Em 2004 ainda existia a revista “Primeira Leitura”, cujo editor era Reinaldo Azevedo. O site tratava com frequência de política, já a revista se dedicava mais a pensamento, resenhas, entrevistas e reflexões. Era um trabalho de altíssima qualidade e com colaboradores muito bons.
Quem acompanhou a revista ao longo do tempo pôde ver a “conversão” de Reinaldo Azevedo que, no início, se definia mais como social-democrata. O texto que trazemos ao “Arca Reaça” hoje é uma análise de Reinaldo publicada no site sobre um dos excelentes sermões do padre Antônio Vieira. O texto é longo e necessário:
Sermão do Bom Ladrão, de padre Antônio Vieira
Em dias em que autoridades vão à televisão para arrotar moralidade, embora sejam seus subordinados a meter a mão no dinheiro público, vale lembrar o que disse um jesuíta há 350 anos
Reinaldo Azevedo
Caros internautas,
De vez em quando, é preciso voltar às fontes originais onde todos bebemos ou deveríamos beber. E convidar o leitor a partilhar de tais águas. Uma das minhas minas de raridades é padre Antônio Vieira (1608-1697), que se aprende no colégio ser o prosador do barroco brasileiro, tanto quanto o baiano Gregório de Matos foi o seu poeta. Embora nascido em Portugal, em terras pátrias, especialmente no Maranhão, proferiu boa parte dos sermões que o tornaram notável. Jesuíta, logo se indispôs com os rumos da colonização no país, marca constante de sua ordem religiosa, e, pois, com a Coroa portuguesa e com a cúpula da própria Igreja Católica, o que acabou por levá-lo ao tribunal da Inquisição.
Não há, entendo, nos 322 anos em que o Brasil permaneceu colônia de Portugal, figura mais complexa. Encarnava a um só tempo os valores do establishment monárquico-católico (e nem poderia ser diferente) e a sua viva contestação. Seus sermões, quase sempre justificadores da ordem — na sua aparência ao menos —, expõem o limiar de um pensamento humanista que, não raro, tem um caráter claramente subversivo. Era um padre. Seu horizonte, claro!, era o que entendia e o que os seus doutores teólogos entendiam ser o reino de Deus. Mas nunca faltaram em seu texto a paixão pelo homem e um agudo senso de justiça, conforme evidenciou, por exemplo, nos textos em que tratou da escravidão.
Seleciono, na seqüência, partes de um sermão de 1655, que ficou conhecido como o Sermão do Bom Ladrão (clique aqui para ler). Suspeito que sua leitura, ainda hoje, passados quase 350 anos, deixaria muita gente corada de raiva ou de vergonha nos salões de qualquer um dos Três Poderes da República. Ao lado, há uma imagem em que se pode clicar para ter acesso ao texto integral. A seleção que faço, verá o internauta, tem endereço certo: é mesmo o Brasil de 2004. Separo os trechos em blocos, antecedidos por um intertítulo e por um comentário meu, que segue em itálico. Leiam e depois me digam se o governo que aí está, mesmo este que prometeu novas auroras, resistiria ao padre franzino do século 17.
LADRÃO PEQUENO É PIRATA; LADRÃO GRANDE É ALEXANDRE MAGNO
No excerto que segue, Vieira já havia feito a distinção, que percorre todo o texto, entre “ladrões grandes” e “ladrões pequenos”. Neste trecho em particular, diz haver pouca diferença entre os “reinos” e covis de bandidos. A não ser pelo tamanho. E crava uma frase que entrou para história: ao cruzar com um pirata, Alexandre, o Grande, tentou admoestá-lo e censurá-lo por causa de suas más ações. E então lhe responde o outro: “Basta, senhor, que eu, porque roubo em uma barca, sou ladrão, e vós, porque roubais em uma armada, sois imperador?”. Vamos a Vieira ele mesmo:
“O texto de Santo Agostinho fala geralmente de todos os reinos, em que são ordinárias semelhantes opressões e injustiças, e diz que, entre os tais reinos e as covas dos ladrões — a que o santo chama latrocínios — só há uma diferença. E qual é? Que os reinos são latrocínios, ou ladroeiras grandes, e os latrocínios, ou ladroeiras, são reinos pequenos: Sublata justitia, quid sunt regna, nisi magna latrocinia? Quia et latrocinia quid sunt, nisi parva regna? É o que disse o outro pirata a Alexandre Magno. Navegava Alexandre em uma poderosa armada pelo Mar Eritreu a conquistar a Índia, e como fosse trazido à sua presença um pirata que por ali andava roubando os pescadores, repreendeu-o muito Alexandre de andar em tão mau ofício; porém, ele, que não era medroso nem lerdo, respondeu assim. — Basta, senhor, que eu, porque roubo em uma barca, sou ladrão, e vós, porque roubais em uma armada, sois imperador? — Assim é. O roubar pouco é culpa, o roubar muito é grandeza; o roubar com pouco poder faz os piratas, o roubar com muito, os Alexandres. Mas Sêneca, que sabia bem distinguir as qualidades e interpretar as significações, a uns e outros definiu com o mesmo nome: Eodem loco pone latronem et piratam, quo regem animum latronis et piratae habentem. Se o Rei de Macedônia, ou qualquer outro, fizer o que faz o ladrão e o pirata, o ladrão, o pirata e o rei, todos têm o mesmo lugar, e merecem o mesmo nome.”
