Essas palavras não teriam sentido não fosse pela existência de códigos, leis, credos e mandamentos que governam e classificam o comportamento. Sem classificações não haveria tabus, pecado, crime e ideias (pré)concebidas – preconceitos!
Por outro lado, uma ausência de normas suprimiria até mesmo as fronteiras entre identidades e emblemas sociais. Nós só sabemos quem somos por contraste e, em certas fases da vida, pela admoestação e pelo paciente cuidado dos mais experientes.
Aprendemos a ser de modo penoso, complexo e, sem dúvida, contraditório, pois o que é proibido em certas situações pode ser obrigatório em outras. Numa guerra transformamos um pecado mortal – matar – num ato de bravura. Ademais, não é fácil compreender o diferente como alternativo: como um modo de fazer o que fazemos de modo diverso.
As identidades são relacionais e contextuais. Um paulista e um nordestino que se percebem preconceituosamente em São Paulo viram solidários “brasileiros” por contraste com os “gringos” em Buenos Aires. Entretanto, um argentino e esses brasileiros se transformam em patriotas “latino-americanos” em Washington, onde contrastam com os “ianques imperialistas”. Numa visita a Paris, porém, todo esse conjunto vira “americano” por oposição ao “velho mundo” europeu. Mas, se alguns europeus, brasileiros, argentinos e americanos forem a Tóquio, todos se percebem como “ocidentais” diante de um mundo sem monoteísmos, sem culpa judaico-cristã, mas tornam-se bárbaros e analfabetos.
Para saber quem somos, temos que nos botar em relação. Embora os emblemas sejam fixos, os elos e o que se torna um emblema de identidade variam muito.
Quando dava aulas na Universidade de Notre Dame, vi números sobre a “diversidade étnica” dos seus professores. Setenta por cento eram “brancos” ou “caucasianos” (uma palavra que, nesse contexto, não faz sentido no Brasil) e os 30% restantes pertenciam a muitos outros grupos étnicos, com predominância dos “hispânicos”. Intrigado, ampliei minha busca para descobrir que no meu departamento havia um e apenas um “hispânico”! Imediatamente, um lado meu perguntou: quem é esse “hispânico” perdido no meio dos “brancos”? É você, idiota!, respondeu um outro lado, obrigando-me a tomar um uísque e a me dar conta de um importante traço cultural dos Estados Unidos.
É que na cultura americana você não se autoclassifica etnicamente. Muito pelo contrário, você é classificado pela coletividade. Eu era um “hispânico” e não um “branco” naquele sistema de classificação. E não tinha como protestar porque no contexto americano a “etnia” (antigamente chamada de “raça”) era um código desenhado para discriminar negros (e outros alienígenas) por costumes e legislação.
Vejam a reviravolta. Uma sociedade na qual a autonomia e a opinião individual são direitos estabelecidos, existem áreas onde isso é suprimido. No Brasil, ter opinião é pecado, mas a diversidade física e as leis que regulam o sistema de cotas se fundam na autodefinição. Se você se considera branco, negro ou índio, você assim se classifica.
Lá, a ênfase é na “raça” como uma “realidade” englobante de uma pessoa. Aqui, a ênfase é na “cor”, algo que, obviamente, varia de acordo com pessoas e, mais que isso, com situações. A “raça” é inapelável, mas a “cor” (que faz parte de um sistema de aparências) permite toda a sorte de negociações. Num caso, a classificação é pela “origem” (que alguns chamam de “essência”) no outro, é pela “aparência”, conforme demonstrou o sociólogo Oracy Nogueira, num ensaio lapidar publicado em 1954.
Mas, acrescento, há contratempos em ambos os estilos de classificar. Nos limites de uma crônica, pode-se afirmar que qualquer política de identidade é algo delicado e complexo. Por quê? Porque as pessoas podem ser oprimidas pelo sistema desenhado para libertá-las. A autoclassificação pode inventar o falso “índio” ou “negro”. Já os sistemas totalizados, nascidos no princípio do “separados, mas iguais”, promovem violência e alimentam o ódio racial com seus massacres e a indignação moral de quem, pelas normas do sistema, seria inapelavelmente “branco”, mas se classifica como “negro” o que, nos Estados Unidos segregados, caracteriza o fenômeno negativo do “passing”. Do passar-se por outro.
Foi exatamente esse julgamento que enredou Rachel Dolezal, uma “branca” que quis ser negra num país onde negros eram discriminados e linchados e, hoje, são presos ou mortos pela polícia! Por coincidência, no momento em que escrevo, explode o massacre de Charleston, no qual nove negros são chacinados por um jovem branco racista.
O assunto longo leva a uma questão curta: você se classificaria como judeu no nazismo, como burguês na Rússia soviética ou como gay no Brasil?
É válido classificar seres humanos por meio de uma única (e inapelável) dimensão? O que é mais sensato? Classificar de modo definitivo ou discutir crítica e honestamente a classificação?
