"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

domingo, 26 de junho de 2016

A DESCOBERTA DA DEMOCRACIA: UM POUCO SOBRE TOCQUEVILLE



Nascido em 29 de julho de 1805, o aristocrata Alexis de Tocqueville previu as conseqüências políticas e sociais do fim das hierarquias e da instauração da igualdade e é cada vez mais reconhecido como um dos principais teóricos capazes de explicar a história e a sociedade contemporânea

O CONSERVADOR VISIONÁRIO

“Ao repassar em meu espírito a história dos últimos 60 anos, sorrio amargamente percebendo as ilusões existentes no final de cada um dos períodos dessa longa revolução, as teorias que as nutriam, as fantasias eruditas dos historiadores, tantos sistemas engenhosos e falsos com a ajuda dos quais tentou-se explicar um presente que mal se via e prever um futuro que não se enxergava em absoluto.”

Tocqueville, em “Lembranças de 1848”
Alexis de Tocqueville


Alexis de Tocqueville é um pensador de idéias simples, claras e constantes. Elas já parecem prontas na sua obra de juventude, “A Democracia na América” (1835-1840), e se repetem no outro clássico que ele legou à ciência política, “O Antigo Regime e a Revolução” (1856), publicado três anos antes da morte do autor. Apesar de seu olho clínico para o detalhe sociológico, da habilidade de seu pensamento para abrigar matizes e cultivar paradoxos, apesar de sua forma ainda literária de expressão, o que prevalece nele é a paixão pelas grandes sínteses. Quaisquer que sejam as árvores, Tocqueville sempre deduz a mesma floresta.

Que floresta é essa? Ela é uma síntese da própria vida do escritor, o ponto de encontro para o qual convergem não só o político derrotado e o historiador já quase cientista social, mas o conservador visionário, o republicano moderado e o aristocrata anglófilo que ele sempre foi.

Tocqueville, cujo bisavô foi guilhotinado pela Revolução Francesa, proveio de um mundo que a modernidade havia desbaratado. É esse ponto de vista retrógrado que lhe permite o recuo necessário para criticar a democracia de massas então nascente. Dessa posição contra-ofensiva nascem as inversões que caracterizam sua filosofia da história.

Ela postula, como axioma, que sob a superfície acidentada dos grandes feitos, das legislações e de tudo o que há de aparente e formal na história, correm rios subterrâneos impelidos por forças invisíveis, mas inarredáveis. Tais forças residem no que ele chama, seguindo a fórmula de Montesquieu, de “costumes”, algo que se poderia traduzir como a experiência prática, material e privada das sucessivas gerações. O vetor dos “costumes”, conforme se desenvolvem os meios técnicos e se propaga a conhecimento, é sempre na direção de mais igualdade entre as classes e os indivíduos.

Tocqueville sustenta que nas sociedades tradicionais (que ele chama de “aristocráticas”), baseadas na propriedade da terra e numa hierarquia rígida, vigoram direitos e liberdades bem estabelecidos, embora desiguais. Esses interstícios de liberdade resultam de um jogo em que cada poder, mesmo o do rei, é limitado por “corpos secundários”: a nobreza, o clero, os tribunais, os burgos, as corporações de ofício, as autonomias provinciais -e a estrutura inteira está circunscrita pelo respeito à tradição. Formada ao longo dos séculos, a mais feliz dessas sociedades, a britânica, teria alcançado o equilíbrio exemplar entre liberdade e autoridade.

E, no entanto, o destino das sociedades é se tornarem democráticas e igualitárias. Nesse processo, os “corpos secundários” são debilitados e destruídos, cada indivíduo perde o vínculo que ligava seu destino aos demais e todos se convertem em átomos à mercê da autoridade, que se faz despótica em nome da missão de realizar a felicidade geral, missão que ela extorque à sociedade ao mesmo tempo em que esta se apressa em delegá-la. Sobre a terra arrasada da igualdade, um único poder se impõe: eis a tirania moderna.

Nosso autor reconhece que a democracia é um bem (um pouco a contragosto) que acarreta um grande mal (descrito em tons alarmantes). A única maneira de evitar a tirania moderna, já que as pressões pela igualdade não podem ser detidas, é organizar novos “corpos secundários”, aptos a moderar o apetite de todo governo pelo poder ilimitado. Foi a curiosidade de verificar se isso estava ocorrendo nos Estados Unidos que o levou, aos 26 anos, a pretexto de estudar o sistema penal daquela democracia florescente, à viagem de nove meses da qual resultou “A Democracia na América”.

A conclusão, bem a seu feitio, é de um pessimismo moderado. Em meio a suas famosas profecias -ele previu, em 1835, a marcha para o oeste, o extermínio das culturas nativas, a guerra civil em torno da escravatura e até um futuro em que russos e americanos controlariam cada hemisfério do planeta-, Tocqueville agita o perigo da “tirania da maioria” como a grande ameaça a pesar sobre os EUA e as democracias modernas em geral. Mas ressalta, na sociedade norte-americana, a presença de três aspectos capazes de afastar esse risco.