LADRÕES GRANDES ENFORCAM OS PEQUENOS
Num dos melhores, mais claros e eloqüentes trechos do sermão, Vieira parece falar muito de perto ao país dos Carandirus e Benficas. E também evidencia a sem-cerimônia com que os ladrões oficiais, os ladrões incrustados no Estado e nos governos se encarregam de punir os ladrões menores. Numa espetacular seqüência de antíteses violentas, opõe a desigualdade de prejuízos causados à sociedade pelos ladrões pequenos e pelos ladrões poderosos. Em suma: o destino do responsável pelo pequeno furto é a forca; o do cônsul, que rouba uma cidade, é o triunfo. Vamos ver:
“Suponho finalmente que os ladrões de que falo não são aqueles miseráveis, a quem a pobreza e vileza de sua fortuna condenou a este gênero de vida, porque a mesma sua miséria, ou escusa, ou alivia o seu pecado, como diz Salomão (…).O ladrão que furta para comer, não vai, nem leva ao inferno; os que não só vão, mas levam, de que eu trato, são outros ladrões, de maior calibre e de mais alta esfera, os quais debaixo do mesmo nome e do mesmo predicamento, distingue muito bem S. Basílio Magno (…). Não são só ladrões, diz o santo, os que cortam bolsas ou espreitam os que se vão banhar, para lhes colher a roupa: os ladrões que mais própria e dignamente merecem este título são aqueles a quem os reis encomendam os exércitos e legiões, ou o governo das províncias, ou a administração das cidades, os quais já com manha, já com força, roubam e despojam os povos. — Os outros ladrões roubam um homem: estes roubam cidades e reinos; os outros furtam debaixo do seu risco: estes sem temor, nem perigo; os outros, se furtam, são enforcados: estes furtam e enforcam. Diógenes, que tudo via com mais aguda vista que os outros homens, viu que uma grande tropa de varas e ministros de justiça levavam a enforcar uns ladrões, e começou a bradar: — Lá vão os ladrões grandes a enforcar os pequenos. — Ditosa Grécia, que tinha tal pregador! E mais ditosas as outras nações, se nelas não padecera a justiça as mesmas afrontas! Quantas vezes se viu Roma ir a enforcar um ladrão, por ter furtado um carneiro, e no mesmo dia ser levado em triunfo um cônsul, ou ditador, por ter roubado uma província. E quantos ladrões teriam enforcado estes mesmos ladrões triunfantes? De um, chamado Seronato, disse com discreta contraposição Sidônio Apolinar: (…) Seronato está sempre ocupado em duas coisas: em castigar furtos, e em os fazer. Isto não era zelo de justiça, senão inveja. Queria tirar os ladrões do mundo, para roubar ele só.”
RESPONSÁVEL É QUEM NOMEOU
Até aqui, leitor, temos um Vieira falando como um moralista, trabalhando com categorias absolutas como honradez, decência, observância das leis divinas etc. No trecho que segue, de leitura nem tão fácil como os anteriores, vamos nos deparar com um exercício claro de inteligência política. Quando vemos hoje que as autoridades que nomearam os ladrões da Saúde, por exemplo, vão à TV para prometer justamente a moralização da coisa pública, devemos nos perguntar, sob os auspícios de Vieira: ué, mas não são elas próprias, as que escolheram aqueles homens de confiança, as responsáveis últimas pelos seus desmandos? Afinal, quem foi que mandou que concedesse tanto poder aos ladravazes? Santo Deus! Vieira sabia disso em 1655, e nós, muitos jornalistas inclusive, não consideramos tal realidade em 2004. Deixemos que Vieira fale:
“Declarado assim por palavras não minhas, senão de muito bons autores, quão honrados e autorizados sejam os ladrões de que falo, estes são os que disse e digo que levam consigo os reis ao inferno. Que eles fossem lá sós, e o diabo os levasse a eles, seja muito na má hora, pois assim o querem; mas que hajam de levar consigo os reis é uma dor que se não pode sofrer, e por isso nem calar. Mas se os reis tão fora estão de tomar o alheio, que antes eles são os roubados, e os mais roubados de todos, como levam ao inferno consigo estes maus ladrões a estes bons reis? Não por um só, senão por muitos modos, os quais parecem insensíveis e ocultos, e são muito claros e manifestos. O primeiro, porque os reis lhes dão os ofícios e poderes com que roubam; o segundo, porque os reis os conservam neles; o terceiro, porque os reis os adiantam e promovem a outros maiores; e, finalmente, porque, sendo os reis obrigados, sob pena de salvação, a restituir todos estes danos, nem na vida, nem na morte os restituem.”
É PROIBIDO ALEGAR IGNORÂNCIA
Na seqüência, Vieira recorre a uma citação de Santo Tomás de Aquino e dá um passo ainda mais ousado. Seguindo o princípio de que aquele que rouba tem de devolver o produto de seu roubo e dado que isso pode não acontecer por iniciativa do próprio ladrão, o padre põe os poderosos em palpos de aranha: então que devolvam aqueles que responderam pelas escolhas. Imaginem se o princípio fosse aplicado no Ministério da Saúde… Vamos a Vieira:
“E quem diz isto já se sabe que há de ser Santo Tomás. Faz questão Santo Tomás, se a pessoa que não furtou, nem recebeu ou possui coisa alguma do furto, pode ter obrigação de o restituir. E não só resolve que sim, mas, para maior expressão do que vou dizendo, põe o exemplo nos reis. Vai o texto: Tenetur ille restituere, qui non obstat, cum obstare teneatur. Sicut principes, qui tenentur custodire justitiam in terra, si per eorum defectum latrones increscant, ad restitutionem tenentur, quia redditus, quos habent, sunt quasi stipendia ad hoc instituta, ut justitiam conservent in terra: Aquele que tem obrigação de impedir que se não furte, se o não impediu, fica obrigado a restituir o que se furtou. E até os príncipes, que por sua culpa deixarem crescer os ladrões, são obrigados à restituição, porquanto as rendas, com que os povos os servem e assistem, são como estipêndios instituídos e consignados por eles, para que os príncipes os guardem e mantenham em justiça. — É tão natural e tão clara esta teologia, que até Agamenão, rei gentio, a conheceu, quando disse: “Qui non vetat peccare, cum possit, jubet” [Quem, podendo, não impede o pecado, ordena-o].”