24 de junho de 2015
Roberto DaMatta
Por outro lado, uma ausência de normas suprimiria até mesmo as fronteiras entre identidades e emblemas sociais. Nós só sabemos quem somos por contraste e, em certas fases da vida, pela admoestação e pelo paciente cuidado dos mais experientes.
Aprendemos a ser de modo penoso, complexo e, sem dúvida, contraditório, pois o que é proibido em certas situações pode ser obrigatório em outras. Numa guerra transformamos um pecado mortal – matar – num ato de bravura. Ademais, não é fácil compreender o diferente como alternativo: como um modo de fazer o que fazemos de modo diverso.
As identidades são relacionais e contextuais. Um paulista e um nordestino que se percebem preconceituosamente em São Paulo viram solidários “brasileiros” por contraste com os “gringos” em Buenos Aires. Entretanto, um argentino e esses brasileiros se transformam em patriotas “latino-americanos” em Washington, onde contrastam com os “ianques imperialistas”. Numa visita a Paris, porém, todo esse conjunto vira “americano” por oposição ao “velho mundo” europeu. Mas, se alguns europeus, brasileiros, argentinos e americanos forem a Tóquio, todos se percebem como “ocidentais” diante de um mundo sem monoteísmos, sem culpa judaico-cristã, mas tornam-se bárbaros e analfabetos.
Para saber quem somos, temos que nos botar em relação. Embora os emblemas sejam fixos, os elos e o que se torna um emblema de identidade variam muito.
Quando dava aulas na Universidade de Notre Dame, vi números sobre a “diversidade étnica” dos seus professores. Setenta por cento eram “brancos” ou “caucasianos” (uma palavra que, nesse contexto, não faz sentido no Brasil) e os 30% restantes pertenciam a muitos outros grupos étnicos, com predominância dos “hispânicos”. Intrigado, ampliei minha busca para descobrir que no meu departamento havia um e apenas um “hispânico”! Imediatamente, um lado meu perguntou: quem é esse “hispânico” perdido no meio dos “brancos”? É você, idiota!, respondeu um outro lado, obrigando-me a tomar um uísque e a me dar conta de um importante traço cultural dos Estados Unidos.
É que na cultura americana você não se autoclassifica etnicamente. Muito pelo contrário, você é classificado pela coletividade. Eu era um “hispânico” e não um “branco” naquele sistema de classificação. E não tinha como protestar porque no contexto americano a “etnia” (antigamente chamada de “raça”) era um código desenhado para discriminar negros (e outros alienígenas) por costumes e legislação.
Vejam a reviravolta. Uma sociedade na qual a autonomia e a opinião individual são direitos estabelecidos, existem áreas onde isso é suprimido. No Brasil, ter opinião é pecado, mas a diversidade física e as leis que regulam o sistema de cotas se fundam na autodefinição. Se você se considera branco, negro ou índio, você assim se classifica.
Lá, a ênfase é na “raça” como uma “realidade” englobante de uma pessoa. Aqui, a ênfase é na “cor”, algo que, obviamente, varia de acordo com pessoas e, mais que isso, com situações. A “raça” é inapelável, mas a “cor” (que faz parte de um sistema de aparências) permite toda a sorte de negociações. Num caso, a classificação é pela “origem” (que alguns chamam de “essência”) no outro, é pela “aparência”, conforme demonstrou o sociólogo Oracy Nogueira, num ensaio lapidar publicado em 1954.
Mas, acrescento, há contratempos em ambos os estilos de classificar. Nos limites de uma crônica, pode-se afirmar que qualquer política de identidade é algo delicado e complexo. Por quê? Porque as pessoas podem ser oprimidas pelo sistema desenhado para libertá-las. A autoclassificação pode inventar o falso “índio” ou “negro”. Já os sistemas totalizados, nascidos no princípio do “separados, mas iguais”, promovem violência e alimentam o ódio racial com seus massacres e a indignação moral de quem, pelas normas do sistema, seria inapelavelmente “branco”, mas se classifica como “negro” o que, nos Estados Unidos segregados, caracteriza o fenômeno negativo do “passing”. Do passar-se por outro.
Foi exatamente esse julgamento que enredou Rachel Dolezal, uma “branca” que quis ser negra num país onde negros eram discriminados e linchados e, hoje, são presos ou mortos pela polícia! Por coincidência, no momento em que escrevo, explode o massacre de Charleston, no qual nove negros são chacinados por um jovem branco racista.
O assunto longo leva a uma questão curta: você se classificaria como judeu no nazismo, como burguês na Rússia soviética ou como gay no Brasil?
É válido classificar seres humanos por meio de uma única (e inapelável) dimensão? O que é mais sensato? Classificar de modo definitivo ou discutir crítica e honestamente a classificação?
24 de junho de 2015
Roberto DaMatta
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