nada demonstra a derrota de bin Laden mais claramente do que a Primavera Árabe. Os muçulmanos “sofrendo injustiças do Ocidente” e ainda sob governos ditatoriais aliados dos EUA (a grande questão da diplomacia americana daqui pra frente), justamente o “inimigo próximo” de que Osama tanto falava em seus pronunciamentos, usaram um método que a al-Qaeda odiaria, e, “traidores”, se aliam justamente com o Ocidente – e seu lado mais materialista e até pró-soviético.

Existe um método fácil de derrubar um ditador teocrático anti-ocidente sem torrar fortunas com gastos militares: compre um milhão de iPods e hambúrgueres de fast-food e dê de graça pra população local. Pague hackers para acabarem com as restrições à internet no Irã ou mesmo na China. Que Kadafi ou Ahmadinejad conseguiria sobreviver a uma população que conhece as delícias do mundo ocidental? Ao menos, era o que se acreditava antes da jihad 2.0.

George W. Bush soube e acreditou nisso. Promoveu diálogo com vários governos dispostos a dialogar (o que não inclui o regime talibã que não entregou a al-Qaeda por “hospitalidade” islâmica). Com os primeiros contatos com sociedades ocidentalizadas, o Cairo derrubou Mubarak, a Líbia derrubou Kadafi, a população iraniana reclama. Ou se conclui que a política externa americana deu seus primeiros sinais de sucesso no séc. XXI contra os “inimigos”, ou se atribui tudo ao mero acaso.


O Iraque, portanto, foi uma exceção. Por mais complicado que seja defender a guerra, os mecanismos para sua concretização não foram mera vontade individual. Era uma nação com histórico de tráfico de armas de destruição em massa, invasão dos vizinhos (não foi senão o próprio grupo de bin Laden que financiou a defesa do Kuwait, temendo uma proliferação no Golfo Pérsico de socialismoBaath sunita, o regime de Saddam, considerado traidor) e uma das mais brutais violações dos direitos humanos recentes.

É comum se olhar para o Iraque como “a política externa americana”, sendo que ela envolve 189 países, muitos deles ditaduras teocráticas muçulmanas. A política, na verdade, calcou-se no diálogo com quem queria dialogar, e foi exatamente o diálogo que irritou Osama bin Laden. Até o Estado Islâmico, como demonstrou a reportagem mais lida do ano passado na Atlantic, quer a guerra e o Apocalipse. O Ocidente ainda não entende uma religião que tem como mártires homens-bomba.

Foi a aproximação com os EUA que fez bin Laden romper com a Arábia Saudita, perdendo a cidadania e indo se refugiar no Sudão, e depois no Afeganistão. O pacto de Oslo, que firmou a paz entre Israel e Egito e pôs Mubarak no poder, rendendo um Nobel da Paz para Anwar al Sadat, também foi demonstração de fraqueza. E como é que Saddam Hussein ficou sem suas armas de destruição em massa? Justamente pelo apoio americano a regimes islâmicos que estavam na rota do tráfico de armas – o maior erro americano fora não ter colocado o Irã na mira, que ainda ganhou o poder de determinar o futuro islâmico mundial com o pacto nuclear dado por Barack Obama.

Claro, sempre é fácil tentar enxergar a política americana como “imperialista”, crendo que esta palavra explica tudo, e que a América tenta impor seus valores à força – e acabe-se defendendo justamente quem mais procura impor valores mesmo que precise matar a população civil para isso.

O 11 de setembro já deu 15 anos para o Ocidente estudar e compreender o que quer seu maior inimigo hoje: o islamismo, sobretudo as vertentes salafistas, que querem o islamismo original. A América, por sinal, já é chamada de “Nova Roma” pelos clérigos muçulmanos: a “Roma” antiga, da Igreja Católica, era a Nêmese suprema do islamismo.

Infelizmente, os analistas ocidentais ainda acreditam no valor de palavras ocas de significado como “imperialismo” ou “colonialismo”. Com esta confusão de conceitos, acabam mesmo acreditando que é um absurdo alguém defender as liberdades do Ocidente se defendendo de agressores com armas (se vis pacem, para bellum), e que alguém com Osama bin Laden se enfurece com a América por causa do capitalismo, ou que a América só quer roubar petróleo de pobres inocentes.

É virtualmente impossível na imprensa ocidental, fora alguns respingos de sanidade na própria América ou em países envolvidos na guerra ao terror, ler alguma defesa da liberdade além de cantar Imagine e crer que George W. Bush é o mal do mundo, e Osama bin Laden, apenas um rapaz sem oportunidades.

Uma breve olhada para o lado de lá da cortina mostra que o mundo, apesar de tudo, é sempre mais complicado do que as explicações que temos para ele.



11 de setembro de 2016
Flavio Morgenstern
in senso incomum

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