ATÉ DEUS PAGOU O PATO
E Vieira segue adiante, num procedimento típico, que irritava muitos de seus contemporâneos, especialmente os adversários dentro da própria Igreja. Vai buscar num exemplo bíblico a comprovação da tese, que certamente sabe ser espinhosa. No trecho que segue, trata Adão mais como um “ladrão” do que como um pecador de catecismo. E diz que Deus — que era, afinal, o responsável pela criatura — pagou, sim, pela transgressão praticada pelo outro. Logo, que os governantes sejam os responsáveis pelos homens que nomearam. Pois é: hoje em dia, ministros preferem ir à TV para desobrigar-se da responsabilidade por aqueles que nomearam.
“E se nesta obrigação de restituir incorrem os príncipes pelos furtos que cometem os ladrões casuais e involuntários, que será pelos que eles mesmos, e por própria eleição, armaram de jurisdições e poderes, com que roubam os mesmos povos? A tenção dos príncipes não é nem pode ser essa; mas basta que esses oficiais, ou de Guerra, ou de Fazenda, ou de Justiça, que cometem os roubos, sejam eleições e feituras suas, para que os príncipes hajam de pagar o que eles fizeram. Ponhamos o exemplo da culpa, onde a não pode haver. Pôs Deus a Adão no Paraíso, com jurisdição e poder sobre todos os viventes, e com senhorio absoluto de todas as coisas criadas, excepta somente uma árvore. Faltavam-lhe poucas letras a Adão para ladrão, e ao fruto para furto não lhe faltava nenhuma. Enfim, ele e sua mulher — que muitas vezes são as terceiras — aquela só coisa que havia no mundo que não fosse sua, essa roubaram. Já temos a Adão eleito, já o temos com ofício, já o temos ladrão. E quem foi o que pagou o furto? Caso sobre todos admirável! Pagou o furto quem elegeu e quem deu o ofício ao ladrão. Quem elegeu e quem deu o ofício a Adão foi Deus: e Deus foi o que pagou o furto tanto à sua custa, como sabemos. (…) Vistes o corpo humano de que me vesti, sendo Deus; vistes o muito que padeci, vistes o sangue que derramei, vistes a morte a que fui condenado, entre ladrões. Pois, então, e com tudo isso, pagava o que não furtei.”
O PODEROSO TEM DE DAR O EXEMPLO
E lamento dizer que Vieira não deixa nem mesmo espaço para a desculpa esfarrapada de que, afinal, procurou-se fazer o melhor, de que o governante se cercou de todos os cuidados. Ou, para ficar com a máxima de Márcio Thomaz Bastos, de que os ladrões eram puros até entrarem em contato com a máquina corrupta. O nosso Vieira deixa claro que nem mesmo Deus tinha o direito de dizer algo como “fiz tudo o que estava ao meu alcance”. Assim, parece, se o governo Lula quer saber quem é o responsável pela lambança da Saúde, a resposta é muito simples: ele próprio, o ministro escolhido, que, por sua vez, escolheu os assessores. Vieira — e o Deus conforme o lê o padre — não permite a essa gente outra saída. Ao sermão, em que o jesuíta começa por indagar Deus:
“Pois, Senhor meu, que culpa teve vossa divina Majestade no furto de Adão? — Nenhuma culpa tive, nem a tivera, ainda que não fora Deus, porque na eleição daquele homem, e no ofício que lhe dei, em tudo procedi com a circunspecção, prudência e providência com que o devera e deve fazer o príncipe mais atento a suas obrigações, mais considerado e mais justo. Primeiramente, quando o fiz, não foi com império despótico, como as outras criaturas, senão com maduro conselho, e por consulta de pessoas não humanas, senão divinas (…) As partes e qualidades que concorriam no eleito eram as mais adequadas ao ofício que se podiam desejar nem imaginar, porque era o mais sábio de todos os homens, justo sem vício, reto sem injustiça, e senhor de todas suas paixões, as quais tinha sujeitas e obedientes à razão. Só lhe faltava a experiência, nem houve concurso de outros sujeitos na sua eleição, mas ambas estas coisas não as podia então haver, porque era o primeiro homem, e o único. — Pois, se a vossa eleição, Senhor, foi tão justa e tão justificada, que bastava ser vossa para o ser, por que haveis vós de pagar o furto que ele fez, sendo toda a culpa sua? — Porque quero dar este exemplo e documento aos príncipes, e porque não convém que fique no mundo tão má e perniciosa conseqüência, como seria, se os príncipes se persuadissem em algum caso que não eram obrigados a pagar e satisfazer o que seus ministros roubassem.”
