O Reino Unido assistiu a um confronto de abstrações: delírio coletivo contra projeções apocalípticas. Que tal a realidade, temperada pela lógica?
Não gosto de lidar com categorias abstratas, como “ilusão” ou “delírio coletivo”, mas, francamente, não me ocorre nada melhor — e tentei tomar emprestado de outros algo mais preciso e nada encontrei — para definir a vitória do que ficou conhecido como “Brexit”, a saída do Reino Unido da União Europeia. E não pensem que a viagem delirante se restringe aos que eram (atentem para o tempo do verbo) favoráveis à saída. Também os contrários preferiram acenar com o apocalipse em vez de esgrimir argumentos.
Dediquei um tempo à leitura dos prosélitos do “Brexit”. Alguma razão haveria de ter para que tentassem abandonar a União Europeia, mesmo sendo o Reino Unido aquele aglomerado de ilhas de que o continente europeu, apelo à graça, fazia questão de se manter próximo… Afinal, o Reino Unido só se mantinha no bloco porque sempre fez questão de deixar claro que a ele não pertencia de alma. Exceção feita à independência espiritual, seja lá o que isso signifique, não encontrei um só argumento que justifique a separação.
Empresto aqui à palavra “argumento” o sentido instrumental, utilitário, prático. O que os cidadãos do Reino Unido efetivamente ganharão com a mudança? A resposta é uma só: nada. Todas as projeções e análises objetivas apontam o contrário. A reação negativa dos mercados, em cadeia, deixa isso muito claro. E, com algum bom senso, havemos de achar que estes não primam por jogar dinheiro no lixo.
Acho sedutora a ideia de que “não queremos burocratas de Bruxelas mandando em nós”, mas cabe a pergunta: isso existe de fato, como realidade tangível, a pôr freios na liberdade virtuosa, ou é só um espantalho retórico criado por teorias conspiratórias que prenunciam um governo mundial, tendente a esmagar as liberdades individuais? Escrevo de outro modo: se a saída do Reino Unido da União Europeia não vai trazer nenhum benefício econômico aos cidadãos, vai, ao menos, torná-los efetivamente mais livres? De que ou de quê? Também não há resposta.
Lá no primeiro parágrafo, refiro-me aos que “eram” favoráveis à mudança. Pois é… Se a votação fosse refeita 24 horas depois de conhecidos os números, talvez o resultado fosse outro. Contam-me amigos que moram na Inglaterra que muitos dos entusiastas da saída não acreditavam no resultado positivo e agora se mostram mais assustados do que os que se opunham à mudança. A primeira consequência está dada: o bom governo (para os seus cidadãos; não gosto de sua política externa) de David Cameron já está com data de validade marcada.
Se a vitória do “sim” veio ancorada numa ilusão ou num delírio, a turma do “não”, antes e depois da votação, preferiu deixar de lado o pragmatismo para investir numa espécie de guerra ideológica. A se dar crédito a certa leitura, parece que a Europa está prestes a mergulhar numa era de obscurantismo, asfixiada por xenofobia e fascismo, como se vivêssemos o prenúncio de uma Terceira Guerra Europeia — as outras duas Guerras Europeias foram chamadas de Mundiais… E não me parece que seja o caso.
Pode-se entender a confusão. A direita moderada do Reino Unido, de corte mais propriamente liberal, se alinhou com o “não”. A direita mais radical — incluindo os extremistas — preferiu o “sim”. Mas daí a se enxergar, como fazem alguns apocalípticos, a ressurgência dos vários fascismos europeus vai uma diferença brutal. Quanto menos, há um problema de lógica elementar: os partidos de extrema direita têm experimentado certa ascensão em plena Europa unida, não é mesmo? Logo, a união não é garantia de que tais forças sejam eliminadas do espectro ideológico.
Não acredito num efeito dominó. Até porque as primeiras consequências do resultado não estão sendo exatamente positivas para o Reino Unido. Se votação tivesse “recall” imediato, o quadro poderia ser outro já hoje. Isso certamente terá um peso na opinião dos cidadãos dos demais países do bloco.
Mais corre risco o próprio Reino Unido do que a União Europeia. Afinal, com base na vontade dos seus cidadãos, a Escócia pode reivindicar, desta feita, não o seu direito de se destacar da pequena união, mas o de continuar na grande… Pergunta: nesse caso, os escoceses estariam sendo separatistas ou integracionistas?
Tendo a rejeitar por princípio as visões apocalípticas. Poucas coisas são tão efetivas para tornar moderado um radical como a realidade. Será que o futuro governo do Reino Unido será liderado por um fanático do “sim”? Nesse caso, fanático ele continuará?
Nos próximos dois anos, o governo vai ter de se ocupar de um problema que não tinha: efetivar a desunião, distribuindo entre os cidadãos as perdas decorrentes do entusiasmo da vitória, que recairão principalmente sobre os mais jovens e mais produtivos.
A única maneira de a separação oficial ser indolor será torná-la oficiosa, meramente retórica, de tal sorte que o Reino Unido busque garantir, num acordo bilateral com a União Europeia, o que tinha antes como membro do bloco. Nesse caso, a vitória do “Brexit” será sua maior derrota.
Vocês estão preparados para a possibilidade de a vitória do “sim” no Reino Unido fortalecer a União Europeia?
Vamos ver. O mundo não é plano.
26 de junho de 2016
Reinaldo Azevedo
Veja
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