O primeiro é a tradição de autogoverno da comuna -uma espécie de democracia municipal- entranhada na América pré-revolucionária por transfusão do colonizador inglês. Na democracia comunitária, que se replica na autonomia dos Estados em face do poder federal, estaria o maior obstáculo ao despotismo. Um segundo aspecto também é legado da influência britânica: o costume da livre associação dos indivíduos, para fins coletivos e sem permissão da autoridade. O terceiro seria a liberdade de imprensa, prática estabelecida desde o final do século 17 na Inglaterra e já disseminada, numa efervescência de jornais turbulentos e aguerridos, nos Estados Unidos que Tocqueville conheceu.

A inversão francesa

O êxito tão notório dos Estados Unidos como sociedade, como modelo político-ideológico e como poder mundial faz da obra de juventude seu livro cada vez mais famoso. “O Antigo Regime e a Revolução”, obra amarga de um político liberal posto no ostracismo pela ditadura de Napoleão 3º, ficou um tanto eclipsado. O que é uma pena, pois nesse segundo estudo o autor analisa o advento da revolução e da democracia numa sociedade -a sua própria- em que os “costumes” não ofereciam leito apropriado. Onde, ao contrário, o caminho do despotismo já vinha sendo longamente preparado pela realeza.

O livro está montado numa inversão desconcertante, a de que não foi a Revolução Francesa que produziu a centralização do poder, mas a centralização que deu origem à revolução. Tocqueville enfatiza que a ordem feudal fora mantida nas aparências e ao mesmo tempo esvaziada entre os séculos 16 e 18, à medida que o rei enfeixava uma soma crescente de poderes.

Nobres e eclesiásticos continuavam a desfrutar de títulos, isenções tributárias e honrarias, mas a administração era exercida cada vez mais por um corpo de funcionários profissionais, que respondiam diretamente ao Conselho do Rei. Antigas liberdades, autonomia das províncias e das cidades, o poder dos juizados locais -as instâncias intermediárias, os tais “corpos secundários”- foram aniquilados. O governo central açambarcara as atribuições de tributar, recrutar milícias, manter a ordem pública, realizar obras, tabelar preços, confiscar terras e assim por diante.

A imagem que ele usa é a de um edifício novo e invisível que fora construído aos poucos por baixo do velho. Quando sobreveio a revolução, em 1789, tudo o que ela precisou fazer foi sacudir o edifício antigo, que se desmanchou em pó, revelando o verdadeiro aparelho governamental, cujo controle então é transferido das mãos de um monarca reformista para uma “assembléia irresponsável e soberana”, disposta a implantar o terror como política a ser executada em nome da razão, da liberdade e da igualdade.

Tocqueville incrimina os filósofos iluministas pelo desastre. Alijados de qualquer experiência administrativa pelo absolutismo monárquico, literatos ignorantes também no que se refere à história das sociedades e por isso mesmo adeptos de esquemas abstratos, geométricos, os iluministas se propuseram a reinventar a humanidade a partir do zero. Criaram uma concepção puramente racional que, aplicada à política, era obrigada a violar, um a um, seus próprios princípios: genocídio em vez de fraternidade, opressão em vez de liberdade etc.

Para ilustrar o quanto a mentalidade dos “filósofos” já se difundira, Tocqueville se compraz em citar a freqüência com que editos de Luís 16, bem anteriores à revolução, mencionavam a lei natural e os direitos do homem.

Nas revoluções, em que o senso comum vê a ruptura, Tocqueville distingue os veios ocultos de continuidade. Essa é uma das portas de acesso a sua atualidade. Muito do que ele diz sobre a Revolução Francesa (“que é sempre a mesma, pois ela continua”), pode ser transposto para as revoluções socialistas do século 20. A pretexto de outra miragem racionalista -a de implantar o paraíso social-, essas revoluções limitaram-se, mais modestamente, a produzir a centralização estatal capaz de implementar industrializações retardatárias a ferro e fogo. Tocqueville separa o que as revoluções dizem fazer do que elas fazem. E suas críticas a Voltaire, Rousseau e os demais iluministas podem ser voltadas sem retoque às gerações de intelectuais marxistas cuja arrogância fantasiosa ajudou a empurrar milhares, milhões de pessoas para uma morte violenta e fútil.

Quanto ao lado “americano”, muitos críticos da atual uniformidade de pensamento e da submissão dos agentes políticos ao “mercado” encontrarão eco de suas inquietudes na noção tocquevilliana segundo a qual, na sociedade democrática, os indivíduos estão “aprisionados na vida privada”, imersos na busca de “prazeres materiais” e submetidos à “tirania da maioria” -um brando despotismo instalado sobre as ruínas do espaço público. Além disso, entre os motivos para ler este clássico, é o caso de mencionar a qualidade expressiva do texto, pois Tocqueville foi um dos expoentes de uma época em que filósofos e cientistas sociais se julgavam na obrigação de escrever tão bem quanto romancistas -em vez de ser justamente o contrário.



Originalmente aqui.

26 de junho de 2016
Otavio Frias Filho

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