MÉRITO E NEPOTISMO
O trecho a seguir é daqueles que justificam certos exageros de que se tomam, às vezes, os admiradores de Vieira. Parece ter dons premonitórios. Ele conhecia o funcionamento das cortes, mas, abaixo, parece descrever a rotina, por exemplo, de um partido político. Para o padre, está posto, quem responde pelo erro do subordinado é aquele que o nomeou. Mas, claro!, o que nomeia sempre poderá alegar que não sabe o que fará o escolhido no futuro. Deixemos que fale o autor. E veremos que ele, na verdade, o que cobra é critério na escolha. Se não se pode saber o que fará o homem, é perfeitamente possível saber o que ele faz. Vieira abomina todas as escolhas dos reis que não sejam aquelas do mérito. Quem for servir ao Estado por qualquer outra razão, diz o jesuíta, começa como ladrão encoberto e termina como ladrão descoberto.
“Mas estou vendo que com este mesmo exemplo de Deus se desculpam ou podem desculpar os reis, porque, se a Deus lhe sucedeu tão mal com Adão, conhecendo muito bem Deus o que ele havia de ser, que muito é que suceda o mesmo aos reis, com os homens que elegem para os ofícios, se eles não sabem nem podem saber o que depois farão? A desculpa é aparente, mas tão falsa como mal fundada, porque Deus não faz eleição dos homens pelo que sabe que hão de ser, senão pelo que de presente são. Bem sabia Cristo que Judas havia de ser ladrão; mas quando o elegeu para o ofício em que o foi, não só não era ladrão, mas muito digno de se lhe fiar o cuidado de guardar e distribuir as esmolas dos pobres. Elejam assim os reis as pessoas, e provejam assim os ofícios, e Deus os desobrigará nesta parte da restituição. Porém as eleições e provimentos que se usam não se fazem assim. Querem saber os reis se os que provêem nos ofícios são ladrões ou não? Observem a regra de Cristo: Qui non intral per ostium, jur est et latro [O que não entra pela porta, esse é ladrão e roubador]. A porta por onde legitimamente se entra ao ofício é só o merecimento. E todo o que não entra pela porta, não só diz Cristo que é ladrão, senão ladrão e ladrão: Fur est latro. E por que é duas vezes ladrão? Uma vez porque furta o ofício, e outra vez porque há de furtar com ele. O que entra pela porta poderá vir a ser ladrão, mas os que não entram por ela já o são. Uns entram pelo parentesco, outros pela amizade, outros pela valia, outros pelo suborno, e todos pela negociação. E quem negocia não há mister outra prova: já se sabe que não vai a perder. Agora será ladrão oculto, mas depois ladrão descoberto, que essa é, como diz S. Jerônimo, a diferença de fur e latro.”
UM PRIMOR DE RETÓRICA
O destaque do trecho abaixo vai mesmo em função da retórica. Nele, Vieira nem renova os argumentos, mas apenas procede a um jogo de palavras com categorias da linguagem que dão conta de sua genialidade e do epíteto que lhe colou o poeta Fernando Pessoa: “imperador da língua portuguesa”. Reparem como ele trata do verbo “roubar” nos vários tempos e modos e consegue tornar lapidar a sua argumentação. O “lá” que aparece na primeira linha do trecho é o “poder”:
“Tanto que lá chegam, começam a furtar pelo modo indicativo, porque a primeira informação que pedem aos práticos é que lhes apontem e mostrem os caminhos por onde podem abarcar tudo. Furtam pelo modo imperativo, porque, como têm o mero e misto império, todo ele aplicam despoticamente às execuções da rapina. Furtam pelo modo mandativo, porque aceitam quanto lhes mandam, e, para que mandem todos, os que não mandam não são aceitos. Furtam pelo modo optativo, porque desejam quanto lhes parece bem e, gabando as coisas desejadas aos donos delas, por cortesia, sem vontade, as fazem suas. Furtam pelo modo conjuntivo, porque ajuntam o seu pouco cabedal com o daqueles que manejam muito, e basta só que ajuntem a sua graça, para serem quando menos meeiros na ganância. Furtam pelo modo potencial, porque, sem pretexto nem cerimônia, usam de potência. Furtam pelo modo permissivo, porque permitem que outros furtem, e estes compram as permissões. Furtam pelo modo infinitivo, porque não tem o fim o furtar com o fim do governo, e sempre lá deixam raízes em que se vão continuando os furtos. Estes mesmos modos conjugam por todas as pessoas, porque a primeira pessoa do verbo é a sua, as segundas os seus criados, e as terceiras quantas para isso têm indústria e consciência. Furtam juntamente por todos os tempos, porque do presente — que é o seu tempo — colhem quanto dá de si o triênio; e para incluírem no presente o pretérito e futuro, do pretérito desenterram crimes, de que vendem os perdões, e dívidas esquecidas, de que se pagam inteiramente, e do futuro empenham as rendas e antecipam os contratos, com que tudo o caído e não caído lhes vem a cair nas mãos. Finalmente, nos mesmos tempos, não lhes escapam os imperfeitos, perfeitos, plus quam perfeitos, e quaisquer outros, porque furtam, furtaram, furtavam, furtariam e haveriam de furtar mais, se mais houvesse. Em suma, que o resumo de toda esta rapante conjugação vem a ser o supino do mesmo verbo: a furtar para furtar. E quando eles têm conjugado assim toda a voz ativa, e as miseráveis províncias suportado toda a passiva, eles, como se tiveram feito grandes serviços, tornam carregados de despojos e ricos, e elas ficam roubadas e consumidas.”
NOVO APELO
Caros leitores, há muito mais no texto original. Resta insistir que selecionem o texto e o guardem em um arquivo para ler mais tarde se agora falta o tempo necessário. Vieira foi um grande homem sobretudo porque não foi óbvio nem se deixou envolver pela versão influente, pelo poder influente, pela falsa evidência.
26 de junho de 2016
Reinaldo Azevedo
in arca reaça (publicado em 2 de outubro de 2013)
Quem acompanhou a revista ao longo do tempo pôde ver a “conversão” de Reinaldo Azevedo que, no início, se definia mais como social-democrata. O texto que trazemos ao “Arca Reaça” hoje é uma análise de Reinaldo publicada no site sobre um dos excelentes sermões do padre Antônio Vieira. O texto é longo e necessário:
Sermão do Bom Ladrão, de padre Antônio Vieira
Em dias em que autoridades vão à televisão para arrotar moralidade, embora sejam seus subordinados a meter a mão no dinheiro público, vale lembrar o que disse um jesuíta há 350 anos
Reinaldo Azevedo
O PREGADOR: uma imagem de padre Antônio Vieira, o imperador da língua portuguesa |
Caros internautas,
De vez em quando, é preciso voltar às fontes originais onde todos bebemos ou deveríamos beber. E convidar o leitor a partilhar de tais águas. Uma das minhas minas de raridades é padre Antônio Vieira (1608-1697), que se aprende no colégio ser o prosador do barroco brasileiro, tanto quanto o baiano Gregório de Matos foi o seu poeta. Embora nascido em Portugal, em terras pátrias, especialmente no Maranhão, proferiu boa parte dos sermões que o tornaram notável. Jesuíta, logo se indispôs com os rumos da colonização no país, marca constante de sua ordem religiosa, e, pois, com a Coroa portuguesa e com a cúpula da própria Igreja Católica, o que acabou por levá-lo ao tribunal da Inquisição.
Não há, entendo, nos 322 anos em que o Brasil permaneceu colônia de Portugal, figura mais complexa. Encarnava a um só tempo os valores do establishment monárquico-católico (e nem poderia ser diferente) e a sua viva contestação. Seus sermões, quase sempre justificadores da ordem — na sua aparência ao menos —, expõem o limiar de um pensamento humanista que, não raro, tem um caráter claramente subversivo. Era um padre. Seu horizonte, claro!, era o que entendia e o que os seus doutores teólogos entendiam ser o reino de Deus. Mas nunca faltaram em seu texto a paixão pelo homem e um agudo senso de justiça, conforme evidenciou, por exemplo, nos textos em que tratou da escravidão.
Seleciono, na seqüência, partes de um sermão de 1655, que ficou conhecido como o Sermão do Bom Ladrão (clique aqui para ler). Suspeito que sua leitura, ainda hoje, passados quase 350 anos, deixaria muita gente corada de raiva ou de vergonha nos salões de qualquer um dos Três Poderes da República. Ao lado, há uma imagem em que se pode clicar para ter acesso ao texto integral. A seleção que faço, verá o internauta, tem endereço certo: é mesmo o Brasil de 2004. Separo os trechos em blocos, antecedidos por um intertítulo e por um comentário meu, que segue em itálico. Leiam e depois me digam se o governo que aí está, mesmo este que prometeu novas auroras, resistiria ao padre franzino do século 17.
LADRÃO PEQUENO É PIRATA; LADRÃO GRANDE É ALEXANDRE MAGNO
No excerto que segue, Vieira já havia feito a distinção, que percorre todo o texto, entre “ladrões grandes” e “ladrões pequenos”. Neste trecho em particular, diz haver pouca diferença entre os “reinos” e covis de bandidos. A não ser pelo tamanho. E crava uma frase que entrou para história: ao cruzar com um pirata, Alexandre, o Grande, tentou admoestá-lo e censurá-lo por causa de suas más ações. E então lhe responde o outro: “Basta, senhor, que eu, porque roubo em uma barca, sou ladrão, e vós, porque roubais em uma armada, sois imperador?”. Vamos a Vieira ele mesmo:
“O texto de Santo Agostinho fala geralmente de todos os reinos, em que são ordinárias semelhantes opressões e injustiças, e diz que, entre os tais reinos e as covas dos ladrões — a que o santo chama latrocínios — só há uma diferença. E qual é? Que os reinos são latrocínios, ou ladroeiras grandes, e os latrocínios, ou ladroeiras, são reinos pequenos: Sublata justitia, quid sunt regna, nisi magna latrocinia? Quia et latrocinia quid sunt, nisi parva regna? É o que disse o outro pirata a Alexandre Magno. Navegava Alexandre em uma poderosa armada pelo Mar Eritreu a conquistar a Índia, e como fosse trazido à sua presença um pirata que por ali andava roubando os pescadores, repreendeu-o muito Alexandre de andar em tão mau ofício; porém, ele, que não era medroso nem lerdo, respondeu assim. — Basta, senhor, que eu, porque roubo em uma barca, sou ladrão, e vós, porque roubais em uma armada, sois imperador? — Assim é. O roubar pouco é culpa, o roubar muito é grandeza; o roubar com pouco poder faz os piratas, o roubar com muito, os Alexandres. Mas Sêneca, que sabia bem distinguir as qualidades e interpretar as significações, a uns e outros definiu com o mesmo nome: Eodem loco pone latronem et piratam, quo regem animum latronis et piratae habentem. Se o Rei de Macedônia, ou qualquer outro, fizer o que faz o ladrão e o pirata, o ladrão, o pirata e o rei, todos têm o mesmo lugar, e merecem o mesmo nome.”
LADRÕES GRANDES ENFORCAM OS PEQUENOS
Num dos melhores, mais claros e eloqüentes trechos do sermão, Vieira parece falar muito de perto ao país dos Carandirus e Benficas. E também evidencia a sem-cerimônia com que os ladrões oficiais, os ladrões incrustados no Estado e nos governos se encarregam de punir os ladrões menores. Numa espetacular seqüência de antíteses violentas, opõe a desigualdade de prejuízos causados à sociedade pelos ladrões pequenos e pelos ladrões poderosos. Em suma: o destino do responsável pelo pequeno furto é a forca; o do cônsul, que rouba uma cidade, é o triunfo. Vamos ver:
“Suponho finalmente que os ladrões de que falo não são aqueles miseráveis, a quem a pobreza e vileza de sua fortuna condenou a este gênero de vida, porque a mesma sua miséria, ou escusa, ou alivia o seu pecado, como diz Salomão (…).O ladrão que furta para comer, não vai, nem leva ao inferno; os que não só vão, mas levam, de que eu trato, são outros ladrões, de maior calibre e de mais alta esfera, os quais debaixo do mesmo nome e do mesmo predicamento, distingue muito bem S. Basílio Magno (…). Não são só ladrões, diz o santo, os que cortam bolsas ou espreitam os que se vão banhar, para lhes colher a roupa: os ladrões que mais própria e dignamente merecem este título são aqueles a quem os reis encomendam os exércitos e legiões, ou o governo das províncias, ou a administração das cidades, os quais já com manha, já com força, roubam e despojam os povos. — Os outros ladrões roubam um homem: estes roubam cidades e reinos; os outros furtam debaixo do seu risco: estes sem temor, nem perigo; os outros, se furtam, são enforcados: estes furtam e enforcam. Diógenes, que tudo via com mais aguda vista que os outros homens, viu que uma grande tropa de varas e ministros de justiça levavam a enforcar uns ladrões, e começou a bradar: — Lá vão os ladrões grandes a enforcar os pequenos. — Ditosa Grécia, que tinha tal pregador! E mais ditosas as outras nações, se nelas não padecera a justiça as mesmas afrontas! Quantas vezes se viu Roma ir a enforcar um ladrão, por ter furtado um carneiro, e no mesmo dia ser levado em triunfo um cônsul, ou ditador, por ter roubado uma província. E quantos ladrões teriam enforcado estes mesmos ladrões triunfantes? De um, chamado Seronato, disse com discreta contraposição Sidônio Apolinar: (…) Seronato está sempre ocupado em duas coisas: em castigar furtos, e em os fazer. Isto não era zelo de justiça, senão inveja. Queria tirar os ladrões do mundo, para roubar ele só.”
RESPONSÁVEL É QUEM NOMEOU
Até aqui, leitor, temos um Vieira falando como um moralista, trabalhando com categorias absolutas como honradez, decência, observância das leis divinas etc. No trecho que segue, de leitura nem tão fácil como os anteriores, vamos nos deparar com um exercício claro de inteligência política. Quando vemos hoje que as autoridades que nomearam os ladrões da Saúde, por exemplo, vão à TV para prometer justamente a moralização da coisa pública, devemos nos perguntar, sob os auspícios de Vieira: ué, mas não são elas próprias, as que escolheram aqueles homens de confiança, as responsáveis últimas pelos seus desmandos? Afinal, quem foi que mandou que concedesse tanto poder aos ladravazes? Santo Deus! Vieira sabia disso em 1655, e nós, muitos jornalistas inclusive, não consideramos tal realidade em 2004. Deixemos que Vieira fale:
“Declarado assim por palavras não minhas, senão de muito bons autores, quão honrados e autorizados sejam os ladrões de que falo, estes são os que disse e digo que levam consigo os reis ao inferno. Que eles fossem lá sós, e o diabo os levasse a eles, seja muito na má hora, pois assim o querem; mas que hajam de levar consigo os reis é uma dor que se não pode sofrer, e por isso nem calar. Mas se os reis tão fora estão de tomar o alheio, que antes eles são os roubados, e os mais roubados de todos, como levam ao inferno consigo estes maus ladrões a estes bons reis? Não por um só, senão por muitos modos, os quais parecem insensíveis e ocultos, e são muito claros e manifestos. O primeiro, porque os reis lhes dão os ofícios e poderes com que roubam; o segundo, porque os reis os conservam neles; o terceiro, porque os reis os adiantam e promovem a outros maiores; e, finalmente, porque, sendo os reis obrigados, sob pena de salvação, a restituir todos estes danos, nem na vida, nem na morte os restituem.”
É PROIBIDO ALEGAR IGNORÂNCIA
Na seqüência, Vieira recorre a uma citação de Santo Tomás de Aquino e dá um passo ainda mais ousado. Seguindo o princípio de que aquele que rouba tem de devolver o produto de seu roubo e dado que isso pode não acontecer por iniciativa do próprio ladrão, o padre põe os poderosos em palpos de aranha: então que devolvam aqueles que responderam pelas escolhas. Imaginem se o princípio fosse aplicado no Ministério da Saúde… Vamos a Vieira:
“E quem diz isto já se sabe que há de ser Santo Tomás. Faz questão Santo Tomás, se a pessoa que não furtou, nem recebeu ou possui coisa alguma do furto, pode ter obrigação de o restituir. E não só resolve que sim, mas, para maior expressão do que vou dizendo, põe o exemplo nos reis. Vai o texto: Tenetur ille restituere, qui non obstat, cum obstare teneatur. Sicut principes, qui tenentur custodire justitiam in terra, si per eorum defectum latrones increscant, ad restitutionem tenentur, quia redditus, quos habent, sunt quasi stipendia ad hoc instituta, ut justitiam conservent in terra: Aquele que tem obrigação de impedir que se não furte, se o não impediu, fica obrigado a restituir o que se furtou. E até os príncipes, que por sua culpa deixarem crescer os ladrões, são obrigados à restituição, porquanto as rendas, com que os povos os servem e assistem, são como estipêndios instituídos e consignados por eles, para que os príncipes os guardem e mantenham em justiça. — É tão natural e tão clara esta teologia, que até Agamenão, rei gentio, a conheceu, quando disse: “Qui non vetat peccare, cum possit, jubet” [Quem, podendo, não impede o pecado, ordena-o].”
ATÉ DEUS PAGOU O PATO
E Vieira segue adiante, num procedimento típico, que irritava muitos de seus contemporâneos, especialmente os adversários dentro da própria Igreja. Vai buscar num exemplo bíblico a comprovação da tese, que certamente sabe ser espinhosa. No trecho que segue, trata Adão mais como um “ladrão” do que como um pecador de catecismo. E diz que Deus — que era, afinal, o responsável pela criatura — pagou, sim, pela transgressão praticada pelo outro. Logo, que os governantes sejam os responsáveis pelos homens que nomearam. Pois é: hoje em dia, ministros preferem ir à TV para desobrigar-se da responsabilidade por aqueles que nomearam.
“E se nesta obrigação de restituir incorrem os príncipes pelos furtos que cometem os ladrões casuais e involuntários, que será pelos que eles mesmos, e por própria eleição, armaram de jurisdições e poderes, com que roubam os mesmos povos? A tenção dos príncipes não é nem pode ser essa; mas basta que esses oficiais, ou de Guerra, ou de Fazenda, ou de Justiça, que cometem os roubos, sejam eleições e feituras suas, para que os príncipes hajam de pagar o que eles fizeram. Ponhamos o exemplo da culpa, onde a não pode haver. Pôs Deus a Adão no Paraíso, com jurisdição e poder sobre todos os viventes, e com senhorio absoluto de todas as coisas criadas, excepta somente uma árvore. Faltavam-lhe poucas letras a Adão para ladrão, e ao fruto para furto não lhe faltava nenhuma. Enfim, ele e sua mulher — que muitas vezes são as terceiras — aquela só coisa que havia no mundo que não fosse sua, essa roubaram. Já temos a Adão eleito, já o temos com ofício, já o temos ladrão. E quem foi o que pagou o furto? Caso sobre todos admirável! Pagou o furto quem elegeu e quem deu o ofício ao ladrão. Quem elegeu e quem deu o ofício a Adão foi Deus: e Deus foi o que pagou o furto tanto à sua custa, como sabemos. (…) Vistes o corpo humano de que me vesti, sendo Deus; vistes o muito que padeci, vistes o sangue que derramei, vistes a morte a que fui condenado, entre ladrões. Pois, então, e com tudo isso, pagava o que não furtei.”
O PODEROSO TEM DE DAR O EXEMPLO
E lamento dizer que Vieira não deixa nem mesmo espaço para a desculpa esfarrapada de que, afinal, procurou-se fazer o melhor, de que o governante se cercou de todos os cuidados. Ou, para ficar com a máxima de Márcio Thomaz Bastos, de que os ladrões eram puros até entrarem em contato com a máquina corrupta. O nosso Vieira deixa claro que nem mesmo Deus tinha o direito de dizer algo como “fiz tudo o que estava ao meu alcance”. Assim, parece, se o governo Lula quer saber quem é o responsável pela lambança da Saúde, a resposta é muito simples: ele próprio, o ministro escolhido, que, por sua vez, escolheu os assessores. Vieira — e o Deus conforme o lê o padre — não permite a essa gente outra saída. Ao sermão, em que o jesuíta começa por indagar Deus:
“Pois, Senhor meu, que culpa teve vossa divina Majestade no furto de Adão? — Nenhuma culpa tive, nem a tivera, ainda que não fora Deus, porque na eleição daquele homem, e no ofício que lhe dei, em tudo procedi com a circunspecção, prudência e providência com que o devera e deve fazer o príncipe mais atento a suas obrigações, mais considerado e mais justo. Primeiramente, quando o fiz, não foi com império despótico, como as outras criaturas, senão com maduro conselho, e por consulta de pessoas não humanas, senão divinas (…) As partes e qualidades que concorriam no eleito eram as mais adequadas ao ofício que se podiam desejar nem imaginar, porque era o mais sábio de todos os homens, justo sem vício, reto sem injustiça, e senhor de todas suas paixões, as quais tinha sujeitas e obedientes à razão. Só lhe faltava a experiência, nem houve concurso de outros sujeitos na sua eleição, mas ambas estas coisas não as podia então haver, porque era o primeiro homem, e o único. — Pois, se a vossa eleição, Senhor, foi tão justa e tão justificada, que bastava ser vossa para o ser, por que haveis vós de pagar o furto que ele fez, sendo toda a culpa sua? — Porque quero dar este exemplo e documento aos príncipes, e porque não convém que fique no mundo tão má e perniciosa conseqüência, como seria, se os príncipes se persuadissem em algum caso que não eram obrigados a pagar e satisfazer o que seus ministros roubassem.”
MÉRITO E NEPOTISMO
O trecho a seguir é daqueles que justificam certos exageros de que se tomam, às vezes, os admiradores de Vieira. Parece ter dons premonitórios. Ele conhecia o funcionamento das cortes, mas, abaixo, parece descrever a rotina, por exemplo, de um partido político. Para o padre, está posto, quem responde pelo erro do subordinado é aquele que o nomeou. Mas, claro!, o que nomeia sempre poderá alegar que não sabe o que fará o escolhido no futuro. Deixemos que fale o autor. E veremos que ele, na verdade, o que cobra é critério na escolha. Se não se pode saber o que fará o homem, é perfeitamente possível saber o que ele faz. Vieira abomina todas as escolhas dos reis que não sejam aquelas do mérito. Quem for servir ao Estado por qualquer outra razão, diz o jesuíta, começa como ladrão encoberto e termina como ladrão descoberto.
“Mas estou vendo que com este mesmo exemplo de Deus se desculpam ou podem desculpar os reis, porque, se a Deus lhe sucedeu tão mal com Adão, conhecendo muito bem Deus o que ele havia de ser, que muito é que suceda o mesmo aos reis, com os homens que elegem para os ofícios, se eles não sabem nem podem saber o que depois farão? A desculpa é aparente, mas tão falsa como mal fundada, porque Deus não faz eleição dos homens pelo que sabe que hão de ser, senão pelo que de presente são. Bem sabia Cristo que Judas havia de ser ladrão; mas quando o elegeu para o ofício em que o foi, não só não era ladrão, mas muito digno de se lhe fiar o cuidado de guardar e distribuir as esmolas dos pobres. Elejam assim os reis as pessoas, e provejam assim os ofícios, e Deus os desobrigará nesta parte da restituição. Porém as eleições e provimentos que se usam não se fazem assim. Querem saber os reis se os que provêem nos ofícios são ladrões ou não? Observem a regra de Cristo: Qui non intral per ostium, jur est et latro [O que não entra pela porta, esse é ladrão e roubador]. A porta por onde legitimamente se entra ao ofício é só o merecimento. E todo o que não entra pela porta, não só diz Cristo que é ladrão, senão ladrão e ladrão: Fur est latro. E por que é duas vezes ladrão? Uma vez porque furta o ofício, e outra vez porque há de furtar com ele. O que entra pela porta poderá vir a ser ladrão, mas os que não entram por ela já o são. Uns entram pelo parentesco, outros pela amizade, outros pela valia, outros pelo suborno, e todos pela negociação. E quem negocia não há mister outra prova: já se sabe que não vai a perder. Agora será ladrão oculto, mas depois ladrão descoberto, que essa é, como diz S. Jerônimo, a diferença de fur e latro.”
UM PRIMOR DE RETÓRICA
O destaque do trecho abaixo vai mesmo em função da retórica. Nele, Vieira nem renova os argumentos, mas apenas procede a um jogo de palavras com categorias da linguagem que dão conta de sua genialidade e do epíteto que lhe colou o poeta Fernando Pessoa: “imperador da língua portuguesa”. Reparem como ele trata do verbo “roubar” nos vários tempos e modos e consegue tornar lapidar a sua argumentação. O “lá” que aparece na primeira linha do trecho é o “poder”:
“Tanto que lá chegam, começam a furtar pelo modo indicativo, porque a primeira informação que pedem aos práticos é que lhes apontem e mostrem os caminhos por onde podem abarcar tudo. Furtam pelo modo imperativo, porque, como têm o mero e misto império, todo ele aplicam despoticamente às execuções da rapina. Furtam pelo modo mandativo, porque aceitam quanto lhes mandam, e, para que mandem todos, os que não mandam não são aceitos. Furtam pelo modo optativo, porque desejam quanto lhes parece bem e, gabando as coisas desejadas aos donos delas, por cortesia, sem vontade, as fazem suas. Furtam pelo modo conjuntivo, porque ajuntam o seu pouco cabedal com o daqueles que manejam muito, e basta só que ajuntem a sua graça, para serem quando menos meeiros na ganância. Furtam pelo modo potencial, porque, sem pretexto nem cerimônia, usam de potência. Furtam pelo modo permissivo, porque permitem que outros furtem, e estes compram as permissões. Furtam pelo modo infinitivo, porque não tem o fim o furtar com o fim do governo, e sempre lá deixam raízes em que se vão continuando os furtos. Estes mesmos modos conjugam por todas as pessoas, porque a primeira pessoa do verbo é a sua, as segundas os seus criados, e as terceiras quantas para isso têm indústria e consciência. Furtam juntamente por todos os tempos, porque do presente — que é o seu tempo — colhem quanto dá de si o triênio; e para incluírem no presente o pretérito e futuro, do pretérito desenterram crimes, de que vendem os perdões, e dívidas esquecidas, de que se pagam inteiramente, e do futuro empenham as rendas e antecipam os contratos, com que tudo o caído e não caído lhes vem a cair nas mãos. Finalmente, nos mesmos tempos, não lhes escapam os imperfeitos, perfeitos, plus quam perfeitos, e quaisquer outros, porque furtam, furtaram, furtavam, furtariam e haveriam de furtar mais, se mais houvesse. Em suma, que o resumo de toda esta rapante conjugação vem a ser o supino do mesmo verbo: a furtar para furtar. E quando eles têm conjugado assim toda a voz ativa, e as miseráveis províncias suportado toda a passiva, eles, como se tiveram feito grandes serviços, tornam carregados de despojos e ricos, e elas ficam roubadas e consumidas.”
NOVO APELO
Caros leitores, há muito mais no texto original. Resta insistir que selecionem o texto e o guardem em um arquivo para ler mais tarde se agora falta o tempo necessário. Vieira foi um grande homem sobretudo porque não foi óbvio nem se deixou envolver pela versão influente, pelo poder influente, pela falsa evidência.
26 de junho de 2016
Reinaldo Azevedo
in arca reaça (publicado em 2 de outubro de 2013)
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